Um domingo em Lisboa
por A-24, em 09.08.11
Aproveito a tarde soalheira mas fresca para um longo passeio a pé entre Campo de Ourique e o Saldanha. Os lisboetas andam pouco a pé: cruzo-me quase só com turistas.
De caminho, passo por ruas inteiras que são um autêntico pesadelo estético, com as fachadas dos prédios sistematicamente desfiguradas por marquises, essa triste instituição nacional – e lisboeta em particular. O que levará os nossos compatriotas a fechar as varandas neste país felizmente tão bafejado pelo sol?
No Largo do Rato, passo pela histórica Papelaria Fernandes, que ainda ali marca presença apesar das notícias sobre a sua iminente falência. Mas logo a seguir, já na rua Alexandre Herculano, verifico que a charcutaria Brasil deixou de existir: era um dos melhores estabelecimentos do género na capital, tinha clientes famosos (uma vez vi lá Mário Soares), mas nem isso a fez resistir à crise. “Foi vendida”, informa-me o empregado de um café vizinho, onde não se vislumbra um só cliente. No lugar da inconfundível charcutaria há agora obras que se destinam a um estabelecimento de características bem diferentes.Na rua Braancamp, a poucos metros do prédio onde vive José Sócrates, uma moto passa por mim e logo se imobiliza a poucos metros, num semáforo. Ouço o condutor: “Tás bom, Pedro?” É o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Luís Pedro Mota Soares. Sentado na sua vespa, com a maior simplicidade do mundo. Este é, de facto, um Governo diferente do que estávamos habituados…Perto das Picoas, na rua Sousa Martins, também o restaurante Sucre – um dos meus preferidos – deixou de existir, dando lugar a um pronto-a-comer qualquer. Os restaurantes alfacinhas sofreram uma quebra de 30 por cento na clientela desde que a crise se instalou em força. A muitos, sem crédito bancário disponível nem clientes, só resta fechar as portas.No Saldanha, entro numa das minhas livrarias favoritas. Há uma nova edição portuguesa do melhor romance da I Guerra Mundial. A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque. Tenho um exemplar velhinho, que pertenceu ao meu avô paterno, antigo combatente em La Lys. Hesito: comprarei esta versão actualizada? Mas logo nas primeiras páginas a editora me informa que o texto “está conforme” as novas regras estabelecidas no (des)Acordo Ortográfico. Desfeito o dilema: reponho de imediato o livro na estante.Folheio duas outras obras: A Volta do Gato Preto, o diário que Erico Veríssimo escreveu durante a sua permanência nos Estados Unidos, nos anos da II Guerra Mundial. Nunca li este livro, ainda por cima de um género literário que tanto me seduz. Mas reparo no preço: 28 euros. Excessivo. Pelo mesmo motivo, não trago uma biografia de George Gershwin, do brasileiro José Olympio, que também gostaria muito de ler: igualmente 28 euros. O aumento do IVA afugenta cada vez mais os leitores. Vejo por mim.Mas não saio de mãos a abanar: trago El Hombre que amaba a los perros, do cubano Leonardo Padura. Por apenas 12 euros. Dizem-me que há já uma tradução portuguesa. Mas é seguramente mais cara e assim tenho o prazer acrescido de ler Padura no original.No pórtico da obra, uma citação de Gregorio Marañón: “La vida es más ancha que la história.” É bem verdade.
Um passeio por Lisboa, Pedro Correia in "Delito de Opinião"Apenas umas horas numa tarde de Sábado, para arrasar aquilo que existiu durante um século. Nada escapou, foi tudo reduzido a pó. Cantarias, lindíssimas grades e varandas de outros tempos, portas em madeira de casquinha. Tudo para o entulho. É assim a Lisboa moderna desta "situação" no seu já mais que certo estertor. Antes de desaparecer de cena, pratica a terra queimada, revolvendo o tecido urbano, esgravatando preciosos "terrenos" em praças, avenidas e ruas. Em nome do negócio fácil, estacionamentos e do interesse do sector do betão que proporciona rendas e poleiros a uns pacóvios que ocasionalmente passam por gabinetes ministeriais, liquida-se uma cidade inteira. Caíram dois prédios em plena Praça Saldanha, hoje um local quase inóspito pela fealdade e baixíssima categoria arquitectónica escandalosamente exibida por uma Câmara Municipal que não merece tal denominação.
Uma vergonha acompanhada ao vivo pelo estupor de inúmeros transeuntes que indignados e de telemóveis na mão, faziam umas tantas fotos para o triste album de recordações do período final da 3ª República. Entre insultos, rosnares e todo o tipo de ilações acerca de mais este crime para "hotel ou terciário ver".