
Quando Marx e Proudhon esgalhavam argumentos sobre a devida evolução a dar à luta do proletariado e à formulação do Estado (ou ausência dele) na sociedade comunista, argumentos estes reflectidos então na Filosofia da Miséria e na Miséria de Filosofia, era uma época fértil para a esquerda. Estavam volvidos 60 anos mas a Revolução Francesa e a não menos relevante Revolução Industrial permitiam ainda um vasto escorrimento de argumentário e panfletário para apanhar incautos iludidos com a ilusão de uma utopia ilidível. Não obstante, algo novo se discutia.
Hoje, finda a discussão entre a esquerda, cuja segregação interna reconstrói o divisionismo de Lenine e Trotsky, a senda é na união da segregação, montanha que nem Sísifo percorreria, com ou sem pedra. E como a união da divisão é estéril, porque indivíduos têm visões diferentes, porque indivíduos pensam de forma diferente, mas especialmente porque indivíduos são diferentes, a esquerda portuguesa, versão recauchutada da esquerda soviética do PCP, com laivos de trostkismo do BE, tonificada pelo republicanismo francês do PS e ainda decorada com new age e eco-socialismo (seja lá o que isso for) do LIVRE, está esvaziada de ideias. Não há nada de absolutamente novo. Não há nada de novo. O que existe é um absoluto vácuo que transita, crónica sim, crónica sim, entre a vacuidade e o casualismo. Do que diz e pensa a direita, claro está. Que ideias verdadeiramente originais, para lá de uma ou outra histeria transitória movida a causas, tem a esquerda tido? A extrema, nenhuma. A democrática, mais do mesmo. A insistência no luso-keynesianismo, versão particular que descarta os saldos orçamentais e a contenção em períodos de crescimento e apenas considera o desperdício público, tornou-se o agouro que foi devidamente abraçado e consensualizado e que basicamente nos trouxe até aqui.
E quando o café se esgota, toma-se chá. Então a esquerda achou interessante fazer uma recensão crítica sobre os livros, as obras, as vidas, os gostos e os planos de reinar o mundo, com roque e remoque mas agora sem Rei, de uma direita que era ultramontana, vivia numa caverna, parecia não ler (excepto versículos da Bíblia, claro está) e gostava de ir à missa para ouvir os versículos, evitando assim ler. Esta direita transforma-se então numa direita renovada, qual Fénix, refrescada, que agora lê, que agora até pensa, como se a primeira nunca fosse intelectual ou como se a segunda nunca fosse de direita. Como se a inteligência fosse oxímoro de direita. Tão antagónico que, tal como Graça Moura, era até surpreendente que fosse de direita, dada a sua aclamada inteligência. Analisar a cultura de direita, se feito com respeito e rigor, é um exercício voluntarioso e que torna
esta obra de António Araújo extremamente interessante. Fazê-lo de fora e com um tom pedagógico que roça uma análise técnica da movimentação de animais num Zoo torna o feito
menos digno. E menos feito.
Os objectivos são múltiplos. O primeiro é ridicularizar a concepção tradicional de direita. Caricaturizar aquilo que a esquerda, lá do alto da sua pretensa superioridade, imagina que era ou o que é a direita. O outro é menos óbvio: marginalizar o liberalismo dentro da direita. Uma direita renascida, burguesa, que gosta de arte e cultura, que lê, avant-garde, tão avançada e cosmopolita que até se parece uma esquerda, dizem eles, emaranhada com os neoliberais que, juram eles, querem um Estado fraco mas bombas em fartura algures no Médio-Oriente.
Não precisamos de uma cisão entre liberais e conservadores,
ela é mais do que óbvia e assumida. Há muito que largou o armário, há muito que se assumiu. Toda a gente, excepto a esquerda, percebeu isso. Um liberal, por tradição, deve rejeitar a tradição como argumento para o debate político, ou pelo menos relegar-lhe a importância que este merece: um estabilizador. A tradição não é necessariamente melhor ou pior. O seu único mérito foi sobreviver ao tempo, coisa que uma rocha também faz com especial primazia. Claro que uma dinâmica social que respeita a ordem e a estabilidade é, para alguém de direita, condição fundamental e necessária, mas não condição suficiente, pelo menos para um liberal.
O curioso é que transparece, é por demais evidente, que a esquerda se sente ameaçada não por esta nuova direita cosmopolita mas sim pelo liberalismo, desde sempre novo e cosmopolita, ao ponto de enaltecer os garantes do conservadorismo que, em certa medida, sempre promoveu o Estado. Foram os liberais, foram as ideias de John Locke e de Montesquieu que fomentaram a Revolução Francesa, o início, não o que depois se sucede. Os conservadores estavam e estarão do outro lado. E estavam bem, pelo menos à luz do que os rege. O sistema não estava mau, embora as finanças francesas estivessem depauperadas muito em parte devido à participação na Revolução Americana, lutando ao lado (a história é irónica) dos Republicanos, e as pessoas passassem fome enquanto a corte festejava. Como tal, a sua cisão deveria ser evitada a todo o custo, a fim de manter a tradição. E, justiça lhes seja feita, tinham razão. O processo revolucionário que dali surgiu foi sangrento, sujo, miserável, facetas geralmente ignoradas em função da exaltação da república, com a res-pública, ou pelo menos uns quantos, delapidada pela guilhotina e depois unida à força com a vontade bélica de Napoleão. E se essa direita se assume republicana, terá de justificar como figura a tradição e a revolução (francesa) num mesmo quadro.
Para a esquerda, este recente aggiornamento é uma saída de um armário que esta, obviamente, já havia feito. Se a referência implícita “aos direitos dos LGBT” é mais do que evidente, é interessante recordar que antes da nova direita aceitar algumas das causas da esquerda, como o casamento homossexual, já a velha direita, especialmente os liberais, achavam que não compete ao Estado legislar sobre o matrimónio, instituição que nunca foi sua, aliás. Corolário? Cada um casa com quem bem entender, não necessitando do aval ou da benesse do Estado, que mais se assemelha à bênção do pároco local. A tradição ainda está a percorrer este caminho. Alguma já lá chegou, outra eventualmente lá irá chegar. A esquerda, que do alto do seu púlpito observa, permanece de olhos fechados.
Neste tentativa de escalpelizar a direita, a esquerda esquece-se que, porém,
é muito mais o que nos une do que nos separa. Da mesma forma que no séc. XVIII liberais e conservadores trocaram de papéis, assumindo os conservadores o papel de reformar o Estado e restituir aos indivíduos a sua liberdade (cf. “The Man vs The State”, Herbert Spencer), os “liberais” de então ocupavam-se com uma agenda que hoje seria facilmente apelidada de progressista. Embora um liberal não partilhe do imaginário utilitarista de Stuart Mill ou não se identifique com Burke, são mais as pontes em comum do que as ilhas. Não é por acaso que liberais admiram Churchill. Podemos discordar no método, mas concordamos no princípio: entre conservadorismo e liberalismo, o pior é mesmo o socialismo. E, em boa verdade, se João Pereira Coutinho, Henrique Raposo, Pedro Mexia ou João Miguel Tavares nos representam, estamos bem representados, ainda que com naturais e salutares discordâncias decorrentes nas diferenças que inevitavelmente reconhecemos como parte da essência humana.
Despidas as vestes, tornando-se óbvio que não existe nada para além do mero intriguismo político e estando a bola deste lado, é inevitável sugerir à esquerda que se ocupe com a construção e propagação da névoa que envolve esse novo grande timoneiro da esquerda, feito D. Sebastião, que
virá para salvar os portugueses deles próprios. Ou, como a realidade mostrará, somente para sair do armário e revelar o Hollande que contém em si, sem ideias novas, sem ideias mas com muita narrativa, como a esquerda moderna, que não é nada mais do que a estampagem da esquerda de sempre, a da miséria, assim requer.