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A-24

UMA PERSPECTIVA SOBRE OS QUADROS LEGAIS POSSÍVEIS NO QUADRO DO TRÁFICO E DA EXPLORAÇÃO NA PROSTITUIÇÃO

por A-24, em 03.09.13
Recuo a 5 de Maio de 1838: em Lisboa publica-se um edital que procura limitar a área de actuação das prostitutas, proibindo-as de habitar em casas «próximas de templos, passeios ou praças». Neste ano, é publicado o «Regulamento Policial e Sanitário para Obviar os Males Causados à Moral e à Saúde pela Prostituição Pública», criando uma classificação: a divisão das mulheres prostituídas em três categorias «segundo o seu luxo», assim como as casas de passe, «segundo a sua ostentação». Esta mesma dita categoria, que, ainda hoje é entendida como prostituição de luxo: a que resultaria de escolha, e a prostituição de rua, a que resultaria da necessidade. A partir de 1850 estabiliza-se um modelo um modelo burguês de vivência do quotidiano. Poucas terão sido as personagens sobre as quais tanto se escreveu a partir de meados do século XIX e até ao início do século XX como a prostituta. Elevada a musa, tema de poesia e música que ocupavam os tempos boémios cortesãos, ela era, simultaneamente, o símbolo da decadência moral, mas um mal necessário para suprir as necessidades afectivas e sexuais dos homens, principalmente daqueles com posses.Em Lisboa emitem-se regulamentos em 1858 e 1865, que servirão de modelo aos de outras cidades do país como Porto e Évora caracterizados pelas preocupações sanitárias e esforços de severa regulamentação da actividade prostitucional. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa, determina no seu artigo 13º que «são consideradas meretrizes todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. Denominam-se toleradas quando se acham inscritas no respectivo registo policial». E sempre, entregues ou matriculadas nas autoridades pelos seus proprietários – pais, maridos, irmãos mais velhos. A legislação e o discurso social transformam então estas mulheres em ameaças à estabilidade social e à moral pública, higienizando-se o discurso e as normas, submetendo estas mulheres a rigorosos controlos sanitários para evitar a propagação das doenças venéreas (daí a diferença entre as matriculadas e as que se encontravam em circulação) ao mesmo tempo que se regulamentava a dita «profissão», não para garantir quaisquer direitos a quem se prostitui, mas a saúde e o bom nome dos clientes.Com os anos do fascismo, com o empobrecimento brutal e a degradação generalizada das condições de vida, entre 1925 e 1928, em termos globais, o número de matriculadas aumenta mais de 15%. Em 1928, verifica-se que, os dois maiores centros urbanos do país, no seu conjunto, englobam cerca de 2/3 do total (Lisboa acima dos 40% e o Porto perto dos 25%), cidades onde a pobreza era mais aguda e onde o controlo era mais fácil, dado que, no interior, a matrícula era um estigma social e, como tal, evitada. 

Entre as razões adiantadas pelas mulheres prostituídas avultavam o abandono pelo amante e a miséria, embora em quase um terço dos casos a causa não fosse adiantada. Solteiras eram 94% e analfabetas 83%. Entre as que tinham ocupação profissional anterior, encontravam-se serviçais, domésticas e costureiras. Imperava, então, o discurso higienista, permitindo-se por decreto a prática da prostituição por maiores de 20 anos, em casas especificamente localizadas, desde que não causassem má vizinhança. Diz-se ter sido este, o primeiro passo neste processo: a remoção da sexualidade ilegítima dos espaços públicos. Em Itália, logo em 1923, a mando de Mussolini, a polícia ordenava a todas as prostitutas, incluindo praticantes “isoladas”, que transportassem um «passaporte especial com o registo dos seus exames vaginais de doenças venéreas.» E esta regulamentação, esta consideração da prostituição como profissão, como actividade comercial, como uma indústria, foi mesmo para o responsável das inspecções obrigatórias, Tovar de Lemos, algo que, afinal, tudo mudava para que tudo ficasse na mesma. Podemos ler na reflexão que abre o seu relatório de 1947: «Quanto à prostituição clandestina é extraordinário o número de raparigas que a exerce. Não se sabe hoje onde começa o que se pode chamar prostituição clandestina nem onde acaba. É difícil fixar os limites do que se pode chamar prostituição clandestina dentro do esbatido que vai desde a profissional que vive da prostituição 100% até à rapariga quase 100% honesta.» Nestas palavras com mais de 60 anos, revemos as tendências ditas modernistas dos dias de hoje, no que ao tráfico de mulheres e à prostituição diz respeito.São muitos os instrumentos internacionais e nacionais a que Portugal está vinculado: a Lei n.º 23/80, de 26 de Julho, que ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Resolução da Assembleia da República n.º 17/2002, de 8 de Março, que aprovou para a ratificação o Protocolo Opcional à Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 5/2002, de 8 de Março, bem como a Decisão-Quadro do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativa à luta contra o tráfico de seres humanos, ao considerar que este «constitui uma grave violação dos direitos humanos fundamentais e da dignidade humana e implica práticas cruéis, como a exploração e manipulação de pessoas vulneráveis, bem como a utilização de violência, ameaças, servidão por dívidas e coacção», sendo que o consentimento das vítimas é irrelevante.Já em 1993 a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre os direitos humanos afirmou, na Declaração e Plataforma de Acção de Viena que «Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis, integrais e são uma parte indivisível dos direitos humanos universais.» «A violência baseada no sexo e todas as formas de perseguição e exploração sexual, incluindo aquelas resultantes de preconceitos culturais e tráfico internacional são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eliminados.» Não obstante, a United Nations Office on Drugs and Crime estima que mais de 2,4 milhões de pessoas são actualmente vítimas de tráfico para fins comerciais. Segundo o relatório Global Report on Trafficking in Persons, de Fevereiro de 2009, a exploração sexual assume-se como a forma mais relatada de tráfico, com 79% dos casos. De acordo com a OIT, a exploração sexual é de 63% nas economias industrializadas, sendo que Portugal é um país de destino, origem e passagem de vítimas de tráfico.E Portugal tem vindo a ser sistematicamente descrito em vários relatórios internacionais, como é o caso dos relatórios anuais do US Department of State, como um país que apenas cumpre os requisitos mínimos no combate ao tráfico, baseando-se mesmo em dados transmitidos por entidades governamentais portuguesas que, em muitas situações, não retratam, minimamente, a realidade portuguesa.Assim, publicados que foram os dois Planos Nacionais contra o Tráfico de Seres Humanos e instituído o seu Observatório, que tem vindo a desenvolver um meritório trabalho de sensibilização, estudo e divulgação desta realidade, podemos ler no 2º Relatório Anual que durante 2010 foram realizadas 3.048 acções de combate à imigração ilegal e tráfico de pessoas, tendo existido um total de 28 crimes de tráfico registados por autoridades policiais: 6 crimes registados pela GNR, 5 crimes registados pela PSP, 8 crimes registados pelo SEF e 9 crimes registados pela PJ. Números que, certa e infelizmente, estarão aquém do real.Através dos órgãos de polícia criminal e de organizações não governamentais e internacionais, foram registadas durante 2010 um total de 86 vítimas: 22 vítimas confirmadas como vítimas de tráfico de pessoas; 5 vítimas sinalizadas ainda em investigação, 29 vítimas não confirmadas porque consideradas como vítimas de outros ilícitos que não o tráfico de pessoas. A exploração sexual e laboral continua a figurar como o principal «destino» das pessoas traficadas.O problema da prostituição assume particular importância na agenda política, por força do recrudescimento da tentativa de regulamentação da prostituição por parte das ditas “trabalhadoras do sexo” e dos proxenetas, como actividade económica, como profissão. Esta ofensiva pretende criar as condições para que os proxenetas sejam considerados parceiros económicos dos Estados e os clientes legítimos consumidores a quem se atribui, como um direito, a utilização de uma pessoa.

Na Europa, temos quatro linhas orientadoras, quatro correntes, relativamente aos quadros legais: - O abolicionismo: a prostituição não é proibida. Contudo, o lenocínio é criminalizado – República Checa, Polónia, Eslováquia, Eslovénia, Portugal, Espanha.- O neo-abolicionismo: a prostituição não é proibida, contudo, o Estado proíbe a existência de bordéis – Bélgica, Chipre, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Itália, Luxemburgo. -O proibicionismo: a prostituição é proibida, havendo sanções penais para os intervenientes – Irlanda, Lituânia, Malta, Suécia. - A regulamentação: a prostituição é regulamentada e, como tal, não é proibida desde que exercida segundo as regras estabelecidas – Áustria, Alemanha, Grécia, Holanda, Letónia, Reino Unido.Nos países onde a prostituição está regulamentada, pode afirmar-se que o tráfico de pessoas aumentou e que a prostituição é fundamentalmente exercida pelas vítimas de tráfico.Um levantamento feito pelo Grupo de Budapeste atesta que 80% das mulheres dos bordéis da Holanda são traficadas de outros países. Já em 94, a Organização Internacional das Migrações declarava que na Holanda perto de 70% das mulheres traficadas eram oriundas dos países da Europa Central e do Leste Europeu. A prostituição infantil terá aumentado de 5000 crianças em 95 para 15000 em 2001. Em toda a Europa o tráfico e a exploração na prostituição não param de aumentar. Em Portugal, um estudo de 2005 sobre a prostituição em clubes afirma que a percentagem de portuguesas é de 15%, de brasileiras é de 62%, de colombianas é de 8% e de africanas é de 12%. Um relatório da Unicef afirma que de 95 a 2005 foram traficadas 100.000 mulheres e raparigas albanesas para a Europa Ocidental e outros países balcânicos. Documentos da Unicef e da “Salvem as Crianças” revelam que «até 80 por cento das mulheres traficadas de alguns cantos da Albânia e da Moldávia são crianças, com relatos que mostram uma diminuição da idade média das crianças/mulheres que são traficadas para a prostituição.» Milhões de raparigas e jovens foram escravizadas e roubadas das suas vidas de modo a que os investidores na chamada indústria do sexo possam acumular cada vez mais capital e serem considerados empresários. Empresários da vida humana e da dignidade, em Estados que patrocinam a escravatura e a exploração dando-lhe corpo legal.Noutros países, contudo, o caminho é outro. Na Argentina, a 6 de Julho de 2011 foi publicado um decreto que proíbe a publicidade de ofertas sexuais nos órgãos de comunicação social do país. 

Em Espanha, a 19 de Julho 2010 foi apresentada uma Proposta de Resolução a instar o Governo a não subsidiar, nem realizar publicidade institucional nos grupos de comunicação social que realizam publicidade a serviços de prostituição. Em 2010, o Parlamento espanhol tinha já aprovado, por unanimidade, uma resolução que defendia o fim dos anúncios da prostituição na imprensa.Em Portugal, faz-se caminho para a abertura à consideração da prostituição como profissão. Sem uma posição claramente assumida pelos sucessivos Governos, são apoiados e financiados projectos que utilizam a denominação “trabalhadores do sexo” e cresce a banalização desta expressão. Multiplicam-se as conferências e seminários que apontam a profissionalização como a solução legal, sem cuidar sequer de uma análise fina à legislação já existente. Entendemos, no MDM, que o caminho da profissionalização não vai resolver o problema essencial, que é motivo do recurso à prostituição: a falta de meios para sobreviver ou para viver com dignidade.O que hoje dispomos no quadro jurídico português está demasiado judicializado: as vítimas de tráfico – e apenas as de tráfico internacional dado que o tráfico doméstico não tem tratamento penal autónomo – são identificadas pelo Guia Único de Recursos que, não obstante poder ser utilizado por associações, obriga à remissão às autoridades policiais, o que afasta, à partida, as potenciais vítimas de tráfico com medo de repatriamento. Os 60 dias de reflexão revelam-se insuficientes para o encontro de alternativas reais para as pessoas traficadas e o sistema público de Segurança Social, de Saúde e de Justiça está longe de garantir o acesso universal e o apoio necessário às vítimas de tráfico e às mulheres prostituídas. Soluções jurídicas e de protecção social são urgentes numa perspectiva de acção integrada direccionada à dignidade das mulheres e de todas as vítimas de tráfico, envolvendo a adequada protecção social, apoio médico e medicamentoso, protecção judiciária, nomeadamente com a concessão imediata de apoio jurídico, e condições reais de emancipação.Tudo isto a par de uma protecção que, ao invés de revitimizar pessoas traficadas lhes conceda um efectivo estatuto de vítima, permitindo a sua permanência em Portugal até que esteja assegurada a sua segurança e liberdade e um novo quadro jurídico-penal que proteja as mulheres, crianças e homens que, não sendo vítimas de tráfico, sejam explorados na prostituição, penalizando severamente quem, desta forma, mercantiliza o corpo humano e com ele cria o seu lucro e o seu rendimento.São notáveis e clarificadores os resultados de um estudo de Julho de 2011 denominado Comparing Sex Buyers and Non-Sex Buyers, que nos dá, em discurso directo, o pensamento dos clientes, na sua maioria homens: «És o patrão, o patrão total», «Até nós, homens normais queremos dizer alguma coisa e fazê-lo sem que nos façam perguntas. (…) Obediência inquestionável. Quero dizer que é poderoso. O poder é como uma droga.»ou mesmo «Podes encontrar uma prostituta para qualquer tipo de necessidade – espancamento, asfixia, sexo agressivo para além daquilo que a tua namorada faria». (para dar tempo ao diapositivo)É este o nosso grande desafio. Pensar esta realidade. Agir sobre ela. E essencialmente criar um quadro legislativo e social que proteja quem tem que ser protegido: não os proxenetas, não os traficantes, não a moral pública e os bons costumes, mas toda e qualquer pessoa que, por necessidade, seja explorada na prostituição. E enquanto existir uma mulher, uma criança, um homem nesta situação, o nosso trabalho não estará findo.Porque não podemos admitir viver numa sociedade em que se regulamente a escravatura, a exploração. E enquanto uma só pessoa seja explorada e se vê obrigada a vender o seu corpo, o seu afecto, não podemos, porque somos humanistas, considerar que essa pessoa escolheu esta profissão. Como se dizia na Associação O Ninho, em França, «o que choca não é o sexo. É o dinheiro.». É o aceitar sob capas de modernidade que é digno, que é uma escolha, vendermo-nos. Comprarmos alguém. Que chegámos aos idos de outros tempos, onde cada um de nós tem um valor de mercado.Para o MDM, a vida, a dignidade não tem preço.

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