Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia V
por A-24, em 06.08.13
Rogou aos indianos que rejeitassem a idéia de que qualquer ser humano é impuro e que deixassem de discriminar os intocáveis. Em seu ashram, todos faziam tarefas tidas como impuras.
Gandhi também deu um novo nome aos intocáveis: harijan, que significa “povo de Deus”. E em 1933, partiu em sua polêmica jornada harijan, desgostando o establishment hindu durante sua travessia pela Índia ao militar em favor de medidas como a abertura dos templos aos intocáveis. Ao aproximar-se do fim de seu périplo, Gandhi proclamou que “a condição de intocável está quase extinta”. Doce ilusão.
Historiadores afirmam que Gandhi merece grande crédito por conseguir um enfoque nacional para a questão e por empenhar sua aura moral na campanha pela abolição da intocabilidade. Mas, na verdade, ele nunca renunciou ao sistema de castas hindu e poucos foram os resultados concretos de suas ações. Muitos intocáveis, particularmente os que têm instrução, adorariam derrubar Gandhi de seu pedestal. “Ele é o homem mais mal compreendido pelo mundo ocidental”, argumenta o professor Thorat, o intocável economista. “Gandhi de fato teve um papel importante na obtenção da independência da Índia com sua campanha não-violenta. Mas também foi responsável pela manutenção da ortodoxia do sistema de castas – o deplorável presente da Índia para o mundo.” A designação harijan, muitos afirmam, desperta piedade em vez de respeito. Intocáveis politizados preferem o termo dalit, que significa “oprimido”.
O maior pecado visto em Gandhi, porém, foi ter tolhido a atuação de um homem chamado Bhimrao Ramji Ambedkar – principal redator da Constituição indiana, arquiteto do programa de ação afirmativa da Índia, autor de mais de uma dezena de livros, fundador do primeiro partido político de intocáveis e seu único herói verdadeiro na Índia. Ambedkar nasceu em 1891 na casta intocável dos mahars, servidores domésticos. Obrigado a sentar-se separado dos meninos de castas superiores na escola, Ambedkar destacou-se como aluno brilhante. Com a ajuda de bolsas de estudos, obteve graus de doutor na Universidade Columbia, em Nova York, e na London School of Economics.
Ambedkar voltou para Bombaim (atual Mumbai) em 1923 para trabalhar como advogado e filiar-se ao nascente movimento dos intocáveis. Falava sem rodeios, era desafiador e em uma ocasião encerrou um comício queimando um exemplar das Leis de Manu. Com esse ato herético, declarou guerra. “Nada pode emancipar os intocáveis a não ser a destruição do sistema de castas”, afirmou. Sua posição estava definida: queria a abolição do alicerce religioso da vida civil.
No começo da década de 30, Ambedkar tornara-se o principal porta-voz da causa dos intocáveis. Quando o governo colonial britânico acedeu às reivindicações de líderes intocáveis em favor da participação das castas inferiores da Índia no sistema político, Ambedkar lutou por um eleitorado separado. Temia que um intocável não conseguisse jamais vencer uma eleição aberta a eleitores de todas as castas. Queria representantes no poder público escolhidos exclusivamente pelos intocáveis.
Gandhi combateu a posição de Ambedkar por princípios religiosos, receando que soluções seculares para os problemas de casta viessem a destruir o hinduísmo. Em setembro de 1932, quando parecia que os britânicos tomariam o partido de Ambedkar, Gandhi protestou, iniciando uma “greve de fome até a morte”. Com Gandhi enfraquecendo, depois de alguns dias Ambedkar não teve escolha além de ceder. Ele conseguiu a garantia de cargos reservados para intocáveis na legislatura, mas as ações de Gandhi arrefeceram sobremaneira o ímpeto de mudança radical.
A incapacidade de Ambedkar para erradicar do hinduísmo o sistema de castas levou-o por fim a abandonar a religião. Em outubro de 1956, na cidade de Nagpur, Ambedkar converteu-se ao budismo. Centenas de milhares de intocáveis logo seguiram seu exemplo. Mas dois meses depois Ambedkar morreu de causas naturais, e a conversão religiosa, embora ainda popular entre alguns intocáveis urbanos, fracassou como movimento de massa. Em aspectos importantes, porém, ele continua vivo. Representado em estátuas e pinturas – de terno azul, óculos de aros escuros, nas mãos um exemplar da Constituição –, ele figura em quase todos os bairros de intocáveis nas aldeias e em muitas áreas urbanas pobres.