"O Comunismo distingue-se fundamentalmente do Fascismo porque foi o primeiro." - Virgílio Ferreira (1916 - 1996) in "Pensar", Bertrand Editora, 1992.
A esquerda usa e abusa da palavra "Fascismo". Desde há décadas, quando se trata de atacar qualquer inimigo, a esquerda não hesita em rapidamente o apelidar de "fascista" e a propaganda marxista tem-se laboriosamente encarregue desde a Segunda Guerra Mundial de erguer um "muro de betão" que tenta a todo o custo esconder a velha amizade e camaradagem que em tempos a esquerda partilhou com o "papão" fascista. A esquerda padece e sempre padeceu de memória curta e infelizmente são poucos os que tanto dentro, como fora do campo político da esquerda contradizem esta tendência. Deixo aqui um breve contributo que espero que possa auxiliar alguns "camaradas" a combater a gravíssima amnésia de que padecem há demasiado tempo.
Aquando da fundação dos Fasci italiani di combattimento em 1919, uma parte significativa dos seus membros e teóricos políticos eram, à semelhança do próprio Mussolini, ex-marxistas e/ou ex-membros de organizações da esquerda radical e revolucionária. Já em 1917 e no papel de líder dos Fasci d'Azione Rivoluzionaria, Benito Mussolini apoiou abertamente a Revolução Bolchevique, tendo-se mais tarde desiludido em relação à mesma por esta não ser na sua visão suficientemente radical, vejam bem! Sendo também um admirador de Lenine, Mussolini ficou igualmente desiludido com este por considerar que o mesmo estava a ficar demasiado parecido com o Czar Nicolau II.[1]
Desde a sua génese e até tomar o poder, o Fascismo foi em muitos aspectos ainda mais de esquerda do que a própria esquerda. O apelo à acção popular revolucionária, a estrutura para-militar, a retórica anti-capitalista e anti-burguesa, o anti-clericalismo, o ódio às elites e às monarquias, todos os elementos da esquerda mais radical e violenta estavam presentes no Fascismo. Talvez a única coisa que o Fascismo partilhava com a direita fosse o fervor nacionalista, de resto nada mais o distinguia da esquerda.
No campo social, o Manifesto Fascista (Il manifesto dei fasci italiani di combattimento) publicado em 1919 por Alceste De Ambris e o futurista Filippo Tommaso Marinetti[2] propunha avanços radicais para a época como o sufrágio universal para homens e mulheres, a criação de uma jornada de trabalho de oito horas para todos os trabalhadores, um salário mínimo, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas, a redução da idade da reforma dos 65 para os 55 anos, um forte imposto progressivo sobre todo o capital, a confiscação de toda a propriedade pertencente a instituições religiosas e a revisão de todos os contratos militares, podendo o governo confiscar até 85% dos seus lucros.
Em 1924, a Itália já sob a liderança do Duce Mussolini, tornou-se o primeiro País da Europa Ocidental a reconhecer a União Soviética.[3] Se dúvidas houvesse sobre a latente irmandade entre marxistas e fascistas, estas dissiparam-se todas aqui. A este reconhecimento diplomático por parte da Itália Fascista, seguiram-se toda uma série de relações amistosas com os soviéticos que iam desde o campo económico ao campo cultural.
Na sua essência, o objectivo final tanto do Fascismo como do Marxismo era o esmagamento revolucionário da velha ordem social conservadora e burguesa e a sua substituição por uma nova ordem social baseada no culto da força, da vitalidade e da ordem em prol dos trabalhadores. A única diferença de relevo era que enquanto o Fascismo advogava o Nacionalismo, já o Marxismo seguia a linha do Internacionalismo, mas na praxis ambas as ideologias partilham muito mais semelhanças do que diferenças.
Em Portugal, o professor Salazar tornou-se um grande admirador de Mussolini e do Fascismo Italiano e chegou a ter na sua secretária uma fotografia de Mussolini autografada pelo próprio. No entanto, o modelo político seguido por Salazar, apesar de partilhar algumas semelhanças com o Fascismo Italiano, não foi na realidade um verdadeiro Fascismo devido à sua profunda interligação com a Igreja Católica que no fundo foi o que impediu que o regime caísse nos excessos de violência que caracterizaram outros regimes fascistas. Se quiserem, podem utilizar o termo "Fascismo Clerical" para caracterizar o regime de Salazar, mas mesmo assim ficam muito aquém de uma definição completa e que verdadeiramente faça justiça àquilo que realmente foi o Salazarismo.
António de Oliveira Salazar com a fotografia autografada de Mussolini sobre a sua secretária.
O ódio de Mussolini ao Liberalismo económico fica patente no facto de em 1935 já estar nacionalizada ou sob forte controle estatal cerca de 75% de toda a indústria italiana. O Duce sempre teve um "grande interesse pela URSS, talvez mais genuíno que o que sentia pela Alemanha nacional-socialista. Mussolini manteve boas relações diplomáticas com a URSS - na noite que precedeu o ataque alemão à URSS, houve grande jantar-festa na embaixada soviética em Roma, com a presença dos mais altos hierarcas do regime, pelo que as más línguas sugerem que Hitler não informou Mussolini do iminente ataque à Rússia de Estaline com medo que os amigos fascistas italianos informassem o Kremlin - e ao longo dos dois anos que se seguiram Mussolini defendeu sempre a ideia de uma paz separada entre o Eixo e a URSS. O anti-fascismo foi, pois, uma estória do pós-guerra !"
Curiosamente, foi nos anos finais da sua vida que Mussolini adoptou as políticas mais esquerdistas. Em 1943 e já como líder da então designada República Social Italiana, Mussolini insistiu que ao contrário do que muitos pensavam, ele nunca abandonou as políticas de esquerda e quis até nacionalizar a propriedade privada em 1939-1940, mas não o fez por razões tácticas que tinham a ver com a economia de guerra e a necessidade de não perturbar o sistema económico antes de vencer a guerra então em curso.[4]
Com a guerra a correr mal para as forças do eixo, Mussolini começa cada vez mais a radicalizar as suas políticas económicas. Ordena a nacionalização de todas as empresas com mais de 100 trabalhadores e pede auxílio ao ex-comunista e antigo estudante de Lenine, Nicola Bombacci, para que o ajude a recuperar a imagem do Fascismo, conferindo-lhe uma imagem de movimento progressista e amigo dos trabalhadores. Oficialmente, a política económica da República Social Italiana foi designada de "Socialização" e foi o próprio Nicola Bombacci que teorizou a política económica. Ironicamente, mais tarde Mussolini acabaria por ser fuzilado com Bombacci e os seus corpos expostos lado a lado na Piazzale Loreto.
Da esquerda para a direita: os corpos de Nicola Bombacci, Benito Mussolini, Clara Petacci, Alessandro Pavolini e Achille Starace.
A rivalidade histórica e o ódio existente entre marxistas e fascistas é muito menos um conflito entre a esquerda e a direita e mais um conflito entre irmãos de esquerda que salvo algumas excepções, nunca se entenderam entre si, nem se vão entender. O corpus ideológico do Fascismo é hoje totalmente independente da esquerda marxista e este adquiriu uma identidade própria como ideologia política. Apesar de enfraquecido, está longe da derrota e a actual crise do modelo económico-financeiro em prática no Ocidente está a criar uma "oportunidade de ouro" para que movimentos, grupos e partidos de inspiração fascista possam ressurgir em força e com a imagem restaurada.
Claro que nada do que acima se escreveu irá alguma vez ser publicado no jornal Avante! ou ser reconhecido pelas lideranças dos partidos de esquerda, sob pena destas contradizerem mais de 70 anos de mentiras produzidas pela sua própria propaganda. No fundo, a "gloriosa luta" anti-fascista não passa de uma meia-verdade, sim, é verdade que os movimentos de esquerda combateram o Fascismo, mas apenas após o ataque Nacional-Socialista contra a União Soviética é que o fizeram com seriedade, pois até lá ambas as ideologias colaboraram extensivamente e partilharam entre si um compadrio muitíssimo comprometedor.
Resta dizer que no campo do sucesso político, o Fascismo sempre bateu e vai continuar a bater a esquerda marxista em toda a linha, pelo simples motivo de que este alia dois dos mais poderosos elementos que sempre motivaram o ser humano: a luta pela Nação ou tribo se assim lhe quiserem chamar e a luta por uma utopia social que acabe com a exploração do mais fraco pelo mais forte, ou a "exploração do homem pelo homem" se desejarem utilizar um termo genuinamente marxista. Estes dois elementos explosivos são o núcleo do Fascismo como ideologia e são o que lhe conferiram a força imbatível que teve nas décadas de 1930-1940 e que provavelmente voltará a ter futuramente numa forma metamorfoseada se a actual crise do modelo económico-financeiro na Europa não se resolver a breve trecho.
[1] NEVILLE, Peter - Mussolini. Oxon, England, UK; New York, New York, USA, Routledge, 2004, p. 36.
[2] ELAZAR, Dahlia S. - The making of fascism: class, state, and counter-revolution, Italy 1919–1922. Westport, Connecticut, US, Praeger Publishers, 2001, p. 73.
[3] PAYNE, Stanley G. - A History of Fascism: 1914-1945. The University of Wisconsin Press, United States of America, 1995, p. 223.
[4] SMITH, Denis Mack - Mussolini: A Biography. New York, Vintage Books, 1983, p. 311.
[5] SMITH, Denis Mack - Mussolini: A Biography. New York, Vintage Books, 1983, p. 312.
“A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.
“Museu das Vítimas dos Genocídios”, este é o nome do imponente edifício que em Vilnius, capital da Lituânia, pretende mostrar ao público a história das ocupações soviética e nazi. O edifício construído no final do século XIX reflecte a história conturbada do país e da cidade: província do império russo até 1914, Vilnius foi ocupada pela Alemanha durante a Primeira Grande Guerra e em seguida pela Polónia até 1939. Em 1940-1941, ao abrigo do pacto Ribbentrop-Molotov, a União Soviética entra na cidade e o edifício do actual museu foi quartel-general da NKVD – a polícia política soviética – e prisão dos recalcitrantes.
Com a invasão nazi, no verão de 1941, o edifício torna-se sede da Gestapo e doSonderkommando A – esquadrão de extermínio, que com o apoio de letões e lituanos, levou a cabo até 1944 o assassinato da quase totalidade dos 250 mil judeus da Lituânia, assim como de ciganos, resistentes nacionalistas e comunistas. E finalmente, entre 1945 e 1991, durante a longa ocupação soviética, o edifício torna-se de novo sede da polícia política comunista, rebaptizada em 1952 com o nome de KGB, local de interrogatório, tortura, prisão e execução.
Com uma história assim, o que nos conta hoje o Museu? Foi o que fomos ver neste verão de 2014, no decorrer de mais um “Seminário sobre Rodas”, viagem de estudo organizada pela Memoshoá – Associação Memória e Ensino do Holocausto, que desde há cinco anos percorre a Europa nos “passos” da Shoá com professores do ensino básico e secundário.
A maior parte dos três imensos andares do edifício é preenchida por aquilo que foi a prisão do NKVD-KGB. A guia, uma mulher jovem, conduz-nos demoradamente pelos meandros da prisão, as suas alas de interrogatório e tortura, celas e local de execução dos prisioneiros… Mas no decorrer da visita guiada apercebemo-nos da existência, sem qualquer menção nem paragem por parte da guia, de uma pequena cela com uma estrela de David ao fundo. Trata-se de um espaço exíguo onde o nosso grupo de 27 pessoas não cabe todo ao mesmo tempo, o único dedicado ao período nazi em todo o museu. Questionada, a guia remete para o final a visita ao referido espaço. Na verdade, esta não terá lugar: sob pretexto de que “somos especialistas” e que não precisamos dela, abandona-nos precipitadamente. Parece-nos evidente que não está preparada para nos falar do nazismo e sobretudo das vítimas judias…
O Museu das Vitimas do Genocídios conta bem a história de quase meio século de ocupação soviética: os documentos, as fotos e testemunhos são abundantes, esclarecedores e constituem uma clara condenação do regime comunista. Conta-nos também o combate pela independência da Lituânia e a resistência nacional e popular anti-soviética ao longo de todo esse período histórico. Mas a história da ocupação nazi é-nos praticamente ocultada. A narrativa do Museu é clara: sim, fomos ocupados pelos nazis entre 1941 e 1944, mas o verdadeiro sofrimento, aquele que tem de ser contado, narrado e nunca esquecido, é o meio-século de ocupação soviética. Esta é a narrativa que encontrámos com pequenas diferenças e algumas (poucas) excepções nos três países do Báltico: Lituânia, Letónia e Estónia. Os grandes museus nacionais evocam o sofrimento das populações sob o regime soviético, calando ou minimizando o massacre dos seus cidadãos judeus.
É compreensível? Em parte sim. Independentes entre 1920 e 1939, os três países ocupados pela URSS em 1939/1940, ao abrigo do Pacto Molotov-Ribbentrop, acolhem os nazis em 1941 como libertadores e muitos colaboram no extermínio dos judeus, ciganos e quadros comunistas. E em 1944-45, quando finalmente aguardam pelo restabelecimento da independência nacional, são de novo ocupados pelo poder soviético e desta vez até à sua derrocada, em 1991. São pois décadas de esperanças frustradas, de repressão, de deportações para os goulags siberianos. Por outro lado, nestes países ferozmente nacionalistas, as minorias étnicas ou religiosas não “são parte”, são os “outros”: a cultura define a nacionalidade, herança do império russo. Presentes desde o século XIV na Lituânia, na Letónia no século XVI e no século XVIII na Estónia, os judeus são considerados uma minoria nacional não autóctone, com as consequências óbvias em termos de marginalização social.
Mas vinte e três anos depois da libertação, é tempo de reconhecer que a história dos países do Báltico não é apenas uma longa e heróica luta pela independência. É também uma história de quatro anos de colaboração com o nazismo no extermínio praticamente total de uma parte significativa da sua população. Nas valas comuns das florestas de Ponary, em Vilnius, de Rumbula e de Bikernieki, perto de Riga ou de Klooga em Tallinn, jazem as cinzas dos cerca de meio milhão de judeus das comunidades dizimadas entre Julho e Dezembro de 1941, pelos Einsatzgruppen que acompanham o exército nazi na Operação Barbarossa. Em Janeiro de 1942, na conferência de Wahnsee, os três países do Báltico já são considerados praticamente judenrein – “limpos” de judeus. A brutalidade da matança coincide muito provavelmente com a decisão de Hitler nesse Outono de 1941 de levar a cabo o que hoje chamamos de Holocausto: o extermínio total do povo judeu.
Nas imensas e belíssimas florestas do Báltico que percorremos, pequenos e simbólicos memoriais erguidos perto das valas comuns por alguns sobreviventes, ou seus descendentes imigrados, financiados na sua maioria por entidades judaicas e doadores americanos, lembram um genocídio que liquidou perto de 100% de comunidades com uma vivência cultural única no mundo judaico. Os três países têm em comum uma intensa vida religiosa nos séculos XVIII e XIX à qual sucede uma vivência politica e cultural marcada pela secularização: desenvolvimento do movimento operário e dos movimentos sionistas, crescimento de uma imprensa, literatura e ensino em Iídiche e hebraico. Na viragem do século, Vilna, em russo, Vilno, em polaco, Vilnius em Lituano e Vilné em Iídiche, é o centro de todos os movimentos que suscitam uma transformação radical da vida judaica. A sua situação geográfica explica este papel chave. Considerada a “Jerusalém da Lituânia”, é um ponto de confluência entre o Ocidente e Oriente europeus, onde as correntes de vanguarda encontravam eco numa intelectualidade muito receptiva e preparada.
Na véspera da II Guerra, as cidades do Báltico partilham assim uma brilhante cultura judaica e universal com um forte tecido associativo, cultual e cultural. Tudo isto será destruído pelo genocídio nazi. No final dos anos 1990 viviam apenas no conjunto dos países bálticos independentes, 25.000 judeus e os vestígios do seu brilhante passado praticamente desaparecidos. Hoje, pelo que pudemos apurar, serão ao todo entre quinze a dezassete mil a lutar pela sobrevivência das suas comunidades.
O poeta de língua Idiche, Abraham Sutzkever, escreveu: “E se na minha cidade não restarem mais nenhuns judeus, as suas almas continuarão a habitar as suas ruelas sinuosas”. Mas mesmo as almas precisam de espaço na memória dos povos. Vilnius, Riga, Tallinn, cidades que procuram sarar as feridas de uma longa e recente ocupação, talvez ainda não sejam capazes, mas o que elas nos demonstram é que a memória europeia não é simétrica no leste e no ocidente europeu. “A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.
Recuperando um texto de Jorge Costa n'O Insurgente (2008)
A 31 de Março de 1989, Vasco Pulido Valente escrevia, n’O Independente, um artigo (As origens da III Guerra Mundial) no qual criticava severamente todos aqueles que aplaudiam a perestroika na URSS e a consequente “liberalização” do país. Para Vasco Pulido Valente, essa “liberalização” faria com que o “império russo” começasse a “tremer nos fundamentos” e ficasse numa “péssima posição para resistir aos choques que o esperam”, dos quais resultariam apenas e só um “caos de nações independentes, condenadas ao conflito externo e à tirana interna”: na URSS como no “antigo império dos Romanov” viviam “quinze nacionalidades e dez etnias diferentes”, que só o “chicote” e a “força bruta” mantinham em ordem. Se o “chicote”, por virtude da “liberalização”, deixasse de ser usado, a “desintegração” do “império russo”, como a desintegração dos Impérios Otomano e Hasburgo décadas antes, apenas traria o conflito étnico e um eventual alastramento do conflito (a tal “III Guerra Mundial” cujas “origens” Vasco Pulido Valente via na desintegração do “império russo”).
A Guerra da Geórgia é ainda um dos restos deixados por essa desintegração. Quando a Geórgia se libertou da tutela soviética, duas regiões no seu território (a Abkhazia e a Ossétia do Sul) mantinham uma maioria de “russos étnicos” na sua população. A Ossétia do Sul declarou-se uma República Soviética (um acto que não foi reconhecido pela Geórgia), e após uma derrota imposta às forças militares georgianas, os separatistas da Ossétia realizaram o primeiro de dois referendos (não reconhecidos) nos quais a maioria da população aprovou a reunião do território com a Ossétia do Norte, sob a soberania russa. A Geórgia sempre reclamou que a Ossétia do Sul fazia parte do seu território, e mostrou-se até pronta a oferecer maior autonomia política, proposta rejeitada pelos separatistas, cada vez mais próximos da Rússia, principalmente após Vladimir Putin lhes ter entregue passaportes russos, que na prática os transformam em cidadãos da Rússia, dessa forma “obrigada” (por si própria, note-se) a protegê-los. Após confrontos entre forças militares georgianas e separatistas da Ossétia, a Rússia interveio, com o argumento de que uma “limpeza étnica” estaria a ter lugar. A comunicação social ocidental entretém-se a tentar identificar quem é o “mau da fita” nesta crise, e qual o “injustiçado”. Será difícil arranjar uma resposta que satisfaça toda a gente. Mas há algo bem mais importante em toda esta crise: perceber por que razão a Rússia interveio.
...e é por isso que é perigosa
Ao contrário do que escreve João Marques de Almeida no Diário Económico, a acção russa na Geórgia não significa o “regresso daquela para o topo da hierarquia do poder mundial”. Antes pelo contrário: a Rússia ataca a Geórgia porque sabe que está fraca, e acima de tudo, a enfraquecer. A intimidação de países vizinhos, o abuso da sua posição no mercado energético, ou os estranhos assassinatos de opositores ao regime de Putin, fizeram com que os observadores ocidentais falassem do “ressurgir” do “urso russo”. O crescimento económico russo, à boleia do aumento do preço dos produtos energéticos, apenas lhes confirmou essa ideia.
Na realidade, o “urso” está ferido, e com gravidade: como notou há tempos Fraser Nelson, o futuro demográfico da Rússia é negro, devido aos graves problemas de abuso de de drogas e bebidas alcoólicas da sua população, e ao elevado número de pessoas contaminadas com o HIV; no plano militar, o orçamento de Defesa da Rússia correspondia a apenas 5% do americano. Por outro lado, a receita para o “milagre económico russo” poderia ser também a receita para o seu desastre: uma eventual queda do preço dos produtos energéticos seria um rude golpe para uma economia excessivamente dependente dos lucros que daí tem retirado. Para além do mais, os estados vizinhos vão-se aproximando cada vez mais dos EUA: a Polónia, a Hungria e os Estados bálticos já fazem parte da UE da NATO, e Ucrânia e Geórgia já receberam promessas de que serão admitidos.
É por isto que a Rússia ataca a Geórgia agora (e chantageia os seus vizinhos com o abastecimento energético, ou mata os opositores ao regime). Porque os seus responsáveis sabem que à medida que os anos passarem, terão cada vez menos capacidade para o fazer, e que se os seus vizinhos entrarem na NATO, nada poderão sem fazer sem arrastarem forçosamente os EUA para um conflito. Esta é, aliás, a razão pela qual a Guerra da Geórgia é perigosa, tal como um eventual conflito militar entre a Ucrânia e a Rússia também o será: a Rússia prefere que uma eventual guerra a larga escala tenha lugar agora, em vez de anos mais tarde.
Tal como a Alemanha em 1914 (a braços com o abrandamento do crescimento económico em relação ao aumento da despesa pública, o aumento dos custos da dívida pública, e o receio de ser “cercada” pelos planos militares russos e ingleses) deu o seu “cheque em branco” à Austria para atacar a Sérvia, também a Rússia deu aos separatistas um “cheque em branco” para provocar a Geórgia, pois se a Rússia “tiver” de entrar em conflito com esse país, mais vale ser agora, antes de os países ocidentais serem obrigados a auxiliá-la, do que quando a NATO “cercar” a Rússia. O que torna esta disposição russa para “correr riscos” particularmente preocupante é o facto de essa ausência de “obrigação” de auxílio de países como os EUA à Geórgia não facilitarem a sua posição. Pois tal como a Inglaterra em 1914 (que, como Asquith repetidamente insistia, por nada estava obrigada a defender a neutralidade belga do avanço das tropas alemãs) os riscos de não ir em auxílio do pequeno estado ao qual se prometeu protecção talvez sejam demasiado grandes.
Em 1914, a Inglaterra temia que a “anexação da Bélgica e da Holanda” fizesse com que a Alemanha tivesse acesso aos portos da costa do Canal, em posição de atacar as ilhas britânicas, e que a “elevada indemnização imposta à França” colocasse a Alemanha numa “posição dominante” no continente, que poderia “colocar à sua disposição” uma futura “preponderância naval” (a tradição estratégica britânica sempre procurara limitar a fraqueza das suas forças militares terrestres através de duas linhas essenciais: a primeira, como o Sir Humphrey de Yes Minister diz, “manter a Europa dividida”, para que a sua superioridade naval (a segunda) não fosse posta em causa por uma potência hegemónica que a pudesse suplantar). Hoje, dificilmente os EUA (e os países europeus) se sentirão confortáveis com um eventual domínio russo do Cáucaso, e principalmente com o controlo do oleoduto BTC, que transporta o petróleo do mar Cáspio para a Turquia (que de certeza não quer o controlo russo da Geórgia, e que é membro da NATO), e que oferece ao Ocidente uma alternativa aos oleodutos controlados pela Rússia.
Voltemos a 1914: apesar de, como disse, a Inglaterra não estar obrigada a defender a neutralidade belga, havia no seio do governo britânico a ideia de que, se perdesse o “seu bom nome”, a Inglaterra arriscava-se a “destruir” a sua “posição no mundo”. Ao não respeitar uma aliança, arriscava-se a que, no futuro, os seus aliados a imitassem, isolando-a. Ora, se é verdade que os EUA não estão “obrigados” a defender a Geórgia, não é menos verdade que a Geórgia tem várias tropas no Iraque. Se os EUA abandonarem um aliado que esteve do seu lado quando eles precisaram, todos os seus outros aliados pensaram duas vezes antes de colaborarem com a América. Países como a Polónia, ou a Ucrânia (aqueles que temem a Rússia e dos quais os EUA e a “Europa” precisam) dificilmente se sentiriam seguros se os EUA fechassem os olhos ao ataque russo à Geórgia.
A gravidade da situação reside no facto de, como escreve Anne Applebaum, tudo estar nas mãos da Rússia. Um país que entra em acção para eliminar o status quo não aceitará a sua restituição. Outra possibilidade poderia passar pela ocupação da Ossétia do Sul e da Abkhazia por forças de manutenção da paz, mas um país que age contra a Geórgia com o objectivo de impedir a sua entrada na esfera de influência do Ocidente dificilmente estará disposto a que esses mesmo países enviem tropas para a sua fronteira. A única forma de o conseguir seria apresentar esta proposta juntamente com a ameaça de que, se esta for rejeitada, os aliados da Geórgia não teriam outra alternativa senão entrar em guerra com a Rússia. O risco desta hipótese é que a Rússia pode preferir a concretização da ameaça à solução pacífica (mais uma vez, a “solução” é precisamente aquilo que se quis evitar com o ataque á Geórgia): a sua fraqueza poderá levá-la a preferir arriscar tudo agora, em vez de ficar à espera do futuro. A Rússia responderia ao bluff dos EUA. E como uma III Guerra Mundial não estará na lista de desejos de muita gente nos EUA e na Europa, o melhor será não arriscar o tal bluff: se apostarmos nele, ou o levamos até ao fim, o que resultará numa tragédia, ou ficaremos à mercê da Rússia. Mas ficar a assistir ao que a Rússia fizer na Geórgia poderia não ser garantia de nada. Os países que realmente não querem ver a Rússia com a rédea solta (Polónia, Ucrânia, República Checa, os países bálticos) e aqueles que não estiverem dispostes a ver a Rússia tomar conta das suas mais-valias geo-estratégicas (o problema da Turquia com o oleoduto BTC), podem não ser tão cautelosos como outros países mais distantes. E como eles são membros da NATO, a sua entrada numa guerra com a Rússia significaria uma de duas coisas: ou a tal “III Guerra Mundial” que se pretende evitar, ou a desintegração da NATO, e a consequente insegurança dos países europeus.
Distraída com os Jogos Olímpicos, a comunicação social não se apercebe da gravidade do que se passa na Geórgia. Iludida pela coreografia russa, a intelligentsia ocidental não percebe por que razão esta crise é tão perigosa: a percepção russa de que está a ficar cada vez mais fraca em relação aos seus “rivais” (e de que essa tendência não será invertida nos próximos tempos), faz com que esteja disposta a “agitar” o xadrez internacional, e mais grave ainda, com que qualquer tentativa de “refrear” os seus ânimos tenha poucas hipóteses de ser bem-sucedida, pois para a Rússia, precisamente porque se sente enfraquecida e a enfraquecer, o cumprimento de qualquer ameaça será preferível ser levado a cabo agora, do que ser adiado para mais tarde; por outro lado, as circunstâncias particulares deste conflito (o facto de ele envolver um aliado próximo dos EUA e afectar interesses geo-estratégicos de membros da NATO), faz com que a possibilidade de todo o Ocidente ser arrastado para uma guerra a larga escala (ou, em alternativa, ver ruir todo o seu edíficio de Defesa) não seja assim tão longíqua. Se a Rússia realmente quiser a “III Guerra Mundial” que, há anos atrás, Vasco Pulido Valente escreveu que iria decorrer da desintegração do seu império, dificilmente poderemos fugir a ela.
Faz hoje 30 anos que faleceu Leonid Brejnev, dirigente comunista da União Soviética entre 1964 e 1982.
Recordo esse dia como se fosse hoje, pois tratou-se de um grande choque para todos. O anterior secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, José Estaline, tinha falecido em março de 1953 e, por isso, parece ter-se criado a ideia de que Brejnev era eterno. Nesse dia, eu tinha bilhete para viajar para Tallinn, para onde devia ir ilegalmente, pois os estrangeiros não tinham direito a abandonar Moscovo sem um visto especial, mas a minha filha estava para nascer, o que era bem mais importante do que uma multa. As autoridades soviéticas tomaram medidas de segurança especiais em Moscovo e, por isso, só regressei à capital soviética depois do funeral de Brejnev, a que assisti pela televisão. Receava que houvesse controlo de documentos nas estações de caminho de ferro e fosse apanhado pela milícia. Mas o que me levou a recordar esta data foi o que li hoje na imprensa russa. Passo a citar: “Num texto para a agência Ria Novosti, o escritor e jornalista Vadim Dubnov descreveu as duas décadas de Brejnev – período a que se convencionou chamar "estagnação" - como um "socialismo light". “Ele era tudo para nós, ele estava em toda a parte”, escreveu, lembrando que o preço da vodka, bebida nacional russa, aumentou apenas em metade durante os 18 anos em que Brejnev governou. “Muitas pessoas recordam a era da ‘estagnação’ com nostalgia”, observou, por seu lado, a agência russa Itar-Tass.
“Muitos dos que eram jovens durante a ‘estagnação’ têm saudades desses anos em que todos beneficiavam de uma proteção social e tinham confiança no futuro”, escreveu a agência. Ainda que o regime de Brejnev se tenha pautado também pela repressão dos opositores ao regime, o fim da sua era trouxe “nepotismo” e “um cinismo geral”, segundo uma reportagem mostrada na televisão Pervyi Kanal. Já velho e doente, Brejnev teve sempre a compaixão de todos, porque, assinalou a mesma reportagem, “não foi nem sanguinário, nem vingativo, foi, de facto, diferente dos seus predecessores””. Estou de acordo que a vodka era barata, mas discordo que fosse uma época de “socialismo light”. Diria que vivemos (no meu caso, a partir de 1977 e até 1982) um período de decadência do “surrealismo socialista”, ou, para os que preferirem, do “socialismo surrealista”, vai tudo dar ao mesmo. Se nos esquecer-nos que as perseguições contra os dissidentes aumentaram e a expulsão dos melhores filhos da URSS era cada vez mais frequente, então o regime era mais “light”, porque deixou de fuzilar os opositores sem qualquer julgamento e melhorou um pouco as condições de vida nos campos de concentração (campos de reeducação para alguns). Depois do terror de Estaline e da instabilidade de Khrutchov, o período de Brejnev foi um tempo de calma se nos esquecermos que foi nessa época que a URSS se envolveu na invasão da Checoslováquia, em guerras no Terceiro Mundo (Angola, Moçambique, etc.) e, por fim, na invasão do Afeganistão. Para os que viviam em Moscovo como eu, não se podem queixar da vida, porque o abastecimento das lojas era sofrível. Havia falta de muita coisa, mas alguma coisa aparecia. O saco de rede para os produtos e o fio para transportar ao pescoço os rolos de papel higiénico andavam sempre no bolso ou numa pasta para o que desse e viesse. Porém, para os que viviam na província, esse período ficou marcado pelas viagens a Moscovo para comprar alguma coisa que aparecesse nas lojas: mortadela, lápis, cadernos, etc. O culto da personalidade de Brejnev aumentava à medida que as suas capacidades psíquicas, o que tornava o dirigente comunista um alvo perfeito de anedotas. Apenas uma: porque é que Brejnev transporta às costas um saco de cimento? Para não cair para a frente com o peso das medalhas!”. Depois, o dirigente soviético, quando já estava mesmo caquético, começa a escrever livros com tiragens de milhões de exemplares nas mais exóticas línguas do mundo. Os amantes de alfarrabistas nos países lusófonos talvez ainda consigam encontrar a “tríade imortal”: “Terra Pequena”, “Terras Virgens” e “Ressurreição”. Pelo menos, as edições “Avante” não deixaram escapar a obra deste homem que tinham mais títulos e cognomes do que o rei D.Manuel I depois da descoberta da Índia: “secretário-geral do PCUS, presidente do Presidium do Soviete Supremo da URSS, três vezes Herói da URSS, duas vezes Herói do Trabalho Socialista, Prémio Lenine de Literatura, etc. etc.” As más-línguas diziam que só lhe faltava um título: o de “Mãe Heroína”, concedido às mulheres que tinham mais de dez filhos. Foi na época de Brejnev que na produção industrial começou a aparecer desenhado um homem de braços abertos, semelhante à obra imortal de Leonard da Vinci. As autoridades comunistas chamavam-lhe “símbolo de qualidade”, pois só dele eram dignos os produtos de melhor qualidade, mas as “más-línguas anti-soviéticas” deram-lhe outra leitura. Tratava-se de um homem com os braços abertos a gritar: “Não podemos fazer melhor!”. O carreirismo político (o cinismo total) estava na moda. Eu conheci algumas pessoas que aderiram por convicção ao Partido Comunista, mas isso era raro entre os jovens. Estes queriam fazer carreira e uma grande parte deles são os que, no espaço pós-soviético, constroem actualmente o capitalismo com o mesmo êxito com que construíram o comunismo. Posso ter saudades dessa época, pois era jovem! Mas não tenho saudades nenhumas da forma absurda como era dirigida a URSS. O resultado começou-se a ver rapidamente, apenas três anos depois (1985), mas após mais dois secretários-gerais ainda mais decrépitos do que Brejnev. Os pomposos funerais de dirigentes comunistas transformaram-se numa banalidade. Descanse em paz, mas não volte… in Da Russia10-11-2012
Na época soviética, a Lituânia e a Bielorrússia faziam parte da URSS e muitas aldeias amontoavam-se em cima de uma fronteira que só existia no papel. Hoje, ir ao outro lado tornou-se um pesadelo.
Há vinte anos, a Lituânia e a Bielorrússia pertenciam à União Soviética. Os dois vizinhos estavam separados apenas formalmente, por uma linha traçada num mapa. Hoje, uma cerca marca a fronteira, uma espécie de nova cortina de ferro erigida após a queda do comunismo. Enquanto a Lituânia se tornou membro da NATO, da União Europeia e pertence ao espaço Schengen, o regime autocrático de Alexander Lukachenko reina na Bielorrússia.
Essa cerca de arame, encimada por rolos de arame farpado, não divide unicamente os dois países, mas também uma aldeia. A parte lituana de um lado, conhecida pelo seu restaurado castelo do século XVI e pelo seu festival de música Be2gether, chama-se Norviliskes; a parte bielorrussa do outro, Piackunai. Algumas famílias ficaram separadas, outras estão longe dos seus vizinhos de sempre, da igreja, do cemitério.
“A minha tia mora do outro lado da fronteira. Falamos através da cerca. Nem lituanos nem bielorrussos o proíbem. Só precisamos da ajuda dos vizinhos para combinar a hora”, conta Stanislaw Alencenowiczius, cuja casa marca o fim do território lituano. A fronteira passa exatamente no meio do seu campo de batatas.
Apesar de as duas aldeias distarem apenas alguns passos uma da outra, do outro lado da fronteira entramos num outro mundo. A noroeste do terreno de Stanislaw Alencenowoczius, distingue-se entre as árvores o branco castelo de Norviliskes. A Leste, há apenas casebres de madeira abandonados, alinhados atrás da cerca de arame.
“Por que hei de desrespeitar a lei?”
Outrora, este homem nascido na Lituânia, costumava receber a visita dos seus parentes da Bielorrússia e ele próprio ia visitá-los frequentemente. Hoje, para ir a casa da tia, com quem pode conversar em voz alta, tem de fazer 40 quilómetros até à cidade de Salcininkai para conseguir um visto no centro cultural bielorrusso, antes de se dirigir ao posto fronteiriço. A estrada que passa em frente da casa de Stanislaw Alencenowiczius acaba numa porta fechada a chave. A alguns passos da fronteira, do lado lituano, não há sinais de vida na guarita de metal verde.
Do outro lado, não há um único bielorrusso em funções. Mas não nos deixemos enganar: é proibido atirar objetos de um lado para o outro da fronteira ou tentar passar por cima da cerca. Mal começámos a caminhar ao longo do muro, apareceu um miniautocarro verde escuro sem qualquer identificação. Parou durante alguns minutos e depois foi-se embora tão discretamente como tinha chegado.
Em Norviliskes, a fronteira separou Leokadija Gordiewicz do marido e das duas irmãs. Uma, mora em Piackunai, apenas a 500 metros dali. A sua colega de escola também ali se instalou, mas é impossível manter aquela relação. As mulheres nem sequer se comunicam através da vedação. “Por que hei de desrespeitar a lei?”
Casada na época soviética, primeiro, viveu com o marido na Lituânia. Depois, ele arranjou trabalho na Bielorrússia, conseguiu um passaporte bielorrusso e decidiu ficar do outro lado da fronteira, em Asmena. A nossa interlocutora nunca visita os seus parentes. Uma viagem até Salcininkai e um visto anual custam 600 litas [174 euros]. Ela não pode dispor desse dinheiro.
“Aqui começa a Europa”
Quando se lhe pergunta quando foi a última vez que esteve com o marido, Leokadija Gordiewicz põe-se a fazer contas de cabeça. Já foi há uns anos, mas ela não se lembra exatamente há quanto. “Gostava de me divorciar, mas é muito caro”, diz a rir. Encara todas as perguntas com humor, mas dificilmente esconde o sofrimento com que responde, quer seja por causa desta vida separada quer por causa das suas dificuldades financeiras.
A meio da conversa, um miniautocarro passa a caminho do castelo de Norviliskes. Segundo Leokadija Gordiewicz, ao fim de semana, não faltam visitantes. “Os carros são tão bonitos. No entanto, toda a gente diz que vivemos mal. Mas de onde veem eles? Da Bielorrússia.” Ela não tem dúvidas, aqueles carros são comprados graças ao dinheiro ganho vendendo cigarros e gasolina mais baratos [vindos de contrabando da Bielorrússia].
Numa outra aldeia, Sakaline, igualmente dividida, a visão é a mesma. As casas lituanas estão pintadas de cores diferentes, nos jardins, os canteiros de flores estão bem tratados, as hortas cuidadas e os ramos das macieiras vergam sob o peso dos frutos. Do outro lado da fronteira todas as casas estão abandonadas. Mas, perto da guarita verde do posto fronteiriço, encontramos um todo-o-terreno e um guarda fronteiriço de serviço. Aqui, é preciso vigiar, caso contrário, voam os pacotes de cigarros.
“Aqui começa a Europa”, afirma orgulhosamente Ceslava Marcinkevic, chefe do cantão de Dieveniskes, a pequena cidade deste pedaço de terra lituana na Bielorrússia, a uma hora de carro de Vilnius, na Lituânia. “Mas também acaba aqui, porque, a toda a volta, há apenas uma cerca de arame que separa Estados e famílias. As pessoas não se podem visitar umas às outras. As possibilidades existem, mas custam tempo e dinheiro.” Este pequeno território, o enclave de Dievenikes, estende-se ao longo de cerca de 30 quilómetros dentro de território bielorrusso.
O cachimbo de Estaline
Em 1939, quando as fronteiras da Lituânia foram redesenhadas no Kremlin depois do território de Vilnius ter sido devolvido à Lituânia, o cachimbo de Estaline estava pousado em cima do mapa, ninguém se atreveu a desviá-lo, contornaram-no. É esta a lenda que os habitantes daquelas terras gostam de contar com um sorriso dissimulado.
A história verdadeira não é assim tão trepidante. Em cem anos o traçado da fronteira mudou, pelo menos, cinco vezes. Os habitantes mais velhos da região divertem-se a contar que, sem terem de mudar de casa, conseguiram viver em três Estados diferentes, a Polónia, a União Soviética e, depois, a Lituânia ou a Bielorrússia. O território de Vilnius pertenceu à Polónia durante quase todo o período entre as duas guerras. O exército vermelho ocupou-o em 1939, mas a fronteira só foi traçada em 1940, quando a URSS já era dona e senhora da Lituânia.
Quando os dois países reconquistaram a independência, a fronteira interna tornou-se o limite entre os dois Estados e visitar os vizinhos era possível sem muitas restrições. Os bielorrussos podiam ir à Lituânia rezar e entregarem-se ao recolhimento, no cemitério, junto dos túmulos dos seus parentes próximos.
Mas com a adesão da Lituânia à União Europeia, a fronteira com a Bielorrússia, que se estende por 677 quilómetros, tornou-se a fronteira externa da União Europeia e, a seguir, a fronteira do espaço Schengen, daí a necessidade de a vigiar ainda mais contra o contrabando e a imigração ilegal. O visto que antes custava cinco euros custa agora 60. Para entrarem na Lituânia, os bielorrussos que vivem ali mesmo ao lado da fronteira têm de ir ao consulado de Grodno, a mais de 100 quilómetros, entrarem na fila, voltarem mais uma vez para irem levantar o visto, passar a fronteira e, finalmente, chegarem a Norviliskes, que é mesmo ali, do outro lado. Ir visitar a família que vive a umas centenas de metros é mais complicado do que ir passar o fim de semana a Londres ou a Paris.
Os dois movimentos ideológicos que mais marcaram o século XX, o comunismo e o fascismo na sua versão mais radical e violenta, o nazismo, foram duas faces da mesma moeda. Em que pese diferenças teóricas de propósitos dessas ideologias, seus métodos e finalidades se equiparam, se mesclaram e as tornaram siamesas quanto à violência inaudita que usaram contra os seus próprios cidadãos e ao mal que causaram à humanidade. Farinhas do mesmo saco, emanavam o seu poder absoluto de um Estado forte, acima do cidadão, e de um partido único que ditava as directivas de governo, cujo chefe se confundia com o chefe do partido.
O nazismo, que cresceu rapidamente nos anos 30 do século passado, é o nome do movimento liderado pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), de Hitler. Como o próprio nome do partido deixa implícito, era um movimento SOCIALISTA e NACIONALISTA, o que permite classificá-lo como de esquerda e de direita ao mesmo tempo, numa aparente contradição. A parte socialista da sua composição era revolucionária, populista e militante e conduziu os seus membros a confrontos brutais de suas milícias fardadas com outras organizações socialistas e democráticas na Alemanha de entre guerras. Já a parte nacionalista era uma espécie de aberração nunca antes vista em partidos fascistas ou quaisquer outros, nem mesmo na Itália onde o movimento havia nascido com Mussolini em 1922. Os nazis apregoavam, contra todas as evidências científicas e antropológicas, que os alemães pertenciam a uma “raça superior”, predestinada a sobrepor-se a todas as outras e dominar o mundo. Faziam apologia de que necessitavam da lebensraum (espaço vital) que seria conseguido através da eliminação e escravização de povos sub-humanos, eslavos, polacos, ucranianos e ocupação das suas terras a leste. Pior do que tudo, segundo o livro Mein Kampf (Minha Luta) de Hitler, precisavam eliminar todos os judeus do planeta, a quem chamavam de lixo, percevejos e outros adjectivos impublicáveis, e a quem atribuíam todos os males da humanidade. Após assumir o poder em 1933, logo no ano seguinte realizaram um expurgo no seu próprio partido, “a noite dos longos punhais” onde assassinaram centenas de militantes das SA, órgão paramilitar que dava apoio a Hitler durante as suas campanhas políticas, e costumava espancar, torturar e até matar militantes de outros partidos. Em seguida puseram em execução os seus anunciados planos de exterminar todos que lhes fossem adversários políticos ou, meramente, seres que não tinham direito a vida como: judeus, ciganos, eslavos, negros, testemunhas de Jeová, homossexuais, comunistas, doentes mentais e deficientes físicos. Criaram um plano de eutanásia que alcançava os “pesos mortos” da sociedade alemã, e campos de concentração (Dachau, Buchenwald, Ravensbrück) onde matavam de fome, doenças e exaustão os seus oponentes e as “raças inferiores”. Em 1935 os nazis criaram as tais leis de Nuremberga, direccionadas aos cidadãos judeus e às suas famílias, de modo a torná-los párias na sociedade que viviam há centenas de anos. Com a guerra iniciada em 1939, os nazis deram vazão aos seus instintos através da matança de milhões de civis inocentes, especialmente judeus, da Alemanha e de países ocupados. O chamado Holocausto levou aos campos de extermínio (Auschwitz, Belzek, Birkenau, Bergen-Belsen, Chelmno, Majdanek, Sobibór, Treblinka) e câmaras de gases, seis milhões de judeus e perto de três milhões de outras etnias, inclusive alemães. No leste, aquando a invasão da Rússia, grupos de extermínio das tropas SS acompanhavam a Wehrmacht (exército alemão), e matavam com um tiro na nuca civis judeus e as suas famílias bem como comissários políticos soviéticos. Só na ravina de Babi Yar, na Ucrânia, dezenas de milhares de judeus foram fuzilados cobardemente, aliás, cobardia era a marca registrada das acções praticadas pelas SS.
O comunismo, interpretação soviética radical do socialismo definido e defendido por Marx no seu livro “O Capital”, era uma auto-definição criada pela vanguarda de esquerda que se dizia “a única forma verdadeira de socialismo”. Em contraposição ao nazismo, que era considerado de “extrema-direita”, o comunismo dizia-se de “extrema-esquerda”. Na verdade, assim como o fascismo, o movimento comunista tinha a sua própria mistura de elementos esquerdistas e direitistas. Enquanto fosse revolucionário tendo derrubado a elite que depôs a monarquia czarista dos Romanov, era ao mesmo tempo elitista, na medida em que um pequeno grupo de “camaradas” se aboletou na cúpula dirigente e detinha todo o poder que, em teoria, deveria emanar do povo. Com a morte de Lenine em 1924, fundador do comunismo soviético, subiu ao poder o sanguinário Estaline, que além da ênfase na criação de uma nação forte e moderna, e, para isso, criou planos quinquenais de desenvolvimento; passou à perseguição implacável daqueles que considerava adversários políticos, dissidentes do partido, etnias diferentes da sua – era georgiano – e antigos pequenos proprietários rurais, os quais agora deviam tornar-se escravos em fazendas colectivas improdutivas que, na década de 30, geraram crises catastróficas de fome que mataram milhões de pessoas. Contabiliza-se que 17 milhões de pessoas tenham sido eliminadas através de fuzilamento sumário, deportação para campos de trabalho na Sibéria, chamados Gulags, onde morriam de fome e frio, ou vítimas de torturas nas prisões de Moscovo. Durante a guerra, Estaline estabeleceu ordens draconianas para que todo desertor e prisioneiro fosse sumariamente fuzilado; mais de dois milhões de soldados russos e inimigos tiveram esse fim. Depois da guerra internou em campos da morte todos os soldados que haviam sido prisioneiros dos alemães; todos morreram.
Seja pela escala colossal de assassinatos; pela metodização tipo “linhas de montagens” empregados; pela degradação moral e física impingidas às vítimas; pela hediondez dos meios usados, ou motivos indefensáveis e fúteis alegados, não há parâmetros na História mundial para comparar os genocídios que essas duas ideologias perpetraram. Mesmo levando-se em conta os massacres dos arménios pelos turcos; dos índios americanos pelos colonizadores europeus; dos adversários de Idi Amin no Uganda; dos tutsis pelos hutus em Ruanda e dos tchechenos mais recentemente, os dois aparentes divergentes ideológicos, Hitler e Estaline, foram campeões incontestados de maldade e extermínio, foram sinistros agentes do MAL ABSOLUTO. Em nome de ideologias espúrias que foram conflituosas a ponto de guerrearem entre si, convergiram e se mesclaram dentro da fome de poder e praticaram os maiores crimes que a humanidade já assistiu.
A Duma, câmara baixa do parlamento russo, condenou o antigo ditador José Estaline pela execução em massa de cerca de 22 mil polacos na floresta de Katin, durante a Segunda Guerra Mundial. Os deputados russos consideraram agora que Estaline e outros altos quadros da antiga União Soviética ordenaram aquele crime em 1940. Esta declaração formal da Duma, semanas antes de uma visita do Presidente Dmitri Medvedev à Polónia, foi bem recebida em Varsóvia, apesar de surgir 70 anos depois dos factos. Num debate acalorado, os deputados comunistas ainda se opuseram à proposta, alguns deles procurando desmentir que as autoridades soviéticas tivessem tido qualquer culpa no que aconteceu então perto da fronteira da Rússia com a Bielorússia. Mas ao fim e ao cabo foram derrotados pela maioria. Durante décadas, a propaganda soviética procurou apresentar a chacina como obra dos nazis, que ocuparam Katin depois de em 1941 terem invadido a União Soviética. Mas em 1990 veio a ser conhecida toda a verdade, nos últimos dias da URSS. A Duma disse ontem esperar que este reconhecimento das culpas de José Estaline signifique “o início de uma nova época” nas relações entre russos e polacos, baseadas em “valores democráticos”. Cerca de 8000 das vítimas de Katin eram oficiais que foram feitos prisioneiros durante a invasão da Polónia pelos soviéticos, em 1939. Os restantes eram médicos, professores, deputados, polícias e outros polacos detidos depois de serem acusados de trabalharem como secretos ou sabotadores.
Autorizado a comer no refeitório do Kremlin, Álvaro Cunhal, o «marxista de cristal», teve um tratamento de VIP na capital soviética - desde os 500 rublos mensais até ao apartamento no n" 5 da Vorobyovskaya Shossé. Uma visita guiada ao passado, no dia em que o velho líder completa 81 anos
Paula Serra / VISÃO nº 86 10 Nov. 1994
«Sobre o pedido da direcção do PCP: satisfazer o pedido do secretário-geral do PCP, camarada Álvaro Cunhal, e encarregar o Comité Executivo do Soviete de Moscovo de pôr à disposição da Direcção de Manutenção do Comité Central do PCUS, na zona de Vorobyovskaya Shossé, no primeiro trimestre de 1965, um apartamento de quatro assoalhadas. Encarregar a Direcção de Manutenção do PCUS de mobilar o apartamento de A. Cunhal. Extracto do protocolo n.° 107 da reunião do Secretariado de 7 de Dezembro de 1964.» Com este texto, elaborado pelo Secretariado do Comité Central do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) e lavrado em documento oficial, o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, então no exílio, instalava-se numa zona residencial moscovita, no sudoeste da cidade, a 20 minutos do Kremlin. Próximo da antiga residência do dirigente histórico dos comunistas portugueses ergue-se o Estádio Luzhniki, um dos mais importantes de Moscovo.
É uma zona tranquila mas impessoal, de blocos habitacionais bem ordenados, enquadrados por arruamentos arborizados.
Quando viveu no apartamento situado no prédio n.° 5 da Vorobyovskaya Shossé — bem situado nesta espécie de «Telheiras russa» — Cunhal não chegou a conhecer a estátua gigante do primeiro cosmonauta, Yuri Gagarine, que hoje domina o local.
A abertura à investigação do Centro de . Conservação de Documentação Histórica do PCUS — relativa ao período entre 1953 e 1991 — permite à VISÃO revelar pormenores inéditos da passagem de Cunhal pela capital russa e aspectos desconhecidos, até, da maioria dos seus camaradas de partido. Graças a um tratamento concedido apenas a raros dirigentes do movimento comunista internacional, o líder português gozou, durante a sua permanência, nos anos 60, na antiga União Soviética, de privilégios postos somente à disposição dos mais destacados membros do Comité Central do PCUS. A investigação efectuada em Moscovo permite-nos perceber melhor o estatuto de excepção concedido a Cunhal, o seu prestígio junto dos dirigentes soviéticos e o lugar dominante de Portugal entre as preocupações da URSS.
Mesada
Álvaro Cunhal, que completa hoje, 10 de Novembro, 81 anos, estava já em Moscovo em 1961, logo após a espectacular fuga do forte de Peniche, mas não permanecia muito tempo no mesmo lugar.
Nesse tempo deslocava-se com frequência à Roménia e à Checoslováquia. Nos últimos anos da clandestinidade, o dirigente comunista viveu também em Paris, tendo regressado a Portugal a 30 de Abril de 1974, cinco dias após a Revolução dos Cravos.
Por decisão do Secretariado do Comité Central do PCUS, Álvaro Cunhal já recebia mensalidades de 500 rublos em 1961, o equivalente, na altura, a pelo menos quatro salários médios. Na mesma época, Francisco Miguel e Margarida Tengarrinha, também membros do Comité Central do PCP, e seus camaradas de exílio, auferiam 180 e 130 rublos, respectivamente.
Num protocolo datado de 14 de Setembro daquele ano, o vice-chefe da Secção Internacional do Comité Central do PCUS, V. Terechkin, comunica ao Comité Central o pedido de Álvaro Cunhal no sentido de se instalar na URSS com a sua mulher e a filha, Ana.
Dois dias depois, outro documento autoriza o líder comunista português a frequentar o refeitório do Kremlin — cuja entrada estava reservada a membros do Bureau Político do-Comité Central do PCUS. Neste restaurante era servida, sobretudo, alimentação dietética, o que não desagradava à frugalidade do secretário-geral do PCP.
Todos estes documentos constam do já referido arquivo do Centro de Conservação de Documentação Histórica do PCUS relativo ao período entre 1953 e 1991. A sua progressiva abertura está, ainda que lentamente, a permitir uma melhor compreensão de alguns dos factos mais relevantes do século XX, em que está a trabalhar o investigador português José Muhazes, residente em Moscovo há 17 anos.
Marxista de cristal
A importância de Álvaro Cunhal entre os dirigentes comunistas europeus é reforçada a partir de 1964, ano em que o ideólogo e dirigente do PCUS — e um dos mais relevantes conspiradores contra Nikita Khruchtchev, Mikhail Suslov, destaca a capacidade do líder português. Ao reparar na sua «personalidade brilhante», pureza de convicções e fino trato, chama-lhe «marxista de cristal».
A hierarquia da Nomenklatura comunista mandava que, enquanto viviam em Moscovo ou quando se deslocavam à URSS, tanto Álvaro Cunhal como outros líderes comunistas estrangeiros (caso do brasileiro Luiz Carlos Prestes ou do chileno LUÍS Corvalán) tivessem um tratamento VIP: enquanto a Cunhal era atribuído, por exemplo, um apartamento de quatro assoalhadas, o seu camarada Francisco Miguel, que também passou parte da clandestinidade em Moscovo, só teve direito àquilo a que hoje se chamaria um T-0.
Gendrik Borovik, antigo jornalista da agência Novosti, que esteve em Portugal em Maio de 1974, recorda Álvaro Cunhal, como «um moscovita». «Vivi no mesmo edifício na Vorobyovskaya Shossé, num apartamento perto do de Álvaro. Costumava encontrá-lo no elevador, acompanhado da mulher, de uma criança e da secretária.
Mas nunca falávamos. Eu admirava-o muito. Para mim. Cunhal era um herói como "Che" Guevara. Sabia da sua fuga da prisão em Portugal, um feito espectacular.
Mas ele era muito reservado e só falei com ele quando estive no vosso país, logo a seguir à Revolução. Nessa altura, perguntei-Ihe se se lembrava de mim. Ele respondeu-me afirmativamente, mas penso que quis apenas ser simpático», conta-nos Borovik, que entretanto trocou o jornalismo pela literatura.
Amílcar CabralNas suas estadas em Moscovo, Cunhal não se limitou a utilizar os alojamentos colocados à sua disposição pelo PCUS. Na capital soviética, o secretário-geral do PCP passou também algumas curtas temporadas em hotéis reservados a dirigentes comunistas — entre eles o Presidente e o Arbat. Quem passou igualmente pelo Arbat foi Amflcar Cabral, o líder do PAIGC assassinado 1973, na Guiné-Bissau. Oleg Ignátiev, antigo jornalista da Pravda, e seu correspondente em Portugal entre 1979 e 1984, foi amigo do dirigente africano e recorda alguns momentos do convívio com Amílcar Cabral em Moscovo. E lembra-se também de Cunhal. «Vi-o algumas vezes, nessa altura, no Hotel Arbat, quando ia falar com Amílcar», diz.«Cunhal era muito reservado, e apesar de o admirar muito nunca conversei com ele.» Sempre a mesma reserva, o ar de mistério, a aura de inacessibilidade: a personagem confunde-se com os seus feitos. Para trás fica a vida pessoal de um homem de carne e osso. Álvaro Cunhal não respondeu ao pedido da VISÃO para falar sobre os tempos do exílio.
Mário SoaresEntre a documentação sobre o PCP a que tivemos acesso nos arquivos do PCUS figura ainda um documento sobre a «cooperação», na clandestinidade, entre comunistas e socialistas. Um extracto do protocolo n.° 48 do Secretariado do Comité Central, datado de 14 de Julho de 1972, fala de Mário Soares. Em causa, um pedido de Cunhal para que Soares fosse recebido em Moscovo. As recomendações são explícitas:«l ° — Satisfazer o pedido do Secretário Geral do PCP, cam. A. Cunhal, sobre o convite, em Setembro de 1972, para a deslocação à União Soviética, por um período de três semanas, do líder dos socialistas portugueses, M. Soares.A recepção e estada de Mário Soares ficam a cargo da União das Associações de Amizade e de Laços Culturais com os países estrangeiros.«2º — Encarregar o Ministério das Finanças da URSS de, juntamente com a União das Associações, encontrar fontes para cobrir as despesas com a recepção e a estada, bem como para cobrir as despesas relacionadas com a viagem de M. Soares Paris—Moscovo—Paris. Encarregar o Ministério da Aviação Civil da URSS de transportar M. Soares de Paris para Moscovo, com pagamento em rublos soviéticos.» O texto é assinado por um membro do Secretariado do Comité Central do PCUS.A viagem fora combinada entre Soares e Cunhal, pouco tempo antes, num encontro em Praga. A visita foi acompanhada por Augusto Abelaira, Oscar Lopes e Alexandre Babo. Estiveram em Moscovo e em Leninegrado (São Petersburgo), depois de uma memorável viagem de comboio que Soares recorda num dos seus livros.
JuventudeDescendente de uma família da burguesia rural, Álvaro Barreirinhas Cunhal nasceu a 10 de Novembro de 1913, na freguesia da Sé Nova, em Coimbra. Aos 4 anos passaria a viver em Seia, terra do pai — Avelino Cunhal, advogado — para se mudar definitivamente para Lisboa em 1924. Ainda antes de deixar aquela localidade serrana. Cunhal foi baptizado, a 5 de Maio de 1919, na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, tendo como madrinha Nossa Senhora e como padrinho o seu irmão mais velho, António José.As suas actividades políticas começam na faculdade de Direito de Lisboa, onde entrou apenas com 17 anos, em 1930. Torna-se membro da direcção da Associação Académica (1932) e do Senado Universitário (1934). Por essa altura, já Álvaro Cunhal participava nas clandestinas Liga dos Amigos da URSS, Socorro Vermelho Internacional, Liga Contra a Guerra e Contra o Fascismo e Grupos de Defesa Académica. A sua filiação no PCP ocorre também no momento em que entra para a Faculdade. Cunhal terá entrado para a organização através de Cansado Gonçalves, amigo de Avelino Cunhal.Em meados dos anos 30, muitos dirigentes comunistas são presos pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), primeira designação da PIDE/DGS. Álvaro Cunhal terá tido o seu primeiro nome de guerra em 1934, sendo então destacado por Bento Gonçalves para organizar a Federação das Juventudes Comunistas. Em 1936 é eleito para o Secretariado da organização, deslocando-se pela primeira vez à União Soviética. Com ele, seguem Domingues dos Santos e Florindo de Oliveira. No mesmo ano, Francisco Paula de Oliveira (Pavel) sobe ao Secretariado do Partido, de onde seria expulso em 1939.
PrisõesSegundo a sua biografia oficial — publicada em 1954 pelo PCP — Álvaro Cunhal terá passado definitivamente à clandestinidade em 1935. Esta versão é, porém, contrariada se tivermos em conta que, no início dos anos 40, o líder dos comunistas assinava artigos no jornal O Diabo e leccionava no Colégio Moderno, de João Soares, pai de Mário Soares. O mais verosímil é que Cunhal tenha passado à clandestinidade em 40 ou 41.Depois de uma passagem de alguns meses por Espanha, em 1936 — o ano em que estala"a guerra civil no país vizinho —, o dirigente comunista é preso em Portugal, a 20 de Julho de 1937. E então acusado de distribuir propaganda na rua. Encarcerado no Aljube, será transferido passados dois meses para Peniche. Julgado em Tribunal Especial, Cunhal é libertado cerca de um ano depois e obrigado a fazer o serviço militar na Companhia Disciplinar de Penamacor. Após uma greve de fome, acaba por ser dispensado por uma Junta Médica, em Dezembro de 1939.Uma série de prisões nas hostes do PCP, nos finais desse ano, levam uma nova fornada de dirigentes às cúpulas do Partido.Em 1939, Cunhal é eleito para o Secretariado juntamente com o médico Ludgero Pinto Basto e Francisco Miguel. O Secretariado e o Comité Central decidem nomear Cunhal secretário-geral do PCP, cargo até então ocupado por Bento Gonçalves, preso na época no Tarrafal. Mas Álvaro Cunhal não aceita ocupar o lugar do «mítico» dirigente comunista. Ainda não tinha chegado a sua hora.
Peniche-MoscovoEm Maio de 1940, Cunhal volta a passar pela prisão durante três meses. É levado da cadeia à Faculdade para fazer o exame final de Direito. O júri é constituído por Paulo Cunha e Cavaleiro Ferreira, mais tarde ministros de Salazar, e por Marcelo Caetano, o delfim do ditador.O líder comunista formou-se com distinção, defendendo a sua tese sobre «A Realidade Social do Aborto».O PCP vive tempos de brasa. Acusado de infiltrações, o Partido fora expulso, em 1939, da Internacional Comunista (IC), que Estaline acabará por dissolver quatro anos depois. Só em 1948 Cunhal regressará a Moscovo — através de canais estabelecidos com os comunistas jugoslavos de Tito — para a reunião do Kominform (Bureau de Informação do Movimento Comunista Internacional). Até 1945, o partido teve de resolver desavenças internas que opunham dois comités centrais.No PCP continua-se a viver no temor das denúncias e das desavenças. Piteira Santos é expulso em 1949, ano em que Cunhal é de novo preso, agora no Luso, com Militão Ribeiro e Sofia Ferreira. O secretário-geral do PCP ficaria sob clausura 11 anos. Tempo para esboçar os célebres desenhos do cárcere, que revelam um traço decidido e sensível. Terá tido tempo, também, para uma incursão na literatura, havendo quem garanta que o romance Até Amanhã Camaradas, assinado sob o pseudónimo de Manuel Tiago, é da sua autoria.A fuga de Peniche, em 1960, foi uma das mais espectaculares evasões das cadeias portuguesas. No dia 3 de Janeiro, contando com a ajuda de um soldado da GNR, Cunhal, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel e mais seis camaradas deixam o forte de Peniche descendo o muro da prisão por uma corda feita de lençóis. Pouco tempo depois estava em Moscovo, onde, em 13 anos de exílio, passou diversas temporadas. Em Março de 1961 fora eleito secretário-geral do PCP.PerfeitoVadin Zagladin, vice-chefe da secção internacional do Comité Central do PCUS entre 1967 e 1975, 1.° vice-chefe da mesma secção entre 1975 e 1988 e conselheiro do antigo presidente da URSS, Mikhail Gorbachov, para assuntos internacionais, tem uma ideia muito precisa de Cunhal: «Honesto, está muito arreigado às suas convicções, o que pode tomar-se um defeito. Mas é um homem com um grande carisma.» Zagladin teve o primeiro encontro com o dirigente comunista português em 1967. Segundo afirma, «no PCP a última palavra cabia sempre a Cunhal, e os próprios camaradas diziam que não podiam tomar quaisquer decisões ou iniciativas sem consultarem o camarada secretário-geral.» Em 1973, Cunhal pediu ao PCUS para patrocinar a realização de uma reunião do Comité Central do PCP na capital soviética, em meados de 1974. Isto, no entender de Zagladin, significava que, nessa altura, o PCP não esperava a eclosão de um golpe militar em Abril desse ano.
Em Até Amanhã Camaradas, ricos e pobres são personagens com fraquezas e defeitos. O único perfeito e imaculado é o dirigente do Comité Central. Será essa uma história de ficção?.
Operação Barbarossa (em alemão: Unternehmen Barbarossa) foi o codinome pelo qual ficou conhecida a operação militar alemã para invadir a União Soviética, iniciada em 22 de junho de 1941,durante a Segunda Guerra Mundial, rompendo assim com o Pacto Ribbentrop-Molotov (ou tratado de não-agressão) acordado entre os dois Estados menos de dois anos antes.
Considerada a maior e mais feroz campanha militar da história em termos de mobilização de tropas e baixas sofridas, onde 4,5 milhões de soldados do Eixo invadiram a União Soviética numa frente de 2900 km sendo também utilizados 600.000 veículos automotores e 750.000 cavalos. Os planos para a Operação Barbarossa iniciaram no dia 18 de dezembro de 1940, sendo o seu nome devido ao monarca Frederico Barbarossa, do Sacro Império Romano-Germânico, um dos líderes da Terceira Cruzada no século XII.
O objetivo inicial da Operação Barbarossa era uma rápida tomada da parte europeia da União Soviética a oeste da linha que liga as cidades de Arkhangelsk e Astrakhan, chamada de linha A-A na Diretiva nº 21 de Adolf Hitler. Até o final do mês de janeiro de 1942, o avanço alemão foi paralisado pelo Exército Vermelho. Embora não tenha alcançado o objetivo desejado de uma conquista total do território inimigo e a vitória sobre este, as tropas alemãs haviam conseguido tomar as mais importantes áreas econômicas do território soviético, concentradas principalmente na Ucrânia. Fora estes sucessos alcançados, os alemães não conseguiram formar novamente uma força ofensiva que chegasse até Moscou.
Com a falha da Operação Barbarossa, ficaram complicadas as futuras operações dentro do território soviético, tendo todas estas tentativas falhado, como a continuação do Cerco de Leningrado, Operação Nordlicht, e a Batalha de Stalingrado, entre outras batalhas no território soviético ocupado.
Com a falha da Operação Barbarossa, foi aberto um novo fronte na Segunda Guerra, a Frente Oriental, onde foram concentradas mais forças do que em qualquer outro teatro de guerra da história, sendo assim, ficou inevitável que neste fronte ocorressem algumas das maiores batalhas, baixas e atrocidades, trazendo o horror para as forças alemães e soviéticas que ali se enfrentavam, influenciando decisivamente no curso da guerra e da história do século XX.
Prelúdio ao ataque
As atitudes do líder soviético Stalin deram as justificativas para a invasão alemã e a necessidade de uma vitória. Nos anos 1930s, Stalin havia ordenado que milhões de cidadãos, e muitos oficiais soviéticos competentes, fossem eliminados no que ficou conhecido como Grande Expurgo. Foi feito um apelo pela propaganda alemã de que os soviéticos planejavam atacá-los.
O ditador nazista Adolf Hitler deixara claro a seus generais que desejava terminar a questão soviética antes do rigoroso inverno russo – em outras palavras, a campanha deveria ser rápida e fulminante, onde a Luftwaffe deveria eliminar e paralisar a Força Aérea Russa na maior extensão possível, apoiando o avanço do Exército Alemão. Como havia ocorrido na Blitzkrieg, os pilotos de Göring fariam ataques preventivos contra as forças inimigas, buscando alcançar a superioridade aérea que permitisse a eles utilizar os bombardeiros e caças para cortar as linhas de suprimentos e comunicação, isolando as tropas soviéticas que estivessem no fronte.
Mas, na véspera da invasão, o ditador italiano Benito Mussolini pediu ajuda a Hitler, pois havia tentado invadir a Grécia através da Albânia, que haviam conquistado em 1939, e, não apenas não haviam dominado a Grécia, como estavam em vias de perder a Albânia para os gregos. Hitler enviou ajuda, e dominou quase toda a região dos Balcãs. E isso atrasou a Operação Barbarossa em algumas semanas, atraso que se mostrou decisivo, pois logo veio o temido inverno russo.
Três grandes grupos de exércitos foram formados: o Norte, encarregado de ocupar a Lituânia e Letônia rumo a Leningrado (atual São Petersburgo), recebendo o apoio da recém formada Luftflotte 1 sob comando do general Alfred Keller, contando com 480 aeronaves; o Centro, que visava um ataque frontal à capital Moscou, com o apoio da Luftflotte 2, sob o comando de Albert Kesselring, contando com 1.080 aeronaves e o Sul, destinado a ocupar os vastos campos de trigo da Ucrânia e, por fim, o petróleo do Cáucaso, recebendo o apoio da Luftflotte 4 comandada pelo General Alexander Lohr, com uma força de 690 aviões.
As primeiras vitórias
Às 3:15 da madrugada do domingo de 22 de junho de 1941, cerca de 4 mil veículos blindados e 180 divisões formadas por mais de 3,5 milhões de soldados do Eixo irromperam sobre as defesas soviéticas. Por ar, a Luftwaffe atacou as bases inimigas que havia detectado dias antes com aeronaves de reconhecimento, tendo assim alcançado um grande sucesso ao destruir cerca de 1800 aeronaves soviéticas somente no primeiro dia de invasão e até o dia 29 de junho, este número já havia chegado a 4000 aeronaves destruídas, sendo 2500 destas destruídas pela Luftflotte 2, sofrendo uma perda de somente 150 aeronaves.
A mobilização do Exército Vermelho para tentar deter o avanço alemão não foi capaz de deter o ímpeto do ataque; centenas de milhares de soldados foram envolvidos em combate pelos alemães. Cidades como Minsk e Kiev foram cercadas em poucos dias. Em agosto de 1941, os alemães haviam aprisionado meio milhão de soldados soviéticos, e pelo menos outras 89 divisões (cerca de 1,8 milhão de soldados) teriam o mesmo destino antes de dezembro.
O discurso de "terra arrasada"
Nos primeiros dias do ataque, o líder soviético Josef Stalin permaneceu isolado, sem emitir comunicados. O fato de a Alemanha tê-lo traído o perturbava. Em 3 de julho de 1941, Stalin transmitiu um comunicado de terra arrasada: cidades, casas e plantações deveriam ser destruídos ou queimados, para privar os invasores de seus recursos. O povo soviético deveria abandonar toda e qualquer complacência com os alemães.
Embora relativamente eficiente, no sentido de reanimar a população desesperada pela ofensiva alemã e por usar a linguagem típica do camponês russo, os ecos da transmissão não foram unânimes. Em parte por seu regime e pelas dificuldades originadas pelas reformas econômicas que ele implantara tão drasticamente.
Assim sendo, em muitas aldeias da Ucrânia, Lituânia, Letônia e Estônia – estas três últimas eram estados independentes pró-nazistas antes de serem anexadas por Stalin em 1940 – os invasores alemães foram recebidos como "libertadores".
O inverno rigoroso
Em novembro de 1941, os alemães já tinham conquistado uma área quatro vezes maior que a Grã-Bretanha. O cerco a Leningrado (atual São Petersburgo) começara, e perduraria por três anos. Moscou estava a apenas algumas semanas de marcha. Foi quando os primeiros flocos de neve começaram a cair, prejudicando o avanço alemão, uma vez que as tropas alemãs não estavam preparadas para o rigoroso inverno russo.
Cerca de 250 mil soldados da Wehrmacht pereceram ao enfrentar, além dos russos, temperaturas abaixo de dez graus negativos. Ambos os lados lutaram bravamente, nas mais duras condições. Vale ressaltar que o nome da cidade de Stalingrado era uma homenagem a Josef Stalin, o que tornava maior seu valor para os alemães, caso fosse tomada.
Outra consequência do rigoroso inverno foi que as armas e veículos alemães paravam de funcionar em temperaturas tão baixas, o que retardava ainda mais o avanço. O "General Inverno" outra vez se impunha, como já havia feito contra Napoleão Bonaparte em 1812. Nas áreas conquistadas, o inverno atuou contra as tropas russas, pois os alemães encontravam-se abrigados. Deve-se ressaltar, portanto, que o inverno tornou as condições terríveis para ambos os exércitos.
A defesa de Moscou: mudança de rumos
Unidade alemã utilizando cavalos, região de Kursk União Soviética.
Com o fulminante avanço alemão sobre a capital da União Soviética, instalou-se o desespero entre os moscovitas. Muitos fugiram, entre eles muitos dirigentes do Partido Comunista da União Soviética. Mas Stalin permaneceu – numa tentativa de reerguer o moral do povo. Entregou a hercúlea tarefa de defender a cidade a seu mais experimentado e competente general, Georgy Jukov. Tão truculento e resoluto quanto seu líder, ele reorganizou o Exército Vermelho e fê-lo desfechar um gigantesco contra-ataque sobre as tropas alemãs. Em janeiro de 1942, os russos já tinham forçado a Wehrmacht a recuar cerca de 200 quilômetros, salvando a capital.
Por fim, Hitler mudou de idéia, instigando um ataque ao Cáucaso que levaria os alemães a uma derrota fragorosa em Stalingrado e à reversão da ofensiva na frente oriental. Os russos ainda teriam de trilhar um longo caminho para expulsar o invasor de sua pátria.