Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia III
por A-24, em 04.08.13
Muita gente argumentaria que as formas mais brutas de discriminação já desapareceram, resultado de movimentos reformistas esporádicos. É verdade que, pelo menos na esfera pública, os intocáveis fizeram progresso desde o tempo em que eram espancados se sua sombra tocasse alguém de casta superior, usavam sinos para alertar de sua aproximação e levavam baldes para que não contaminassem o chão ao cuspir. Eles não podiam entrar em escolas nem se sentar em nenhum banco perto de alguém de casta superior.
A Constituição de 1950 impõe um sistema de cotas em que são reservados cargos na legislatura federal em proporção igual à dos intocáveis na população: 15%. No jargão jurídico e administrativo, eles agora são conhecidos como “castas arroladas”. Lugares reservados os intocáveis têm também em legislaturas estaduais, conselhos de aldeia, no serviço público e nas salas das universidades.
Os partidos dirigentes da Índia apoiaram esse programa de cotas apesar da violenta oposição. Turbas causaram tumultos durante 78 dias, em 1981, no estado de Gujarat, quando um estudante de casta superior não foi admitido em uma faculdade de medicina para dar lugar a um intocável. Embora muitos postos destinados ao contingente das cotas continuem desocupados, especialmente em universidades, o emprego na vasta burocracia indiana elevou o padrão de vida de alguns intocáveis, impelindo milhares à classe média.
Apesar de todas as leis, porém, o cerne do sistema de castas segue inalterado. Existem 160 milhões de intocáveis na Índia, que se proclama modelo para as nações em desenvolvimento: a democracia mais populosa do mundo, uma potência que desenvolveu indústrias de software, satélites de comunicação e usinas para a produção de energia e bombas nucleares. Durante o inverno que passei na Índia, quase não houve nenhum dia em que não ouvisse ou lesse notícias sobre ácido jogado no rosto de um menino, sobre mulher estuprada na frente do marido ou sobre algum outro ato cuja única provocação fosse simplesmente o intocável não ter sabido qual era seu lugar.
O sistema de castas hindu tem seu próprio manual de instruções. As Leis de Manu, coligidas há pelo menos 2 mil anos por sacerdotes brâmanes, prescrevem para cada varna o que comer, quem desposar, como ganhar dinheiro, quando lutar, como manter-se limpo, a quem evitar. “Manu está gravado no íntimo de cada hindu”, declara Umashankar Tripathy, sacerdote que conheci em Varanasi, a cidade de peregrinação às margens do Ganges. Tripathy senta-se de pernas cruzadas em um capacho de palha no templo onde leciona. Traja o dhoti, tanga comprida com túnica abotoada por cima. Sua roupa está imaculada e suas mãos são macias como finas luvas de couro.
Tripathy segue à risca as palavras de Manu. Explica que, como brâmane, tem de observar o código de pureza, o alicerce da divisão da sociedade. “Não como carne nem bebo álcool. Não como vegetais do tipo do gengibre ou da cebola, que são cultivados debaixo da terra. Minha mente deve ser tão pura quanto minhas roupas.” Para ele, um verdadeiro brâmane nunca deve ter contato com nenhum intocável. “Um brâmane não tocaria sequer nos pés de Gandhi”, comenta Tripathy, referindo-se ao deificado líder da independência da Índia. “Ele era um vaixá. Os brâmanes são superiores.”
Manu também determina que tocar em um corpo depois das cerimônias fúnebres finais traz grande contaminação. Por isso, cabe às castas de intocáveis, como os doms, cremar os mortos. Os doms trabalham nas margens recortadas em degraus do Ganges em Varanasi, onde os fiéis hindus levam seus mortos para serem cremados à vista do rio sagrado.
Desviando das lufadas de fumaça em Harishchandra Ghat, observo um dom, de calção e camiseta, incumbir-se da cremação de uma mulher idosa. Matru Choudhary, líder da comunidade dom na região, explica o processo num inglês que ele diz ter aprendido com os turistas. “O corpo demora três horas para queimar. Às vezes menos, com mais lenha. Quanto mais rica é a família, mais lenha compram de nós.”
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