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A-24

Esterilizações forçadas continuam na Índia, depois da morte de 14 mulheres

por A-24, em 21.11.14
Médico responsável pelas operações foi detido, mas acusa a administração regional. “Trataram-nas como gado”, dizem familiares das vítimas.


Os serviços de Saúde do estado indiano de Chhattisgarh continuam a contabilizar as mortes de mulheres que foram submetidas a esterilizações forçadas no último fim-de-semana e há já uma nova vítima de um segundo campo na mesma região.
Foram realizadas cerca de 30 intervenções em apenas uma hora num recinto clínico organizado especificamente para o efeito na última segunda-feira, segundo o jornal The Guardian, que cita órgãos de comunicação locais. Para além da morte de uma mulher há mais 20 que foram hospitalizadas, de acordo com o Hindustan Times.
O número de vítimas que morreram na sequência de operações em massa realizadas no sábado ascendeu a 14, segundo as autoridades de Saúde estaduais. Várias dezenas de mulheres continuam internadas e é previsível que o número de mortes possa subir.
As complicações surgiram pouco tempo depois de 83 mulheres terem sido sujeitas a esterilizações num campo organizado pelo governo estadual, no âmbito das políticas de controlo de natalidade indianas. O mesmo médico terá operado todas as mulheres em apenas cinco horas, segundo os jornais locais.
As autoridades sanitárias de Chhattisgarh (um estado no centro do país) prometeram levar a cabo uma investigação e anunciaram esta quinta-feira a detenção de R. K. Gupta, o médico que operou as mulheres.
Gupta negou qualquer responsabilidade pelas mortes, dizendo estar a ser apenas “um bode expiatório”. “Não apenas eu, mas toda a administração regional é responsável pelas mortes”, disse o médico, citado pelo jornal India Today, que apontou para os “remédios de pouca qualidade” prescritos às mulheres após a operação como a razão para as complicações apresentadas.
À Reuters Gupta afirmou ser uma “obrigação moral” operar as mulheres. “Se eles puseram 83 mulheres naquele local, é a minha obrigação moral operá-las a todas. Se eu recusasse, teria de enfrentar a agitação pública”, argumentou o médico, que garantiu já ter realizado 50 mil intervenções do género na sua carreira.
A polícia descreveu as más condições do local onde as mulheres foram operadas, em que havia cães a passar e teias de aranha penduradas no tecto. Ao ritmo a que as operações foram feitas, cada uma terá demorado cerca de dois minutos, provavelmente nem possibilitando a troca de lençóis ou instrumentos – especialistas garantem que para ser bem sucedida cada intervenção terá de durar pelo menos 15 minutos.
As famílias das vítimas estão chocadas com a forma como as mulheres foram tratadas e descrevem mortes após um “sofrimento tremendo”. “Disseram que nada lhes iria acontecer, que era uma pequena intervenção”, contou ao Indian Express Mahesh Suryavanshi, cunhado de uma das vítimas. “Trataram-nas como gado.”

Excessos governamentais
Estima-se que tenham morrido 1434 mulheres na sequência destes procedimentos entre 2003 e 2012, segundo dados das discussões parlamentares citados pelo Hindustan Times, o equivalente a 12 mortes por mês. O jornal adverte, contudo, que os números reais devem ser mais elevados.
Estas notícias revelam os abusos das políticas de controlo populacional que vários estados indianos têm levado a cabo nos últimos anos. O segundo país mais populoso do planeta (1270 milhões de habitantes) pode tornar-se o primeiro em 2030, segundo cálculos das Nações Unidas.
O controlo demográfico tornou-se uma das prioridades de sucessivos governos na Índia – o primeiro país a aplicar um programa nacional de planeamento familiar, nos anos 1970. Num primeiro momento, o Governo de Indira Gandhi organizou um processo de esterilização maciça que abrangeu 10 milhões de pessoas, na sua maioria homens.
Numa sociedade fortemente patriarcal, as esterilizações masculinas despertaram fúria generalizada, ancorada na crença de que os procedimentos retiravam a virilidade aos homens. Os programas passaram, desde então, a concentrar-se quase em exclusivo nas mulheres. Calcula-se que cerca de 37% de todas as indianas casadas tenham sido operadas, face a pouco mais de 2% dos homens. Só em 2012 foram esterilizadas 4,6 milhões de mulheres, segundo os dados oficiais do Governo.
Para cada estado é fixada uma meta anual de esterilizações que deve ser alcançada pelas autoridades de Saúde. O estado de Chhattisgarh (com 24,6 milhões de habitantes), por exemplo, tem de atingir as 180 mil até ao fim do ano. Os responsáveis de Saúde recebem compensações monetárias e são fortemente pressionados a atingir as metas. Às famílias são oferecidas compensações avultadas, muito acima do rendimento médio, tornando ainda mais vulneráveis as mulheres mais pobres. No caso de Chhattisgarh, os familiares receberam 1400 rupias (18 euros), o equivalente a duas semanas de salário.
Organizações como a Human Rights Watch criticam a postura do Governo indiano, “que conta o número de esterilizações como medida do ‘progresso’ sem olhar às circunstâncias”. “É necessária uma reforma total dos programas de planeamento familiar e as abordagens baseadas em metas devem ser eliminadas”, recomenda.

“Todos os homens indianos batem nas mulheres e um dia eu vou fazer o mesmo”

por A-24, em 05.06.14
Violadas, espancadas, assassinadas, abortadas. Na Índia há uma guerra contra as mulheres mas o tema apenas foi aflorado na campanha para as eleições de segunda-feira.

Na Índia, muitas mulheres são espancadas todos os dias. “Todos os homens batem nas mulheres e um dia eu vou fazer o mesmo”, disse um rapaz de oito anos, Sujan Singh, durante uma reunião da Jagrit Youth numa aldeia do estado indiano do Uttar Pradesh. A organização promove encontros entre jovens para os pôr a falar livremente das relações entre géneros. O objectivo é mudar pensamentos e comportamentos num país onde a violência contra as mulheres é endémica


À saída do encontro — que uma responsável da Jagrit descreveu noGuardian —, Sujan estava confuso. O que lhe ouvia parecia-lhe justo, que os homens e as mulheres devem ser tratados da mesma maneira. Mas a sabedoria dos homens da família é feita de experiência: “As raparigas são parvas e tontas e temos que lhes bater todos os dias para ver se lhes entra algum tino na cabeça. O meu pai e os meus irmãos mais velhos dizem isto todos os dias”.
Na Índia, as mulheres são espancadas, violadas e assassinadas todos os dias. A violência de género é tratada como inevitável e difícil de erradicar. Tão difícil, que pouco se falou nela na campanha eleitoral que agora terminou — as legislativas começam segunda-feira.
Apenas um partido, o Congresso (esquerda), pegou no tema, com o candidato, Rahul Gandhi, a anunciar que se ganhar, e for primeiro-ministro, avançará com um projecto de lei para que 30% dos deputados do Parlamento nacional sejam mulheres. Do lado adversário, o partido nacionalista Hindu (BJP), liderado por Narenda Modi — que vai ganhar, dizem as sondagens —, o tema foi omitido; a economia e o regresso da Índia aos palcos mundiais foram os temas de eleição.
“Estão a ser feitas grandes declarações sobre a Índia ter de se tornar numa grande potência”, disse Rahul Gandhi num comício. “Qual super-potência, qual quê. Antes de falarmos em superpotência, temos que fazer com que as mulheres se sintam seguras dentro de um autocarro. Esta é uma luta pela mudança das mentalidades em que cada um de nós, homens e mulheres, temos que desempenhar um grande papel”.
A guerra da Índia contra as mulheres — como lhe chama o jornalista indiano Ram Mashru, que escreveu vários artigos sobre o tema em The Diplomat — é um conflito de várias frentes.

Uma violação a cada 28 minutos
Segundo o departamento indiano de registo de crimes, em 2011 houve 24.206 queixas por violação, o que equivale a uma violação em cada 28 minutos. “Este número aflora apenas o problema, uma vez que a maior parte dos casos de violência sexual não é denunciada porque as vítimas optam por manter o silêncio por muitas razões, incluindo o estigma social que está agarrado a uma violação. Muitas vezes questiona-se o carácter da vítima, pergunta-se se estava na rua à noite ou se o seu comportamento provocou a violação”, explica Ram Mahru nos seus artigos que alertam para a relação entre demografia, economia, taxa de desemprego (300 milhões, sobretudo jovens) e política na guerra contra as mulheres.
A agressão e a violência sexual é, na maior parte das vezes, feita dentro da família dos maridos (quando casam, por norma muito jovens, as mulheres perdem o contacto com a família de origem). E os investigadores dizem que o trabalho a fazer é transversal e não se pode limitar à aprovação de leis, como aconteceu depois da violação, por um grupo de homens, de uma estudante num autocarro em Nova Deli, em Dezembro de 2012. Desde então, muitos outros casos polémicos apareceram com grande destaque nos media. Há que mudar o comportamento dos polícias, dos juízes que são brandos ou não criminalizam estes crimes, dos políticos que preferem não abordar o assunto.
A guerra contra as mulheres começa também nas mulheres. Na Índia, dizem as estimativas de organizações como a UNICEF, há 25 milhões de mulheres “desaparecidas” — não é um fenómeno localizado, existe em muitos países e, em todo o mundo, são 200 milhões as mulheres “desaparecidas” (números das Nações Unidas).
Desapareceram antes de nascer, nos abortos selectivos que na Índia são cada vez mais, apesar de proibidos por lei, ou foram mortas ao nascer por serem raparigas e um fardo para as famílias que valorizam os filhos homens que, quando casam, trazem uma mais-valia para dentro de casa (a mulher) e não pagam dote (uma prática também proibida por lei mas que continua a ser praticada).
“Estrangulei-a quando nasceu”, testemunha uma mulher indiana no impressionante documentário It’s a girl, de Evan Grae Davis (É menina, está disponível no Youtube). Numa casa indiana, olhamos para um bocadinho de terra onde as mulheres da família enterraram as filhas que foram mortas à nascença e ouvimos uma mulher mais velha contar que as mulheres dos filhos têm que matar porque ela também matou.

Público 6/4/2014

Ainda sobre as eleições na Índia

por A-24, em 31.05.14
Jorge Almeida Fernandes no PÚBLICO:

1. A vitória de Narendra Modi e dos nacionalistas hindus do Bharatiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano) marca o fim de uma era. A vitória estava anunciada. A surpresa é a sua dimensão. Desabou o Partido do Congresso, que liderou a independência da Índia, moldou as instituições e governou quase sempre. Só este facto permite falar em “ruptura histórica”. Abre-se também uma situação inédita desde os tempos da antiga hegemonia do Congresso: a oposição parece inexistente.

A avalancha que leva Modi ao poder suscita inquietações nas minorias religiosas — muçulmanos e cristãos — e entre os liberais seculares que temem a “hinduização” da “maior democracia do mundo” e uma deriva autoritária. Em Março, o historiador Ramachandra Guha, impenitente crítico de Modi, avisou os intelectuais que falavam na ameaça de um fascismo hindu: “É sucumbir a um infeliz e prematuro alarmismo. A democracia sobreviverá.”
2. O BJP esteve no poder entre 1988 e 2004 e não aconteceu nenhuma catástrofe. O primeiro-ministro de então, A. B. Vajpayee, pertencia à ala “moderada” do partido e estava amarrado numa coligação heterogéna. Ao contrário, Modi tem uma maioria absoluta e um perfil controverso. Fez carreira na “milícia” hinduísta Corpo Nacional de Voluntários (RSS), vanguarda do nacionalismo hindu desde os anos 1920. Depois, o nome de Modi está associado aos confrontos inter-religiosos e massacres ocorridos em 2002 quando governava o estado de Gujarat. Foi ilibado pelo Supremo Tribunal mas os seus críticos replicam: “Falta de provas é uma coisa, inocência é outra.”
O fascismo é um fenómeno europeu e a prioridade do RSS não é conquistar o poder, sublinha o indianista Christophe Jaffrelot. Quer modelar a sociedade segundo os valores e símbolos hindus, identificar Índia e hinduísmo: é a ideologia da hinduidade (Hindutva). As outras religiões teriam liberdade no foro privado, na mesquita ou na igreja, mas o espaço público seria exclusivo do hinduísmo e seus símbolos.

O BJP tem no seu programa uma parte destas reivindicações, como o Código Civil Uniforme que retiraria aos muçulmanos a aplicação de um direito próprio — designadamente em matéria de família — com base na sharia (lei islâmica). A Hindutva visa desmantelar o modelo secularista indiano, muito mais próximo do multiculturalismo do que do laicismo. Poderia desembocar, na expressão de Jaffrelot, numa espécie de “democracia étnica”.
Curiosamente, durante a campanha, Modi evitou o tema da Hindutva e nunca usou a palavra. Deixou esse trabalho para o seu “braço direito”, Amit Shah, no estado do Uttar Pradesh. Duplicidade? Interroga-se o jornalista britânico Edward Luce: será Modi “um Dr Jekyll e Mr Hyde indiano”?
3. Há uma questão prévia: por que votaram os indianos maciçamente em Modi? Primeiro, ele deu “um horizonte de esperança” e centrou a campanha na economia e no desenvolvimento. Foi impressionante o contraste entre a sua “energia” e a “atonia” do discurso do Congresso, sublinham os analistas. A Índia conheceu um período de espectacular crescimento económico e uma travagem nos últimos dois anos. As expectativas das jovens classes médias são elevadíssimas. A travagem deu lugar à frustração e à denúncia da corrupção generalizada: o Congresso era o alvo.
Modi seduziu as classes médias urbanas com o seu discurso contra a corrupção e com a sua imagem de “administrador”, mas também pobres que antes votavam no Congresso. Não falou no combate à desigualdade social mas na aceleração da mobilidade social. Recebeu o apoio dos meios de negócios, graças à sua política liberal e de atracção de investimentos no Gujarat. A Bolsa entrou em euforia mal surgiram as sondagens à boca das urnas. Muitos vêem nele um “Thatcher indiano”. Promete uma política externa guiada pelos interesses económicos da Índia. E também a afirmação da potência indiana: citando a política do governo de Vajpayee quer o “equilíbrio entre força e paz”.
No dispositivo de sedução de Modi pesa também a imagem que de si construiu: um homem rico mas nascido numa casta baixa, um homem novo não corrompido pelos corredores do poder de Nova Deli, um homem com autoridade — o apelo à disciplina está a crescer na Índia. Convenceu os eleitores de que era a solução para o crescimento da Índia. Foi o que o Congresso não soube fazer.
Resume o influente jornalista Swapan Dasgupta, que colaborou na campanha de Modi: “O contexto de hoje na Índia é o sentimento de declínio da economia, de deriva, de frustração pessoal. Modi escolheu directamente a economia e não falou de coisas abstractas como a ideia de India.”
4. Para onde vai a Índia? Anota Ramachandra Guha: “Modi falou de uma governação firme e eficaz. O RSS tem uma ideia, que é a da Hindutva. O verdadeiro teste só virá depois de ser eleito. A questão é que isto é a Índia não é um Paquistão hindu.” Corrobora o analista Ganesh Devi: “A diversidade indiana funciona como uma válvula de segurança contra todas as formas de ideologias de exclusão. Modi vai talvez tentar promover políticas de clivagem, mas a Índia não o deixará fazer.”
R. K. Swahney, membro de um círculo de reflexão próximo do BJP, declarou ao correspondente do Monde: “Se você não trabalhar com todas as comunidades, arrisca-se a ameaçar a paz e, portanto, a prosperidade económica do país. Ora, nada afastará Modi da prosperidade económica. Ele quer ser o Deng Xiaoping da Índia.”
Jaffrelot tem uma ideia mais complexa. Modi estará sob pressão da “ala dura” dos nacionalistas hindus, a quem deverá fazer concessões simbólicas. A magnitude da sua vitória é uma face de dois gumes. Pode convencer os radicais de que é a oportunidade para concretizar a sua agenda. Por outro lado, deu a Modi uma enorme legitimidade pessoal. E ele mostrou, no Gujarat, que se sabe distanciar do Sangh Parivar (a cúpula do nacionalismo hindu). Vê um risco: “Entrar a Índia numa nova era combinando nacionalismo religioso, osmose entre círculos políticos e meios económicos, personalização do poder.”
A Índia tem uma democracia que é um modelo de estabilidade institucional apto a “gerir o caos”. Tem um eficaz sistema de checks and balances de inspiração anglo-saxónica. O romancista Chandrahas Choudhury considera que Modi abre um imenso desafio mas propõe um olhar histórico. “Em Agosto, a democracia indiana celebrará os seus 67 anos. (…) Olhando para há 20 anos atrás, a democracia indiana parece hoje mais resistente ao vírus das provocações religiosas e da maioria [hindu]. Olhando para trás, para o ponto de origem, a democracia indiana parece hoje muito mais… muitíssimo mais real.”

O mundo é um lugar estranho

por A-24, em 23.12.13
Na região de Shravasti, no Uttar Pradesh, uma rapariga de oito anos de idade foi a mulher mais nova a divorciar-se na Índia. Sim, leu bem: oito anos de idade. Fatima Magree casou (casaram-na, melhor dito) com Arjun Bakridi quando tinha quatro anos de idade. Sim, leu bem: quatro anos de idade. Quatro anos depois, quando perfez oito anos – uma mulher feita, portanto –, o marido quis levantar a mercadoria. O pai de Fatima opôs-se, dizendo que preferia que a rapariga ficasse até aos 18 anos no lar paterno. Após algumas peripécias, a coisa resolveu-se, e Fatima ficou onde quis, na casa de seus pais. A UNICEF estima que, naquela região, 32,9% das mulheres casem antes da idade legalmente permitida. O distrito de Shravasti tem a maior percentagem de casamentos de menores de idade da Índia. Pormenor relevante: a literacia feminina situa-se nuns baixíssimos 19% da população.

via Malomil

O país onde a violação de uma mulher é higiene pública

por A-24, em 18.12.13
Henrique Raposo

É por estas e por outras que o relativismo tem pernas curtas. Em dezembro de 2012, uma jovem de 23 anos foi violada num autocarro de Nova Deli por um grupo de indivíduos, mas grande parte da sociedade culpou a vítima e não os agressores. Um dos gurus barbudos do hinduísmo, Asaram Bapu, afirmou que a vítima procedera mal ao ter resistido às investidas. Então, não queres um gang-rape, ó beleza? Segundo Bapu, ela devia ter implorado por misericórdia através da invocação do termo 'bhaya' (qualquer coisa como 'mano'). Dessa forma, garante Bapu, os violadores tê-la-iam deixado em paz. Ó galdéria, se me tratares por 'irmão', nós deixamos o nosso plano de violação e vamos à nossa vida como se nada fosse, está bem? A rapariga morreu duas semanas depois no hospital.

Felizmente, as mulheres indianas não aceitam a tese do "isto é a cultura deles". A violência do caso furou pela primeira vez o véu da negação ou da indiferença em relação a este problema endémico. Surgiu na sociedade indiana uma onda de manifestações nunca antes vista contra a normalidade das violações, contra o machismo dos costumes e das leis. Ainda antes do julgamento dos violadores, o quadro legal foi alterado. O estupro deixou a brandura jurídica e entrou no terreno mortal: 20 anos de pena mínima, pena de morte para os casos que provoquem a morte ou o estado vegetativo da vítima. Em setembro, no julgamento mais famoso da história indiana, o tribunal condenou à morte quatro dos agressores. Em paralelo, o número de denúncias aumentou. O caso do autocarro quebrou mesmo a capa da vergonha de muitas mulheres. Em 2012, a polícia de Nova Deli registou 706 denúncias de estupro; entre janeiro e outubro de 2013, o número já estava em 1330. Idem para os casos de abuso sexual: 727 em 2012, 2844 entre janeiro e outubro deste ano.

Mas será que este novo quadro legal resolve o problema? Não. Como dizem os grupos de mulheres indianas, o problema é cultural, está integrado na cultura masculina do país, uma cultura que diz "a culpa é dela" porque tinha um decote às 10 da noite, "estava mesmo a pedi-las". Boa parte da rapaziada indiana não vê a violação colectiva de uma rapariga como um crime ou como um acto imoral, mas sim como uma celebração da masculinidade e, acima de tudo, como uma punição da emancipação feminina. Ó beleza, então andas sozinha por aí, a trabalhar e a ir ao cinema? Ele, o violador, não se sente culpado, é apenas um membro da equipa dos bons costumes; ainda por cima, a culpa fica convenientemente diluída no colectivo do gang-rape. A coragem colectiva é sempre uma tapeçaria de cobardias individuais, não é verdade? E, por falar em cobardia, convém registar que o tal guru foi preso em novembro. A polícia diz que Asaram Bapu violou uma rapariga de 16 anos num comício religioso. Saliente-se que este homem é famoso devido à defesa de uma "vida pia" e afastada dos "prazeres carnais".

O sistema de castas na Índia VIII

por A-24, em 09.08.13
A raiva ressoa até no mais alto escalão do governo. De 1997 a 2002, K.R. Narayanan assumiu o cargo de presidente da Índia, o primeiro intocável nessa função. O presidente extrapolou os limites de seu papel e criticou o sistema de castas. Em 2000, na cerimônia do Dia da República, ele parafraseou Ambedkar e disse que, se intocabilidade e discriminação contra as mulheres não fossem eliminadas, “o edifício de nossa democracia será como um palácio erigido sobre um monte de esterco”.
Mas nenhuma retórica porá fim ao drama dos intocáveis, vítimas de uma religião que os julga subumanos e de uma sociedade rural que os explora como escravos. Existe esperança na nova geração de ativistas que emergiu para combater usando as armas do sistema legal. E as linhas divisórias das castas perderam nitidez nos cenários mais anônimos e pragmáticos das cidades. Mas, enquanto não surgir um líder intocável como Ambedkar ou o hinduísmo não deixar de ter papel central na política e na imposição da lei – duas perspectivas distantes –, a vergonha da condição de intocável persistirá.


A mudança fundamental, quando e se vier, será traumática. Acontecerá de aldeia em aldeia, onde os primeiros passos serão atos de desafio. Como o passo dado por Babulal Bairwa, dono de terra na aldeia de Chakwara, no Rajastão.
Certa manhã, Bairwa decidiu banhar-se na lagoa da vila, não freqüentada por intocáveis.
À noite, uma turba cercou sua casa e ameaçou matá-lo. Ele deu queixa à polícia e a um grupo de defesa dos direitos humanos. Agora Bairwa nunca anda sozinho. Ele tem esperança de que seu apelo à Justiça acabe levando à abertura da lagoa para todas as castas. Mas, enquanto isso, vive do único modo que lhe é possível. “Sou limpo. Não fumo, não bebo nem como carne. Trabalho muito. Faço tudo direito. Por que então sou intocável?”
Porque nasceu intocável. Há 160 milhões de indianos que cumprem essa sentença vitalícia.

Veja

Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia VII

por A-24, em 08.08.13
Para identificar ativistas políticos em comunidades intocáveis, Macwan aplica um teste simples: “Procuro detectar raiva”. O que desencadeia o ódio em geral é um ato de violência testemunhado ou sofrido. Em anos recentes, os casos informados de violência contra intocáveis aumentaram de 20% a 30% em estados como Bihar e Tamil Nadu. Os ativistas interpretam o novo surto de violência como resposta direta à nova postura resoluta dos intocáveis. Também afirmam que os números oficiais não representam o verdadeiro grau de violência, pois apenas pequena fração dos crimes contra intocáveis é informada – e raros são investigados pela polícia.


Há raiva, combinada a medo e desamparo, no rosto das vítimas de crimes que encontro. Em um galpão agrícola no Rajastão, onde está escondido com sua família, Laxman Singh conta que uma noite amigos e parentes do presidente do conselho comunitário o espancaram com hastes de ferro e pedras e “foram embora pensando que eu tinha morrido”. Ele perdeu as duas pernas com gangrena depois de ter passado três dias deitado no chão do hospital, sem tratamento. Seu crime: ter dado queixa à polícia por não ter sido pago pelo trabalho de pedreiro que fizera na casa do presidente do conselho. “Meus atacantes estão a minha procura”, declara. “Sabem o que eu diria contra eles no tribunal.”
Alguns dos piores crimes de casta acontecem em Bihar, estado pobre e anárquico fronteiriço com o Nepal. Nos últimos 30 anos, como parte de uma luta pela reforma agrária liderado por militantes conhecidos como naxalitas, os intocáveis vêm combatendo violência com violência, usando armas de fogo para atacar donos de terras de castas superiores. Milícias particulares dessas castas surgiram para retaliar.
Em seu estúdio em Patna, capital de Bihar, o fotógrafo Krishna Murari Kishan me mostra seu arquivo: imagens medonhas de intocáveis mortos, mulheres e crianças queimadas vivas dentro de suas casas. “Toda semana há uma ou duas mortes”, comenta Kishan. “Mas isso é muito pouco para que eu vá até lá documentar. Os editores só me mandam em massacres.”
Escondendo um revólver sob o banco do carro, Kishan me leva à zona rural para conhecer o quartel-general da milícia mais destacada, os Ranvir Sena, envolvidos em mais de 500 mortes de intocáveis. Um chefe da milícia – um brâmane – concorda em falar, anonimamente, em uma aldeia que chamam de “fortaleza”, devido a seu estoque de armas. Ele afirma que os intocáveis estão obtendo direitos demais e que seu grupo está se defendendo. “Se formos provocados, mataremos”, diz. “Para cada um dos nossos que for morto, mataremos dez intocáveis.” Muitos dos mortos são mulheres e crianças, argumento. Por que alvejar inocentes? Ele dá de ombros. “Ficam na linha de fogo.”
"Eu procuro raiva”, diz Martin Macwan. E os intocáveis mais irados, afirmam os ativistas, são mulheres. Elas vêem o marido abandonar a família em busca de trabalho nas cidades. Vêem que os homens que ficam se sentem deprimidos e derrotados. Hoje, um número cada vez maior de mulheres julga que cabe a elas defender a família.
Uma irada voz feminina vem de Uttar Pradesh, o mais populoso estado indiano. Um dia, vi Mayawati, ex-professora de 46 anos, da casta de intocáveis chamar, trabalhadores de curtume, discursar em um comício em Lucknow, capital do estado. Milhares de pessoas apinhavam-se no terreno da escola para ouvi-la criticar o legado de Manu e jurar que levará à Justiça quem perpetrar crimes de casta.
Mayawati é líder, em seu estado, do partido Bahujan Samaj, uma organização política do eleitorado intocável da Índia setentrional. Ela foi por duas vezes nomeada ministra-chefe de seu estado – a primeira mulher intocável a ter esse cargo – e também por duas vezes deposta, meses depois, quando o partido de coalizão, dominado por brâmanes, retirou seu apoio.
Semanas depois do comício, Mayawati é mais uma vez nomeada ministra-chefe – e o partido de coalizão é novamente a organização de casta superior que ela censurara em seu discurso. Em um ajuste típico das oportunistas negociações da política indiana, o partido das castas inferiores juntou-se ao das superiores para refrear a crescente influência do partido dos sudras, grupo dos trabalhadores agrícolas, o nível logo acima dos intocáveis. “É como na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos se aliaram aos soviéticos”, diz Chandra Bhan Prasad, colunista de jornal intocável.

Veja

Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia VI

por A-24, em 07.08.13
Seu busto está coroado por viçosos cravos-de-defunto alaranjados no dia em que visito a Colônia Ramabai, uma favela em Mumbai batizada com o nome da mulher de Ambedkar. Harish K. Ahire, um médico intocável, é meu guia. Caminhando pelas vielas movimentadas, vejo o rosto de Ambedkar na parede das casas, no interior de pequenos templos budistas, sobre portas de entrada, em placas de rua. Os habitantes contam, empolgados, que Ambedkar inspirou seus pais a se mudar para a cidade uma ou duas gerações anteriores para escapar ao sufocante jugo das castas. Mas ainda assim os esgotos de Ramabai são a céu aberto; as escolas, ruins; e seus habitantes, assolados por doenças. Ambedkar fez alguma diferença ali?
Ahire apresenta-me a Ambet Raghunath, magro, descalço, cerca de 30 anos. Deixara sua aldeia natal próxima de Varanasi e viera para Ramabai com 200 rúpias, ou 4 dólares. Hoje trabalha numa loja, preparando e vendendo o bétele, um masticatório feito com noz-de-areca. Ganha 40 dólares por mês, uma quantia régia para um intocável de aldeia, e remete a maior parte do dinheiro para a mulher, a quem visita uma vez por ano. “Nunca voltarei a viver lá”, declara. “Aqui tenho liberdade para fazer o trabalho que quiser e para morar onde quiser.”


Na favela de Ramabai, todas as castas vivem juntas, bebem água do mesmo poço e esperam na mesma fila, unidas pela pobreza. Como em algumas outras áreas urbanas, ali os intocáveis podem viver anonimamente e ter até mesmo alguma liberdade de escolha. A favela pode parecer uma derrota. Mas representa resoluta ruptura prática do sistema de castas, algo que causaria admiração a Ambedkar. Nenhum líder intocável emergiu desde a morte de Ambedkar. O movimento está fragmentado, estado por estado. A maior esperança de mudança hoje em dia reside em um pequeno mas crescente grupo de organizadores das massas disperso pela Índia. Esses ativistas atuam nas aldeias, o viveiro do sistema de castas, onde ensinam às pessoas habilidades e táticas para lutar contra o destino.
Encontrar e treinar líderes tornou-se vocação para Martin Macwan, um dos mais destacados intocáveis desde Ambedkar. Macwan é fundador e diretor do Navsarjan Trust, grupo com sede em Gujarat empenhado em fazer cumprir as leis antidiscriminação. Ele liderou o grupo que compareceu à Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, realizada em 2001 em Durban, na África do Sul. O grupo pleiteou que a discriminação de castas fizesse parte da pauta da conferência, mas o governo da Índia fez lobby feroz para impedir uma exposição da questão das castas. “O que faço tem relação com lembranças da infância”, declara Macwan do banco de trás de uma picape que sacoleja nos sulcos dos campos de Gujarat. Anos de viagens por estradas ruins deram a ele uma hérnia de disco e hoje, aos 41 anos, leva consigo uma almofada especial. Com rosto de menino, camisa alinhada e bigode, o agitador parece um professor de colégio.
Macwan, membro da casta de tecelões, não se esquece das humilhações passadas: despejarem água em suas mãos em vez de servi-la em copo, ser ridicularizado por usar sapatos impróprios para sua casta, ver a mãe trabalhar quase de graça em uma asfixiante fábrica de rapé. Ele ganhou uma bolsa de estudos em um seminário jesuíta, mas desiludiu-se com o que julgou ser o descaso da igreja pelos pobres. Após formar-se em direito em 1983, começou a trabalhar em comunidades intocáveis, tratando de questões de reforma agrária. E então Golana aconteceu. Em 1986, Macwan e outro ativista estavam ajudando uma cooperativa de intocáveis a reivindicar a posse do terreno que o governo estadual havia concedido a eles na aldeia de Golana. Proprietários de terras xátrias, uma casta superior, que usavam ilegalmente o local para debulha de cereais, avisaram aos intocáveis que seria bom desistirem da reivindicação.
As tensões aumentaram. Um dia, quando Macwan estava ausente devido a uma febre, os donos de terras atacaram a comunidade dos intocáveis. Mataram quatro pessoas, feriram 18 e queimaram casas. Um dos mortos era colega de Macwan. “Seu crânio foi fraturado. Atiraram nele pelo menos seis vezes”, declara o ativista. “Não passo um dia sem me lembrar.”
Macwan liderou um contra-ataque, armado com os direitos consagrados na Constituição. “Os xátrias supunham que pagariam uma pequena soma e tudo seria esquecido”, diz ele. Macwan reuniu 150 testemunhas e organizou um julgamento simulado para treinar os aldeões para a audiência formal. Resultado: dez sentenças de prisão perpétua por assassinato. “Os xátrias tiveram de vender suas terras e fábricas para pagar os advogados”, conclui ele. “Perderam seu poder econômico e moral.”
Essa espantosa vitória na Justiça motivou Macwan a fundar sua própria organização com financiamento vindo de Washington – um incentivo baseado no Programa Holdeen para a Índia. A Navsarjan (“novo começo” em gujarati), atua em cerca de 2,2 mil aldeias. Mais de 150 “advogados descalços” foram preparados para ajudar intocáveis. Mesmo aldeões de castas superiores podem solicitar ajuda legal ao grupo, mas Macwan cobra um preço: têm de aceitar um copo d’água das mãos de um intocável.

Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia V

por A-24, em 06.08.13
Rogou aos indianos que rejeitassem a idéia de que qualquer ser humano é impuro e que deixassem de discriminar os intocáveis. Em seu ashram, todos faziam tarefas tidas como impuras.

Gandhi também deu um novo nome aos intocáveis: harijan, que significa “povo de Deus”. E em 1933, partiu em sua polêmica jornada harijan, desgostando o establishment hindu durante sua travessia pela Índia ao militar em favor de medidas como a abertura dos templos aos intocáveis. Ao aproximar-se do fim de seu périplo, Gandhi proclamou que “a condição de intocável está quase extinta”. Doce ilusão.

Historiadores afirmam que Gandhi merece grande crédito por conseguir um enfoque nacional para a questão e por empenhar sua aura moral na campanha pela abolição da intocabilidade. Mas, na verdade, ele nunca renunciou ao sistema de castas hindu e poucos foram os resultados concretos de suas ações. Muitos intocáveis, particularmente os que têm instrução, adorariam derrubar Gandhi de seu pedestal. “Ele é o homem mais mal compreendido pelo mundo ocidental”, argumenta o professor Thorat, o intocável economista. “Gandhi de fato teve um papel importante na obtenção da independência da Índia com sua campanha não-violenta. Mas também foi responsável pela manutenção da ortodoxia do sistema de castas – o deplorável presente da Índia para o mundo.” A designação harijan, muitos afirmam, desperta piedade em vez de respeito. Intocáveis politizados preferem o termo dalit, que significa “oprimido”.
O maior pecado visto em Gandhi, porém, foi ter tolhido a atuação de um homem chamado Bhimrao Ramji Ambedkar – principal redator da Constituição indiana, arquiteto do programa de ação afirmativa da Índia, autor de mais de uma dezena de livros, fundador do primeiro partido político de intocáveis e seu único herói verdadeiro na Índia. Ambedkar nasceu em 1891 na casta intocável dos mahars, servidores domésticos. Obrigado a sentar-se separado dos meninos de castas superiores na escola, Ambedkar destacou-se como aluno brilhante. Com a ajuda de bolsas de estudos, obteve graus de doutor na Universidade Columbia, em Nova York, e na London School of Economics.
Ambedkar voltou para Bombaim (atual Mumbai) em 1923 para trabalhar como advogado e filiar-se ao nascente movimento dos intocáveis. Falava sem rodeios, era desafiador e em uma ocasião encerrou um comício queimando um exemplar das Leis de Manu. Com esse ato herético, declarou guerra. “Nada pode emancipar os intocáveis a não ser a destruição do sistema de castas”, afirmou. Sua posição estava definida: queria a abolição do alicerce religioso da vida civil.

No começo da década de 30, Ambedkar tornara-se o principal porta-voz da causa dos intocáveis. Quando o governo colonial britânico acedeu às reivindicações de líderes intocáveis em favor da participação das castas inferiores da Índia no sistema político, Ambedkar lutou por um eleitorado separado. Temia que um intocável não conseguisse jamais vencer uma eleição aberta a eleitores de todas as castas. Queria representantes no poder público escolhidos exclusivamente pelos intocáveis.
Gandhi combateu a posição de Ambedkar por princípios religiosos, receando que soluções seculares para os problemas de casta viessem a destruir o hinduísmo. Em setembro de 1932, quando parecia que os britânicos tomariam o partido de Ambedkar, Gandhi protestou, iniciando uma “greve de fome até a morte”. Com Gandhi enfraquecendo, depois de alguns dias Ambedkar não teve escolha além de ceder. Ele conseguiu a garantia de cargos reservados para intocáveis na legislatura, mas as ações de Gandhi arrefeceram sobremaneira o ímpeto de mudança radical.
A incapacidade de Ambedkar para erradicar do hinduísmo o sistema de castas levou-o por fim a abandonar a religião. Em outubro de 1956, na cidade de Nagpur, Ambedkar converteu-se ao budismo. Centenas de milhares de intocáveis logo seguiram seu exemplo. Mas dois meses depois Ambedkar morreu de causas naturais, e a conversão religiosa, embora ainda popular entre alguns intocáveis urbanos, fracassou como movimento de massa. Em aspectos importantes, porém, ele continua vivo. Representado em estátuas e pinturas – de terno azul, óculos de aros escuros, nas mãos um exemplar da Constituição –, ele figura em quase todos os bairros de intocáveis nas aldeias e em muitas áreas urbanas pobres.

Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia IV

por A-24, em 05.08.13
Um grupo de homens trajando dhoti branco senta-se em silêncio nos degraus acima da pira. São a parentela masculina da finada. A tradição não permite mulheres em cremações porque podem chorar – e as lágrimas que caem de seus olhos são consideradas poluentes, como todos os líquidos do corpo. Os homens esperam.
Na margem lamacenta, dois adolescentes doms revolvem a pira com uma vara com a tranqüilidade de quem remexe uma fogueira de preparar comida. Um deles usa uma vara para empurrar uma perna de volta para a pilha em chamas. Duas vacas se aquecem ao pé do fogo.


Quando da madeira só restam as cinzas, um dom retira um esterno da falecida, ainda intacto, e entrega-o ao filho mais velho, que o atira ao Ganges. Assim que a família se vai, crianças doms desatam a correr pela terra escurecida, de olhos fitos em uma pequena pipa vermelha no céu. “Depois recolhemos as cinzas”, explica Choudhary. “Se tivermos sorte, encontraremos bons dentes ou enfeites de nariz. Ficamos com eles.”
Abaixo dos doms existem ainda outras castas, os inferiores dos inferiores. Conhecidos como bhangis, pakhis ou sikkaliars, dependendo da região, eles são os “lixeiros manuais”. Em aldeias e cidades, esses homens transportam fezes que removem de latrinas públicas, limpam a fossa sanitária das casas e varrem dejetos de animais nas ruas. Sanitários sem descarga são proibidos na maioria dos estados, mas não se impõe o cumprimento dessa lei, e os municípios não escondem que contratam garis, principalmente mulheres, para esvaziar essas latrinas, em geral por menos de 1 dólar ao dia. Nem mesmo outros intocáveis aceitam algo de comer ou de beber de um lixeiro manual.
Certa manhã em Ahmadabad, a maior cidade do estado de Gujarat, no oeste da Índia, acompanho uma turma de cinco bhangis incumbida de desentupir esgotos em Khanpur, um bairro de classe média. Integram uma força de trabalho de mais de 10 mil lixeiros na cidade. A equipe, trajando roupas comuns limpas e alinhadas, pára diante de um postigo do lado de fora de uma mesquita. Dinesh Parmar, um esguio moço de 25 anos com uma corrente de ouro reluzindo no pescoço, abre a tampa. Da escuridão lá embaixo, brotam baratas e um fedor que inunda a rua.
Parmar hesita apenas um instante, e então desce pelo buraco – sem luvas nem máscara contra gás. Com o corpo oculto lá dentro, metodicamente ele ergue balde após balde de excremento acima da cabeça, virando tudo na rua. Moscas formam uma densa cortina. Ele pára, atordoado com o monóxido de carbono que emana do esgoto. O supervisor faz um sinal com a cabeça, autorizando Parmar a subir. No ano anterior, 30 bhangis haviam morrido intoxicados por gás nos esgotos de Ahmadabad.
Parmar deixa pegadas marrons ao se dirigir para uma viela. Desce por vários outros postigos para remover a imundície coagulada. Mulheres olham das portas, tapando o nariz com véu, só abrindo a boca para reclamar que suas privadas estão entupidas. Depois do último buraco, Parmar queda-se calado no meio da viela, braços e pernas cobertos de sujeira. Então pede água e sabão às mulheres que observam. Finalmente uma se resolve, esbravejando que as outras devem se envergonhar. Parmar despe-se na rua e lava sua roupa, seu corpo e cabelo.
“É meu destino. Não há outro emprego, não tenho instrução”, explica Parmar, andando pela rua com o resto do grupo, todo ensopado mas novamente limpo. “Em alguns lugares consigo ajuda para me lavar; em outros, não. Mas nem mesmo as pessoas bondosas jamais me ofereceram uma xícara de chá.” Parmar tem uma filha. “Eu lhe darei educação”, promete. “Se o destino dela for bom, conseguirá um emprego melhor.” Afasta-se e vai atrás de seus colegas, as poças secando depressa atrás dele. A consciência ocasionalmente levou hindus de castas superiores a combater o conceito da intocabilidade. O próprio Mahatma Gandhi liderou uma das primeiras e mais audaciosas campanhas para eliminar a condição de intocável. No ashram, ou comunidade, que fundou em 1915 em Ahmadabad, Gandhi estarreceu seus defensores acolhendo uma família de intocáveis. Logo depois ele adotou a filha intocável daquela família.

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