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A-24

Será fatalidade?

por A-24, em 13.11.14
«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática de vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido!»


Eça de Queiroz, Farpas, 1871.

Deus

por A-24, em 05.10.14
Hawking mostrou uma enorme indiferença pelas questões propriamente filosóficas, uma indiferença impensável nos grandes físicos da primeira metade do século XX (Einstein, Heisenberg, Bohr entre outros)

Há poucos dias, Rui Ramos escreveu aqui sobre umas recentes declarações do eminente astrofísico Stephen Hawking, para o qual de uma forma ou de outra o progresso da ciência teria provado, ou iria provar, a inexistência de Deus. Não era o ateísmo de Hawking, obviamente, que chocava Rui Ramos, mas, se bem o percebi, o particular modo da sua justificação: no fundo, a pura e simples ideia segundo a qual a ciência poderia provar algo no capítulo em questão.
Pela minha parte, quase subscreveria por inteiro o que Rui Ramos disse no seu artigo. E até me permito acrescentar algo. Não é aqui, de resto, a questão de Deus propriamente dita que me parece a mais significativa, mas sim duas atitudes mais gerais que são trazidas à luz por aquilo que Hawking (um exemplo entre muitos) exprimiu.
Em primeiro lugar, uma enorme indiferença pelas questões propriamente filosóficas, uma indiferença impensável nos grandes físicos da primeira metade do século XX (Einstein, Heisenberg, Bohr, entre muitos outros), mas que se tornou, até com alguma coquetterie, comum desde há várias décadas. E nas questões filosóficas incluo aquelas que dizem respeito à natureza da ciência e ao tipo de inteligibildade do mundo que ela nos assegura.
Em segundo lugar, e isso é o mais importante, a ideia de que as crenças científicas constituem o modelo único de todas as crenças e que a maneira de pensar das ciências natureza é válida, sem perda de eficácia, para todos os assuntos humanos. Seria pedante fazer aqui a história das muitas encarnações desta convicção. Apontar alguns dos seus defeitos certamente não o é.
Um desses defeitos é uma espécie de cegueira sobre a natureza da sociedade e os modos do seu funcionamento. As sociedades não podem sobreviver sem um conjunto de crenças colectivas (“significações imaginárias”, chamava-lhes um filósofo) que são em larga medida arbitrárias e que se corporizam em instituições e criações de todo o tipo, que variam de sociedade para sociedade. Não há racionalidade científica que as possa explicar, embora, é claro, a sua natureza, tal como a sua bondade ou maldade, possam ser discutidas com os instrumentos de uma racionalidade comum, também ela variável na forma e no estilo.
A crença em Deus é, de resto, um bom exemplo na matéria. Deixo de lado a questão do conforto que, numa vida em que o sofrimento é, de um modo ou de outro, inescapável, a religião pode oferecer, um facto que um ateu (é o meu caso) tem obrigação de reconhecer e que a barbárie a que por vezes a religião induz, algo hoje em dia particularmente patente em certas paragens, de modo algum põe em causa. Deus é um bom exemplo porque, entre outras coisas, a crença religiosa é inseparável da maior parte da criação artística do Ocidente, que sem tal crença não poderia existir. Fra Angelico não poderia existir, nem Dante, nem A Paixão segundo Mateus de Bach. Limito-me aos exemplos mais óbvios, mas o seu número é infinito. O magma que isso constitui é perfeitamente imune a uma (impossível, de resto) prova da não-existência de Deus. Pretender que o progresso científico pode provar que Bach, apesar do seu génio, estava errado (tinha crenças erradas) é um absurdo palpável. O exercício não faz sentido algum: a questão da verdade e do erro não se aplica nestas matérias. É, no entanto, a consequência directa da ideia que aparentemente Hawking quis transmitir.
Um outro exemplo dos efeitos nefastos da convicção segundo a qual o conhecimento científico possui absoluta jurisdição em todos os domínios é o prestígio espúrio de que gozam os cientistas (falo de “cientistas” no sentido corrente de investigadores das ciências da natureza) quando se pronunciam sobre matérias políticas. Nada, ou praticamente nada, na racionalidade científica assegura uma opinião justa nas coisas políticas. Nem é preciso, para o constatar, lembrar exemplos extremos, como a imoderada simpatia, em tempos idos, de vários ilustres sábios por Estaline. Basta olhar à volta e, se se quiser, ler certos nomes em petições públicas que quase diariamente circulam. Sobre Israel, por exemplo. E, se aceitarmos, com alguma bondade, alargar a acepção da palavra “cientista” às chamadas “ciências humanas”, o simples nome de Noam Chomsky, cujos trabalhos em linguística e em certas áreas da filosofia são, qualquer que seja a avaliação que deles se faça, apaixonantes, basta quase para dizer tudo.
É como se, quando se passa de um objecto para outro, da natureza para a sociedade, se perdesse todo o cepticismo (algo que Rui Ramos referiu) e se mergulhasse por inteiro na facilidade de acreditar e no pensamento a crédito. Pensamos a sociedade de uma maneira muito diferente daquela que pensamos a natureza porque os objectos são mesmo muito diferentes. E quando queremos julgar uma a partir dos critérios que nos servem para julgar a outra, a asneira, ou até a monstruosidade, são quase certas.
De todas as utopias, a utopia de uma colaboração colectiva, de um trabalho em comum, no conhecimento científico da natureza foi, pelo menos a partir do século XVII, a única verdadeiramente triunfante e os seus resultados foram extraordinários. Mas se quisermos pensar a sociedade através dos seus critérios arriscamo-nos a acabar como os sábios da Academia de Lagado, nas Viagens de Gulliver de Swift, que, na sua paixão pela uniformidade e pelo geométrico, comem as costeletas de cordeiro cortadas em triângulos equiláteros, a carne de vaca em forma de rombóides e o chouriço é cicloidal. Não consta que a sociedade possua essas formas. E, pelo que tenho lido, Deus também não.
Pode-se acreditar que Deus não existe, mas não é com chouriços cicloidais que o podemos provar. Nem, para dizer a verdade, de uma outra maneira qualquer. Tal como a crença religiosa, o ateísmo é insusceptível de prova. Se não fosse, os jornais e as televisões já nos teriam informado do caso.

A cidade pós-socialista

por A-24, em 30.09.14



Torres Gémeas, Almaty, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster


Há livros assim. Terríveis de tão bons. The Post-Socialist City. Continuity and change in urban space and imagery, organizado por Alfrun Kliems e Marina Dmitrieva. Uma obra colectiva, com vários artigos, em que cada um é melhor do que o outro. Leia-se de frente para trás ou de trás para a frente, cada texto é sempre mais interessante do que o anterior. Sem percorrer o índice de fio a pavio, e apenas num brevíssimo voo de pássaro, temos neste estabelecimento livreiro artigos de primeira qualidade sobre: monumentos e edifícios políticos da RDA após a reunificação da Alemanha; lugares de Praga depois da Revolução de Veludo; o majestoso Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia; a famosa Praça da Independência em Kiev; a «cidade socialista» por excelência da Hungria, Dunaújváros (antiga Sztálinváros), projectada por Tibor Wiener; um subúrbio de Bucareste e o novo urbanismo da Arménia.

O livro é sobre o mais político dos organismos concebidos pelo homens – o espaço urbano – e aborda as transformações sofridas por várias cidades após a queda do comunismo. Mas, em boa verdade,The Post-Socialist Citytrata da Europa (como, aliás, se anuncia na nota introdutória, na linha dos trabalhos grande Karl Schlögel). Por muito estranho que pareça, compreendemos melhor o que é a Europa, e sobretudo o que poderá vir a ser, numa obra que dedica um capítulo inteiro à nova arquitectura ultramoderna do Cazaquistão. A «Europa», na verdade, pode ser várias coisas: uma entidade geográfica de contornos difusos; uma identidade histórica e cultural; uma comunidade de interesses. A Europa geográfica pode estender-se dos Açores aos Urais, mas a Europa dos interesses está onde a Alemanha quiser. Facto curioso: a publicação deste livro foi patrocinada por duas instituições alemãs, um centro da Universidade de Leipzig e pelo Ministério das Obras Públicas da República Federal… 
A União Europeia – e é essa uma das suas tragédias – procura ser em simultâneo todas as Europas que atrás de definiram, agrupando-as numa idée fixe. Repetimo-la: uma comunidade de interesses situada num espaço geográfico onde se forjou, através dos séculos, uma identidade cultural precisa mas difusa. Acontece que nem sempre estas três dimensões se articulam e ajustam. Nem sempre os interesses coincidem com a geografia. Raramente os interesses – sobretudo económicos – estão em consonância com os melhores valores da identidade cultural europeia (daí a proliferação de negócios com parceiros que não primam pelo seu apego à liberdade ou à democracia, ao respeito pelos direitos humanos e à tolerância).
Os interesses da Alemanha, após a reunificação, deixaram de estar – ou deixaram de estar apenas – no espaço geográfico da Europa. Após a queda do Muro, a Alemanha passou a olhar para onde sempre quis, o ponto cardeal que sempre foi a sua vocação e destino: o Leste. Para os países da Europa do Sul, a reunificação foi uma tragédia – do ponto de vista dos interesses, não no dos valores ou princípios. 






Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster




Um país, dois sistemas




Palácio da Paz e da Reconciliação, Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster












Daí que, num certo sentido, o Cazaquistão seja muito mais «Europa» do que Portugal. Os grandes gabinetes de arquitectura, que têm o faro apuradíssimo para estas coisas, perceberam-no mais cedo do que quase todos nós, incluindo os académicos da geoestratégia ou os profissionais da diplomacia. Não é por acaso que Sir Norman Foster – ou, melhor dizendo, a firma Foster and Partners – projecta edifícios arrojadíssimos para o centro de Astana ou de Almaty. Não é por acaso que Rem Koolhaas, além da Casa da Música, no Porto, elaborou um projecto visionário – e, por certo, bastante dispendioso – para uma «Cidade da Ciência», nas imediações de Almaty. Ali corre o petróleo a jorros, abundam o gás natural e os metais preciosos. O Cazaquistão é um dos maiores exportadores de matérias-primas do mundo. Tem cerca de 15 milhões, um quarto da do Reino Unido, para um território de 2,7 milhões de quilómetros quadrados, onze vezes maior do que as Ilhas Britânicas. Desde 2000 que o Cazaquistão regista colossais taxas de crescimento de 9% ao ano. É considerado pela Transparency International um dos países mais corruptos do mundo (numa lista de 145 países, conquistou um desonroso 122º lugar). Mas nada disso impediu que fosse escolhido em 2010 para assumir a presidência da OCDE. Podemos ler muita coisa sobre o Cazaquistão, mas o artigo deste livro sobre a vertiginosa ascensão da arquitectura de vanguarda em cidades como Astana, Almaty e Aktau diz-nos mais do que vários tratados de geopolítica. Edifícios de vanguarda num país que só formalmente é uma democracia, onde o presidente Nazarbaev concentra em si quase todos os poderes. Desde 2007, o parlamento só tem deputados do seu partido, o Nur Otan(«Luz da Pátria»). Não admira que os parlamentares tenham aprovado legislação que exime o presidente Nazarbaev da regra constitucional que impõe a renovação do mandato do chefe do Estado. Durante vários anos, a televisão estatal foi dirigida pela filha mais velha do presidente, Dariga Nazarbaev, que tem a sua clique de fiéis à frente das principais companhias e empresas. Nazarbaev intervém e tem a palavra final nos grandes negócios do país. Certamente que muitas das empresas que aí operam tiveram que falar com ele, ou alguém muito próximo dele, para se instalarem nas terras do Cazaquistão. A companhia Tengizchevroil, por exemplo, é uma joint venture entre a Chevron, a ExxonMobil, a Lukarco e a empresa casaque KazMunayGaz. A italiana Agip está noutra parceria, a extrair gás na região de Uralsk. Fábricas de automóveis? Nissan. Quem faz o cimento e os materiais das unidades de extracção do petróleo? ThyssenKrupp, da Alemanha. Quem faz as comboios de transporte ferroviário? General Electric, dos EUA. Tudo isto se processa num país onde a população rural vive mal, muito, e continua a viver mal, muito. A esperança de vida situa-se nos 62 anos para os homens e 73 para as mulheres, sendo cada vez mais intenso o êxodo para as cidades. Estas, sobretudo as maiores, são adornadas por edifícios desconcertantes de tão risíveis, num estilo falsamente majestoso, mas que no fundo é uma metáfora do Cazaquistão contemporâneo, uma ditadura falsamente majestosa. 

Outro caso curioso, e revelador da cupidez humana, é o do «turbo-urbanismo» em Pristina, na ex-Jugoslávia. Por muito esotérico que o termo pareça ser, ele pretende ilustrar uma realidade que vale a pena ser conhecida: após a fragmentação da Jugoslávia, interesses vários obrigaram a construir rapidamente e em força. A presença inesperada de refugiados, o afluxo de repatriados e a chegada de inúmeros funcionários de organizações internacionais fizeram com que se tivesse de edificar a uma velocidade turbo, quase sempre sem olhar a regras elementares de urbanismo e, claro está, à estética dos edifícios. Predominou a construção em vidro espelhado azul, pretendendo-se dar um ar «international» a casas construídas da noite para o dia, no meio de ruas atravessadas por fios e cabos de todas as espécies, postes de iluminação periclitantes, trânsito caótico. O artigo publicado neste The Post-Socialist é excepcional porque retrata exemplarmente o impacto no espaço público de uma necessidade social imperiosa, à mistura com a especulação imobiliária e a corrupção pública – mas também privada. Tudo a acontecer num território com uma taxa de desemprego de 40% e diversas máfias a actuar, que de súbito se vê confrontado com a chegada de hordas de gente e capitais internacionais. O saldo final é kitsch a valer, dir-se-ia numa paráfrase de Dâmaso Salcede. Se as construções do Cazaquistão são fashion e ofuscantes, aqui predomina a mixordice e edificação atamancada. Quando Rexhep Lupi, o director de planeamento urbano de Pristina, tomou as primeiras e muito tímidas medidas para pôr termo à balbúrdia do turbo-urbanismo, o que aconteceu? Foi morto a tiro. 








Turbo-arquitectura, turbo-urbanismo

Local também a reter: Floreasca, arredores de Bucareste. Construído para albergar a elite da era Ceucescu (aí existia, por ex., uma escola experimental para ensino intensivo do inglês), encontra-se hoje a ser alvo de um processo de «gentrificação» e, mais ainda, de «embelização» (beautification), com arranjos florais que tentam esconder os arranhões do cimento em derrocada e coisas do género, todas lindas, muito lindas. O número de lojas diminuiu, do mesmo passo que se registaram infindos casos de apropriação do espaço público e cada qual tentou demarcar o seu território através de gradeamentos, muros, etc., interrompendo vias de passagem e até destruindo espaços verdes de fruição colectiva. A beautificationromena não anda muito longe daquilo que se faz em muitas cidades ou zonas de Portugal. Coloca-se uma «via pedonal», uma alameda de palmeiras e meia-dúzia de floreiras e pronto, já está – temos um «renovação urbana».



Floreasca, Bucareste, Roménia.


Leitura recomendável, sem dúvida, a deste livro The Post-Socialist City, que nos diz muito sobre o mundo em que vivemos, que é um lugar estranho. Dele extraiamos, e com razão, uma crítica à acção das grandes multinacionais e à venalidade de alguns nomes grandes da arquitectura contemporânea. Muito superior a outro livro que, na sua cegueira «militante», é acéfalo e superficial, Evil Paradises. Dreamworlds of Neoliberalism, editado por Mike Davis e Daniel Monk (o capítulo sobre o Brasil como «o país mais injusto do mundo» é de uma banalidade de bradar aos céus; do livro só se aproveita um belíssimo ensaio-reportagem sobre a voracidade latifundiária de Ted Turner, ex-patrão da CNN). Ainda que um pouco datado (é de 2010, creio), The Post-Socialist City traz-nos textos informados, estudos de caso que cobrem um amplo espaço geográfico. A Europa já não mora aqui. Agora, vive algures entre Berlim e o Cazaquistão. É tempo de percebermos isso.

O “gene europeu” é afinal mais complexo do que se julgava

por A-24, em 26.09.14
Observador

Durante várias décadas, estudos nas áreas da arqueologia e da genética mostraram que a maioria dos europeus atuais descende da “mistura original” de dois grupos populacionais distintos, mas um novo estudo veio mostrar que não é bem assim. A descoberta foi feita por um grupo de investigadores da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, em conjunto com a Universidade de Tübingen na Alemanha, liderado pelo Professor David Reich.
Há cerca de 7 mil anos chegaram à Europa os primeiros agricultores, vindos do Próximo Oriente. Estes misturaram-se com as populações locais de caçadores-recoletores, que viviam no continente desde a sua colonização. Essa mistura encontra-se ainda refletida no código genético da maioria dos europeus atuais. Mas a estas duas populações juntou-se ainda uma terceira, a dos antigos eurasiáticos do norte, parentes dos siberianos do Paleolítico Superior. O novo estudo, publicado na revista Nature, mostra que este grupo terá também contribuído para o ADN dos europeus atuais, assim como para o dos índios norte-americanos, sugerindo a sua presença nos dois continentes. “Antes deste artigo, os modelos que tínhamos da ascendência europeia eram uma mistura de dois movimentos. Mostramos agora que há três grupos”, explicou David Reich, num comunicado da Universidade de Harvard. “Isto também explica a descoberta recente da ligação entre europeus e os nativos norte-americanos”, acrescentou. “O mesmo grupo de antigos eurasiáticos do norte contribuiu para ambos”.
Para este estudo, os investigadores sequenciaram os genomas de 2.300 indivíduos, originários de vários países diferentes. Foi depois analisado o material genético com sete mil anos de um agricultor encontrado na região da atual Alemanha, assim como o de oito caçadores-recoletores, encontrados na zona da atual Suécia e Luxemburgo. A esta informação foram ainda adicionados os dados de outros antigos agricultores europeus e de dois membros da antiga população do norte da Eurásia. Com esses dados foi possível “estudar como é que eles se relacionaram com as outras populações”, disse David Reich, e foi possível comprovar que a maioria dos europeus descende, de facto, de pelo menos três “tribos” distintas. Esta nova descoberta veio mostrar que, ao contrário do que se julgava, as origens europeias são muito mais complexas.
“Quase todos os europeus têm ascendência de três grupos ancestrais”, disse Iosif Lazaridis, um dos autores do artigo. Mas essa ascendência não é igual em todas as zonas da Europa. “Os europeus do Norte têm uma ascendência maior de caçadores-recolectores e os europeus do Sul têm mais antepassados agricultores”, acrescentou. Por outro lado, a ascendência eurasiática está mais diluída. “A ascendência dos eurasiáticos do norte é, proporcionalmente, o componente mais pequeno em toda a Europa, nunca mais do que 20%, mas encontramo-la em quase todos os grupos europeus que estudámos e também nas populações do Cáucaso e do Próximo Oriente”, explicou.

Os emigrantes e a vergonha

por A-24, em 22.08.14
Alexandre Homem de Cristo

Há um lado negro na nossa relação com os emigrantes, com raiz no confronto com o Portugal de 1970. Somos um país que detesta olhar para o que foi e, quando tem de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

O homem do bigode, a mulher do buço, o pedreiro, a porteira, o peludo, o saloio, o burro, o devorador de bacalhau. Toda a gente, directa ou indirectamente, já se confrontou com os estereótipos que os estrangeiros têm dos portugueses, nomeadamente nos países que receberam imigração portuguesa nas décadas de 1970 e 1980 – França, Canadá, Luxemburgo, Suíça, entre outros. De certo modo, habituámo-nos a eles. Aprendemos a aceitá-los. Em muitos casos, já nem os achamos insultuosos; apenas castiços. Até porque, nessas décadas, essas caricaturas tinham uma ponta de verdade – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico. Foi, também, essa realidade que os nossos emigrantes levaram consigo. E foi esse o Portugal que deram a conhecer.

Mas, verdade seja dita, mesmo que levemos a coisa com alguma tolerância, já não gostamos de ser identificados com esses estereótipos. Afinal, parte dessa caricatura do povo português tem como efeito uma espécie de inferiorização social de nós, portugueses, face a eles, franceses, suíços ou ingleses. Uma inferiorização que, hoje, é particularmente injusta: em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus. E, consequentemente, as novas gerações de portugueses que se aventuram pelo mundo têm um perfil de qualificações muito superior ao da geração dos seus pais e avós. Portugal mudou. E os portugueses também.

Essa contradição, entre o que somos e como ainda nos reconhecem, sobressai na reportagem do Público, publicada há dias. Questionados os jovens portugueses que vivem no estrangeiro sobre esses estereótipos, os episódios vão todos no mesmo sentido: os portugueses que hoje emigram são cientistas ou engenheiros, mas continuam a ser vistos como trolhas. Ou seja, continuam a ser vistos como se fossem os seus pais.
Seria confortável acharmos que o preconceito que criticamos (e em que todos esses equívocos assentam) é exclusivo aos estrangeiros, que desconhecem a realidade portuguesa. Mas é um engano. A verdade é que esse preconceito está bem vivo entre nós e é aplicado a portugueses por portugueses. Esse é o lado negro da relação de Portugal com os seus emigrantes, que fingimos não existir e que não é mais do que o confronto entre dois países tão distantes como o Portugal de 1970 e o de hoje. Chocar de frente com o passado não é fácil. Sobretudo em Portugal: o país detesta olhar para o que foi e, quando tem mesmo de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

É Agosto. Carros de matrícula estrangeira percorrem as estradas e invadem as aldeias e pequenas cidades do país. É o mês dos emigrantes. E eles regressam à pátria para matar saudades, mostrando aos filhos, muitos deles nascidos fora, o que os fez esperar um ano pelo Verão. Mas, em muitos casos, o que os espera a eles é o mesmo desprezo social com que lidam lá fora – piadas e anedotas sobre o seu português afrancesado, estranheza e alguma condescendência com os seus hábitos. Portugal olha para os seus emigrantes com a mesma superioridade que censura aos que os recebem lá fora.

Não é só um problema de ingratidão – os emigrantes contribuíram muito para o desenvolvimento do país com as suas remessas, numa relação apaixonada e incondicional com as suas raízes. É, sobretudo, um problema de memória. Enquanto eles cá estiverem, todos os anos em Agosto, seremos forçados a lembrarmo-nos de onde viemos – das dificuldades da geração dos nossos pais, do analfabetismo, do inconformismo face a um país com poucos horizontes que os fez arriscar tudo lá fora. Mas, quando eles deixarem de vir? Iremos, finalmente, esquecer tudo. E quem esquece o passado perde também a visão sobre o futuro.

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e um comentário pertinente:

Pedro Grangeiro

AHC, você é um rapaz novo e, portanto, não tem culpa de ser vítima de um sistema educativo preocupado em ocultar tudo o que diz respeito ao Estado Novo. Assim, deixe-me esclarecê-lo.
Deixemos de lado os 50 anos que você diz que teria durado o Estado Novo, pois isso quereria dizer que teria acabado em 1983. Quando você diz « – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico.» parece-me que está a acusar o Estado Novo de ser responsável por esses baixos níveis, mas comete o mesmo erro da maior parte dos comentadores do Estado Novo: Esquece-se do ponto de partida. O ponto de partida foi a miséria total e absoluta deixada pela I República. Em 1926, Portugal tinha um PIB per capita equivalente a 28% do PIB per capita médio da Europa mais rica. No fim do Estado Novo esse número era já de 60 %. Curiosamente, 40 anos depois da revolução, continua na mesma, 60%.
Adiante você diz « em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus.» O seu erro repete-se: O Estado Novo encontrou um país com 70% de analfabetismo e deixou-o com menos de 30%. Concordará comigo que foi uma questão de tempo. Se o Estado Novo tivesse continuado, os níveis de escolaridade seriam, pelo menos, iguais aos de hoje, embora eu ache que seriam seguramente superiores, considerando o grau de exigência de então.

Apátrida, de Isabel Moreira

por A-24, em 15.08.14
Via Malomil

Apátrida – O que é a pátria de cada um?, de Isabel Moreira, é um livro que prolonga e aprofunda temáticas obsessivas, quase fetichistas, e tópicos discursivos que caracterizam desde há muito a obra desta autora. Além dos sucessos de vendas Correspondência Comercial e A Excelência no Atendimento, até agora Isabel Moreira publicara três livros: o solitárioPessoas só, seguido do palavroso Quando uma palavra não basta(«candidato ao prémio Saramago») e depois 160 páginas de Ansiedade. Este é o quarto.


Segundo a nota biográfica constante desta sua nova obra, Isabel Alves Moreira nasceu há já 37 anos e, de momento, possui o grau académico «admitida a doutoramento» na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É deputada e advogada por conta própria, tendo várias publicações técnicas na área do Direito Constitucional. A sua restante obra ficcional caracteriza-se pela «indefinição de género», refere a nota biográfica. 

Ao utilizar o conceito de apatridia como tema/mote deste novo livro, Isabel Moreira convoca a um tempo a sua formação de jusconstitucionalista de projecção nacional e a sua trajectória íntima também de projecção nacional. Apátrida, na verdade, é indissociável de um périplo de vida marcado pelo sofrimento da distância em face da pátria de origem. A autora nasceu no país-irmão (o Brasil), a 2 de Abril de 1976 e, de acordo com a sua biografia divulgada na página oficial do Parlamento, concluiu com aproveitamento o 1º, o 2º e o 3º ciclos, o ensino secundário, a licenciatura em Direito e o mestrado em Direito Constitucional, na vertente de Direitos Fundamentais. A experiência do exílio, ademais motivado pela marca de brasa de um regime tirânico, governado por elites opressoras e moralmente corruptas, adensa a carga − ou descarga − autobiográfica da obra, convertendo este livro, texto indefinível, também em testemunho cívico e grito de rebeldia contra todas as formas de ditadura. 

Isabel de Lima Mayer Alves Moreira transporta consigo a convicçãohippy chic de que ser escritor é escrever palavras, mesmo que com erros de ortografia. Articulando a literatura da abjecção e a tentativa frustrada de se configurar como escritora maldita, a autora explora as margens, levando esse absoluto desbordamento muito para lá de todas as fronteiras, sobretudo as do bom senso. Numa escrita de/em vertigem, em pulsão dilacerada e, acima de tudo, dilacerante (para os leitores), o livro insere-se muito bem, todo ele, no perímetro da imbecilidade literária e aí permanece quietinho, indecifrável e ofegante. Através de muitas palavras, agrupadas de forma deliberadamente desconexa, o projecto perturbante e petulante de Isabel Moreira, raiando o suicidário, fá-la mergulhar, com seus demónios privados e de estimação (por ex., «o demónio do asfalto» − pág. 27), nos abismos de uma insanidade que se suspeita teatralizada. Situa-se na margem, ou na encenação desta. Em todo o caso, é sempre a partir do centro, e do seu conforto, que a autora se projecta para a margem. Apátrida apresenta-se, pois, como uma convenção ficcionada em estilo abdominal, que a Wook entrega ao domicílio dos leitores por uns razoáveis € 10,98, mais portes de envio.  

O ponto de chegada deste vórtice vocabular é a margem, a periferia da sanidade, mas, insiste-se, a sua raiz é o centro, um lugar cómodo, bem servido de transportes de toda a espécie. Isabel Moreira procura-se e acha-se no centro, por razões familiares involuntárias (origens na alta burguesia lisboeta; pai ministro de Salazar), mas também por uma demanda que, de forma radicalmente certeira, intui sempre a melhor via da sua própria intervenção (carreira académica convencional, ainda que abruptamente terminada em 2009; grupo parlamentar do Partido Socialista). Há um sagaz oportunismo na escolha destes territórios significantes e é essa subtilíssima estratégia retórica, mas também imagética, que permite à autora direccionar-se e posicionar-se para as margens – e ultrapassá-las para lá do limiar da inteligibilidade (pág. 35: «o gajo não sabe um cu do que se passa»). O centro constitui assim o ponto ou orifício («um buraco diferente» − pág. 25) de irradiação de uma marginalidade que, na representação da narradora/poeta/constitucionalista, se configura como impositiva e compulsória, até traquina. Mais ou menos como as crianças que dizem «xixi» e «cocó» e julgam ter feito uma grande malandrice, sufocando o riso por temor à palmadita iminente. Em troca, recebem apenas um calduço ligeiro e condescendente, enquanto os adultos em seu redor sorriem com bonomia, sussurrando entre si que o petiz até já vocaliza bem os dissílabos. Em Apátrida, a pauta é escabrosa, mas conformista e previsível. A autora, coitadita, esbraceja alguns substantivos e mesmo advérbios, na vã tentativa de ser «profunda» e escrever «literatura». Porém, não alcança mais do que o confessionalismo típico de um diário íntimo de uma adolescente de Telheiras. Julga-se provocatória, mas, no fundo, cumpre à risca as injunções do tipo de escrita que artificialmente cultiva. Crê-se rebelde, quando, na realidade, é obediente e betinha, fazendo a trote ou a galope tudo aquilo que dela se espera. Aliás, daqui não se espera muito. Apátrida é tão original e surpreendente como uma marquise de alumínio. 

O campo semântico desta hemorragia emocional encontra-se logo definido na página 33, onde o autoritarismo é metonimicamente denunciado através da transnomição onomatopaica «chiiiiiiiiiiiiiiiiiiu» (pág. 33, prorrogado no «cala as minhas esplanadas» da pág. 51, e no ritmado «clique, clique, clique» da pág. 47). Apátrida assume-se como obra de continuidade, mas também de ruptura e em ruptura, numa incessante busca homicida, presente no projecto assassino de «matar o bailado dos qualificativos» (pág. 11). Melhor dizendo, Apátrida foi construída, por um empreiteiro de Alverca, em permanente disforia e completa transgressão de todos os cânones. No jornal Público/Ípsilon, de 30.05.2014, Maria da Conceição Caleiro caracterizou Apátrida como «um belo e doloroso livro, de recepção quase física», conferindo-lhe justissimamente a pontuação astrológica de quatro estrelas e um cometa («um livro surpreendente e dos mais interessantes que se publicaram em Portugal nos últimos tempos»). Na verdade, o texto é alvo de uma recepção física, a que de imediato se segue a regurgitação, também física e biliar («vou vomitar» − pág. 40; «o meu umbigo vomitado numa noite aterradora» − pág. 32; «talvez nesse dia ausente tenha / entrado em sua casa e amparasse / o vómito» − pág. 40; «esmurra o vomitado nas casas de banho» − pág. 34). Notamos, a espaços, o eco de uma certa pecuária do desalento.

Trata-se, inquestionavelmente, de uma obra de abordagem dorida, mesmo penosa, um cálculo renal literário. Maria da Conceição Caleiro concluiu a sua recensão interrogando-se sobre o ponto-chave, a questão crucial: «É quase indecidível se o não-alinhamento à direita do texto é intencional ou descuido editorial».

O problema do não-alinhamento à direita do texto afigura-se, de facto, absolutamente nuclear para compreendermos a economia narrativa desteApátrida, quer enquanto livro-objecto, quer na dimensão de objecto-livro. A teoria do descuido editorialista encontra-se refém dos seus próprios postulados. Ao invés, a tese intencionalista tem apoio no percurso público da autora, que vem confirmando uma postura política, mas sobretudo ética, de rejeição estridente do alinhamento à direita, em confronto furioso, mas nem sempre coerente, com o fascismo das consciências e dos afectos, outrora presente em instituições sinistras como a PIDE ou o campo de concentração do Chão Bom do Tarrafal (reaberto por portaria ministerial de 17 de Junho de 1961). 

É também nesse contexto transgressor da «ordem» que deve ser situada a existência de erros de ortografia, que Maria da Conceição Caleiro atribui a uma deficiência de revisão editorial («talvez se justificasse uma revisão que eliminasse os erros de ortografia»). É certo que o livro diz «externo» em lugar de «esterno» e «gim» em vez de «gin», mas tudo isto, entre pecadilhos do mesmo calibre, decorre da intenção de subverter a norma, instaurando, em seu lugar, uma gramática alternativa e caótica, mais próxima da autenticidade demencial da vida, de uma existência atravessada em cambiantes de tal forma sofridos e pavorosos que não se coadunam com as mais elementares regras de escrita. 

As razões dos erros ortográficos de Apátrida, ao invés de serem atribuídas a um desleixo do pobre revisor tipográfico, como sustenta Maria da Conceição Caleiro, deverão buscar-se, porventura, quer nas deficiências da formação básica da autora, processada em retrógrados colégios de freiras, quer à sua proposta transgressiva de desconstrução de todas as convenções burguesas. Já a indesculpável ausência, também apontada por Maria da Conceição Caleiro, de «uma folhinha final antes da capa», encontra explicação plausível no actual contexto de crise económico-financeira e do PAEFF mas também, ousamos dizê-lo, ao propósito implícito de assinalar que esta é uma obra sempre inacabada, eterna e internamente aberta a todas as recepções que, como se referiu, são dominantemente físicas e, nesse âmbito, eminentemente corpóreas. A abertura e a recepção, físicas e corpóreas, são totais e vorazmente carnívoras, ávidas da plenitude dos sentidos, num experimentalismo sucessivo, às vezes múltiplo, e sempre infindo. Enquanto houver portugueses…

Se, como assinala a ex-ministra e pianista Gabriela Canavilhas na contracapa do livro, «Isabel Moreira não pára de surpreender», é também um facto que existe uma linha de continuidade temática e estilística, substantiva e formal, numa obra vulcânica, sulfurosa, que surge caracterizada por uma cadência torrencial de palavras, aluvião semântico de frases despojadas de sentido que obrigam o leitor a reencontrar-se, mesmo que a muito esforço e sem sucesso algum, com uma textura linguística impermeável à compreensão. Nesse sentido, Apátrida é também uma obra de resistência (talvez melhor, de re-sistência ou mesmo de re-sis-tência), que apela à desistência (de-sistência) do leitor, impedindo, de forma militante e raivosa, a descoberta de um qualquer sentido no arrazoado de caracteres que Isabel Moreira despejou às noites sobre um écran em branco.

O corpo e as suas excrescências regulares são centrais neste universo efervescente de delírio condoído e moído, patente logo na página 8, e na referência dela constante a um «estrume de dor». Estrume de dor constitui-se como metáfora e síntese perfeitas destas 104 páginas, impressas na Bloco Gráfico, Lda. (à Maia). 

Menos apreensíveis, porque remetendo para um âmbito mais íntimo ainda que exposto sem pudores nem tabus, se afiguram alusões de tipo confessional, tais como: «estou peganhenta» (pág. 12), «fumei três ganzas e bebi uma garrafa de vinho tinto» (pág. 38), «fui a um bar e comi coisas verdes» (pág. 39), o assaz enigmático «e tal e tal e o caralho» (pág. 15) ou o nauseabundo «dói-me o útero / e de repente tudo cheira mal,» (pág. 19), e ainda «o meu útero, desde então, gentilmente destruído» (pág. 67), a que se poderiam acrescentar, em momentos mais dinâmicos e alvoroçados, «aquele entra e sai ritmado, gramatical,» (pág. 19), o «tirando três dedos femininos de dentro dela» (pág. 41) ou, numa aproximação mais esclarecida e penetrante, «metendo o que pode no que vai dar a umas trompas laqueadas» (pág. 41). Retenha-se ainda o trecho central da página 77, em torno do qual gravitam diversos eixos narrativos:

«tantos gajos, mães, eu tão bêbeda,
meticulosa, um a um, odor a odor, nos
pescoços, nas virilhas, nos cus, onde
fosse, respirar gajo a gajo à procura de
um cheiro familiar
familiar
nós»


Estas imagens, muito tributárias de uma herança democrata-cristã que combina bem a Rerum Novarum e o Moleskine, desaguam, enfim, «num charco, um charco de esperma a tapar a primeira marca de ter sido mãe» (pág. 33). No fim, a pestilência letal: «morro a procurar o teu cheiro em duas ancas» (pág. 74). Isabel Moreira transfere a mecânica de autoflagelação presente noutros momentos da sua obra (recorde-se o arrepiante «esfregar urtigas no sexo», do blogue «Consolação», texto de 2010) para uma pulsão castigadora da lucidez do seu público. A comunidade, já vasta, dos seus leitores e admiradores não gostará de ver que, em apenas duas páginas (pp. 42-43), esta «menina-lobo que uiva culpas» começa por se alimentar frugalmente («comeu uma colherada de batatas» − pág. 42) para, logo a seguir, ser alvo de uma bárbara agressão («a menina leva um estalo na cara» − pág. 43), agravada pela obrigatoriedade de proceder a serviços de limpeza doméstica numa posição desconfortável («eu de mãos atadas nas costas a lamber o chão.» − pág. 53). Note-se, em todo o caso, que este trabalho linguístico foi objecto da justa e devida remuneração pecuniária («o amigo que me enfiava uma nota no sexo» − pág. 53). Encontramo-nos, portanto, fora do âmbito da «unilateralidade sem dolo» que a autora denuncia na página 68. 

No corpus literário que agora celebra com desnudada e espumante exuberância, a autora debate-se entre «a gaveta mortuária das palavras» (pág. 11) e a «desistência das palavras» (pág. 23), optando por um acto de não-desistência, pelo que este livro, livro-em-devir (work in progress), é também promessa, ou ameaça, de que outras obras virão, assim haja vida e saúde e nós cá todos a ver.

A este propósito do ver/não-ver, sublinhe-se que a visualidade é patente nos constantes (des)encontros desta obra com a recusa de qualquer pragmatismo, num escrutínio minucioso, quase espeleológico, da ontologia do Ser (o Sein, à Morais Soares, nº 14, c/v). É dessa inquirição cruciante que Isabel Moreira extrai um dos tópicos mais densos e recorrentes do seu trabalho: deus, um gajo sempre grafado com minúscula. Em metafísico diálogo com um Criador implacável e severíssimo, de matriz conservadora e veterotestamentária, Apátrida imprime à abordagem do divino um sentido agreste de permanente impugnação e desafio, nas franjas da apostasia. Os dispositivos são vários: árvores «tão altas que esmurram deus» (pág. 22), «o choro inútil de deus» (pág. 27), «deus a dar cabo de tudo» (pág. 32), «a cegueira de um tiro de deus amarelo ao máximo ao nosso encontro» (pág. 28, bisando a pág. 102 com «a cegueira de um tiro de deus amarelo máximo ao nosso encontro»). O mais conseguido de todos ocorre sob condições meteorológicas algo adversas, com «deus a mijar-se de medo pelas pernas abaixo naquele temporal» (pág. 98).

Neste cruzamento improvável, quase choque frontal, entre a inspiração tutelar de Rui Nunes e o ferrete freudiano do doutor Alves Moreira, a autora adere plenamente ao cáustico, mas na versão Primavera/Verão 2014. Na página 41, aparece inopinadamente um cigano com uns trocos no bolso, que pergunta à plateia: «− posso levar um bacano?». Podes. 

Quase no final do livro, após conhecermos uma «manicura perdida no cabeleireiro de algés» (pág. 73), somos surpreendidos por aquilo que parece ser um acidente rodoviário, mas, vendo bem, talvez não seja. Ou talvez seja. O ponto é de todo em todo irrelevante e secundário para a percepção do sentido global de uma obra de várias espessuras e tessituras em que nada do que lá está é o que parece, pois nada se conjuga com nada, excepto a presunção de Isabel Moreira de que escreveu literatura e a convicção da Temas e Debates de que um livro de alguém que vai muito aoPrós e Contras sempre venderá alguma coisinha.

A metamorfose corpórea e a distorção anatómica são expedientes que transportam o leitor para um não-lugar (o não-lugar da ausência), em que a percepção do que se lê é severamente punida pela hegemonia, quase tirânica, da escanzelada sofreguidão de Isabel Moreira em colocar palavras atrás de palavras, limitando a isso o seu gesto criativo, ou seja, rasurando a intervenção dos códigos inibidores da pura dejecção verbal. Enquanto houver um teclado e um portátil com bateria, teremos golfadas de angústia. É sob esta perspectiva, a perspectiva baconiana da distorção anatómica, que devem ser compreendidas, por exemplo, as referências a «um intestino prolongado pela garganta», constante da página 44, e a um «útero invertido», da página 48. Ou, mais gastronomicamente, um dos muitos trechos Maddie MacCann de Apátrida: «− Onde está o meu pai? Eis a pergunta que lhe come a pálpebras enquanto mastiga lombo de vaca e lágrimas de desaparecimento do pai.» (pág. 46).

A insalubridade vivencial é exaltada de modo mais lateral do que noutras obras de Isabel Moreira, estando, ainda assim, presente de forma visível, apesar de fugaz. O exercício físico, por exemplo, encontra-se limitado ao encaixe carnal de exclusivo fito orgásmico, erradicando-se por via político-administrativa práticas como o badminton e o ténis de mesa, até porque, como bem sabeis, «quem faz muito desporto demora a vir-se» (pág. 49). Ainda que catártica, esta focalização do trabalho dos corpos na ginástica sexuada («morde-lhe as mamas» − pág. 52) é susceptível de gerar equívocos e até algumas frustrações, nomeadamente quando um dos interlocutores não se mostra à altura das viscerais exigências («− és uma puta velha que não faz um homem vir-se.» − pág. 49). No limite, «− assim dói» (pág. 48), tanto mais que, numa evocação críptica de Bertolucci, se confessa: «eu também não gosto de manteiga» (pág. 23; itálico no original).

A violência, extrema e arrebatada, é resultado, mas também reverso, da ausência de pátria, dessa a-patridia existencial personificada na presença tão ansiada quanto intermitente do pai/pau, tal como apreendemos o sentido do diálogo da página 70:

«− quem és tu, pai?
− disseste pai?
− não, disse pau.»

Jurista-constitucionalista, Isabel Moreira aprofunda em Apátridatemas presentes na sua já apreciável obra, produzindo um livro que se lê num fôlego sobretudo quando está fechado.

A arte da propaganda

por A-24, em 01.08.14
"A arte da propaganda consiste precisamente em ser capaz de despertar a imaginação do público por meio de um apelo aos sentimentos dele, em encontrar a forma psicológica apropriada que prenderá a atenção e agradará os corações das massas nacionais (...).
As forças receptivas das massas são muito restritas, e sua compreensão é fraca. Por outro lado, eles esquecem rapidamente. Sendo esse o caso, toda a propaganda eficaz deve ser restrita a poucos itens essenciais e eles devem ser expressos, na medida do possível, em fórmulas estereotipadas. Esses slogans devem ser repetidos persistentemente, até que o último indivíduo tenha entendido a ideia que foi apresentada. Se esse princípio for esquecido e se uma tentativa for feita para ser abstracta e geral, a propaganda será ineficaz; pois o público não é capaz de digerir ou reter o que é oferecido desta forma. portanto, quanto maior o escopo da mensagem que tem de ser apresentada, mais necessário é que a propaganda descubra o plano de acção que é psicologicamente o mais eficiente."- Joseph Goebbels.

Salazar explicado ás crianças, jovens e incréus

por A-24, em 13.05.14
-Quem foi Salazar?
-Salazar foi o chefe fascista que governou Portugal durante a longa noite fascista.
-E o que foi isso?
-Foi o período entre 1926 e 1974.
-Foi o Salazar que mandou nessa altura?
-Sim, ele e os esbirros fascistas.
-E como era ele?
-Mau. Era um demónio autêntico.
-E o que é que ele fez?
-Fez o mal, fez muito mal a Portugal e aos portugueses.
-Porquê?
-Porque queria os portugueses na miséria e analfabetos.
-Mas porquê?
-Para ser só ele a mandar.
-Os portugueses gostavam dele?
-Não, ninguém gostava.
-Então como é que esteve tanto tempo a mandar?
-Porque os fascistas apoiavam-no e deixavam-no mandar.
-Mas então tinha amigos.
-Não, os fascistas apoiavam-no por que ele deixava-os roubar o povo.
-Mas não eram os fascistas que o deixavam mandar?
-Não, era ele que mandava e dizia aos fascistas para o apoiarem que assim já podiam roubar.
-Mas se ele era só um porque é que os fascistas precisavam dele para roubarem?
-Ai o caralho, eram todos uns ladrões e pronto.
-Havia muitos fascistas?
-Poucos, eram meia dúzia só. Mas o povo tinha medo.
-E porque é que não se revoltavam?
-Porque na televisão diziam sempre que se os fascistas fossem derrubados vinha lá o comunismo.
-Mas a televisão já existia em 1926?
-Não, mas existia a rádio que dizia a mesma coisa.
-Mas os comunistas não são bons?
-São, mas os fascistas mentirosos diziam que eles oprimiam as pessoas onde mandavam.
-E era mentira?
-Claro. Na Polónia, Hungria, URSS, em todos os países onde os comunistas mandavam, as pessoas viviam felizes e havia fartura.
-E cá?
-Cá havia miséria. E analfabetismo.
-Mas as pessoas não iam à escola?
-Não. O Salazar não deixava. E proibiu que se construíssem escolas.
-Ouvi dizer que havia muito analfabetismo na altura.
-E ouviste muito bem. Pouca gente sabia ler e escrever.
-E que mais patifarias fez o Salazar?
-Muitas. Não deixava construir centros de saúde, nem hospitais, nem estradas.
-E mais?
-Não deixava que houvesse pavilhões e polidesportivos em todas as freguesias. Não havia festivais de verão, autoestradas, fundações, subsídios á cultura, televisão a cores, internet, telemóveis...
-Não havia telemóveis?
-Não.
-Então como é que os jovens viviam?
-Mal, passavam o tempo em acampamentos fascistas, caminhadas no campo e em leituras.
-Mas afinal sabiam ler?
-Não, mas quando havia algum que sabia juntavam-se aos sessenta e setenta para o ouvirem.
-E não havia festas?
-Não. O Salazar não queria festas, nem discotecas, nem casas de alterne, nem nada.
-E os jovens não namoravam?
-Não. Se namorassem vinha logo a PIDE e levava-os.
-E havia música?
-Não. O Salazar só deixava que se ouvissem os hinos fascistas.
-Foram anos horríveis.
-Pois foram, só os ricos é que estavam bem.
-E o Salazar era rico?
-Riquíssimo. Tinha palácios, mansões, vivia no luxo, com contas no estrangeiro e tudo.
-Havia muita corrupção?
-Muita, muito mais do que hoje, mas a censura não deixava que se soubesse.
- O Salazar era do piorio.
-Pois era.
-Mas hoje não é assim.
-Não, hoje vives em democracia.
-O Salazar era contra a democracia.
-Era.
-Porquê?
-Porque na democracia quem manda é o povo.
-Ouvi dizer que o povo é quem mais ordena.
-Sim, é uma frase bonita e que define a democracia.
-Eu gosto de viver em democracia.
-E tens razão. Já viste o que podes ter? facebook, telemóvel, discotecas, aborto, ganza, casamento gay, não tens os padres a chatear, é bom não é?
-Sim, e tudo isso graças a Abril, como vimos no outro dia.
-Sim, vejo que não esqueceste.
-Não, e continuo a dizer: 25 de Abril sempre, Salazar nunca mais!
-Ah, ah, é assim mesmo. Viva Abril!

Via A corte na Aldeia

25 de Abril: quando a obsessão se transforma em ridículo

por A-24, em 24.04.14
João Vaz

Existe uma revista, de nome Mais Educativa, distribuída gratuitamente e de periodicidade mensal que hoje me chegou às mãos, na escola. Folheando-a ao acaso, deparo-me com um artigo intitulado "40 anos de liberdade". A coisa não está assinada, e ainda bem. É que, além das falsidades, o nível é de uma redacção do sexto ano.

Esta pérola literária começa com uma página dedicada ao ensino durante o Estado Novo, que me vou abster de comentar - demoraria demasiado tempo. Posteriormente, a segunda página reflecte sobre a vida antes do 25 do quatro, e aí a narrativa atinge proporções delirantes. Ficamos a saber (ou melhor, ficam os jovens estudantes aos quais a revista se destina) que "Antes do 25 de Abril, a ausência de liberdade e a atuação repressiva das forças da autoridade impediam o aparecimento de quaisquer grupos, dos negros aos ciganos, passando pelos hippies, pelos homossexuais ou pelos punks." Isto é verdadeiramente delirante. Portanto, antes da abrilada não havia negros nem ciganos em Portugal. Só com a liberdade é que as fronteiras se abriram e eles foram autorizados a entrar. Gueis também não existiam. Hippies? nem vê-los. Os cabeludos de Vilar de Mouros, em 1971, por exemplo, não estavam em Vilar de Mouros, mas numa outra dimensão. Quanto aos punks, é de facto revoltante. Tudo bem, não existiam em nenhum país do mundo, mas os fascistas não podiam ser suficientemente inovadores para permitirem o aparecimento de punks antes deles surgirem, alguns anos depois? como é que este país podia ir para a frente com tamanha falta de iniciativa e criatividade?
Mais a frente surge mais informação notável. Diz-se que "Com a democracia, o povo ganhou poder. Durante estes quarenta anos, os vários Governos impulsionaram a criação de leis para direitos reclamados pelas pessoas, como o divórcio, o aborto ou o nudismo.". De facto, Abril valeu a pena para que estes direitos essenciais fossem adquiridos, em especial o último. Creio que não é despiciendo recordar as centenas de pessoas que foram perseguidas por defenderem um direito essencial como o nudismo e há que reconhecer que, desde a sua emergência enquanto direito, este país é um lugar melhor para viver. 
O arraial prossegue ao longo de mais uns parágrafos. Não me vou demorar mais a dissecar algo que não merece a pena. Mas, se alguém puder deitar a mão a um dos 25.000 exemplares desta publicação de distribuição gratuita leia. Leia e veja como a obsessão com Abril e a demonização do Estado Novo atinge níveis de absoluto ridículo, conjugados com a mais descarada falsidade.

Somos do tempo do silêncio

por A-24, em 02.10.13
João Vaz

Por isso não somos ouvidos. Porque vivemos no mundo do ruído. Um ruído que tem a sua expressão talvez mais vergonhosa nos minutos de silêncio protagonizados nos campos e recintos desportivos e que são tudo menos silenciosos, substituídos pela estupidez dos aplausos, como se os mortos fossem artistas de circo ou actores de uma comédia qualquer.

Somos do tempo do silêncio e não nos adaptamos a este mundo de ruído, a este mundo onde a falsidade fala mais alto e passa, assim, por verdade. Um mundo onde os próprios detentores daquela se submetem, se subjugam, se dispõem a falar o mais alto que lhes for possível, como se nesse aumento decibélico existisse correspondente acrescento de conteúdo.

Somos do tempo do silêncio e da vergonha. Por isso deixamos que os outros controlem os destinos como se fossem donos das certezas, das vontades, das maiorias. Porque reconhecemos o valor da contemplação, porque há em nós o pudor da verdade que não se prostitui entre a multidão e não precisa do megafone para se fazer ouvir.

Somos do tempo do silêncio, ao qual os nossos dias são alérgicos, ao qual os nossos dias abominam. Mas os nossos dias passarão e o silêncio, esse, permanecerá, como Pascal tão bem sabia. Não para nos aterrorizar, mas para nos receber na sua eternidade luminosa.