É inevitável: se uma indústria mexe, o estado sente a necessidade de taxar. As tecnologias da informação mexem e atentação de taxar é mais forte. Na Hungria, o auto-denominado governo iliberal de Viktor Órban propôs uma taxa sobre o consumo de dados. Ao contrário de outras medidas do passado que criaram mais controvérsia fora da Hungria do que dentro dela, esta foi mal recebida. Milhares sairam à rua, levantando os seus telemóveis em protesto, gerando imagens fantásticas e criando uma onda de descontentamento no país.
Venceram. Viktor Orban recuou na taxa dizendo algo surpreendentemente sensível: “Se as pessoas não só não gostam, como consideram que não é razoável, então não faz sentido lançar a medida”.
Portugal tem imensas taxas estúpidas, mas nenhuma será tão estúpida como a taxa da cópia privada. Em tudo semelhante à taxa proposta por Orban, mas recaindo sobre a armazenagem em vez do consumo de dados. Pior ainda, porque se destina directamente a alimentar uma máquina burocrática e a subsidiar pessoas com meios para se sustentarem confortavelmente. No entanto, a taxa prepara-se para passar, com um acordo político alargado. Um governo tantas vezes acusado, e com alguma razão, de ser autoritário, recuou na aplicação da taxa. No muito socialista e democrático Portugal, ela avança. Não vale a pena fingirmo-nos surpreendidos
Um judeu, duas sinagogas. Dois judeus, três opiniões. Este dito tem alguma verdade também em Budapeste, mas numa coisa todos concordam – há bem pouco tempo, ninguém pensou que o anti-semitismo na Hungria fosse chegar a este ponto.
O que é este ponto? Aí já pode haver várias opiniões.
Tamás Vero, rabino da sinagoga da Rua Frankel Leó, em Buda, do “outro” lado do Danúbio, conta que, quando sai de casa com a mulher, já sabe que vai ouvir um pedido: que ponha um boné por cima da kippa, ou solidéu. Para que não seja óbvio que é judeu. Isto mesmo quando saem de carro. É este o ponto de que fala Vero.
Robert Frölich é o rabino da maior sinagoga da Europa, a grande sinagoga da Rua Dohany, que está no centro de qualquer roteiro turístico de Budapeste, e isso nota-se na sua postura – ele é maior, mais redondo, e mais grave. Nas ruas em volta do grande edifício há lojas com produtos kosher, restaurantes com especialidades judaicas, e ninguém diria que na Hungria um insulto comum é “porco judeu”. Mas é, e este é o ponto de que fala Frölich.
“Aqui estamos no centro do gueto, do bairro judaico. Aqui [o anti-semitismo] é muito menor do que no resto da cidade, ou do país”, diz o rabino. “Mas as pessoas com quem falo dizem-me que é incrivelmente alto: ouve-se nas ruas, nos mercados. Se alguém quer insultar outra pessoa diz ‘porco judeu’.”
Tamás Vero também diz que vive “numa bolha”: “Não consigo ver o que é a vida real: eu trabalho na sinagoga, a minha mulher com a comunidade judaica, as minhas filhas na escola judaica...” Mesmo assim, quando sai, se passa por três pessoas, já sabe que não vai demorar muito que uma o insulte e diga: “Vai para Israel, vai para a tua terra.”
Mas ambos concordam: desde que o partido Jobbik, de extrema-direita, elegeu deputados em 2010 ouvem-se tiradas anti-semitas no Parlamento. Por isso, “porque não na rua?”. Os judeus são um dos grupos para quem se atiram culpas – pela má situação económica, pela falta de emprego, etc. Outro são os ciganos.
A sinagoga do rabino Tamás Vero é muito diferente da de Frölich. Vero abre um portão para um pátio, a sinagoga está no meio do pátio com as varandas dos prédios à volta. Foi feita assim para cumprir uma muito antiga lei húngara: as sinagogas não podiam ser vistas da rua. Os problemas dos judeus na Hungria vêm de muito longe.
À frente do portão da sinagoga, todas as sextas-feiras à noite, vem um grupo de pessoas gritar. Não atacam, mas assustam. “O cantor é um homem mais velho e já deixou de vir à sexta-feira. Porque tem medo. Tem medo de que algo aconteça quando voltar para casa.”
Um dia, um vizinho chamou a atenção de Vero para uma suástica gravada no elevador do prédio ao lado. Desde então já aconteceu mais uma vez, e outra.
“Os judeus húngaros são malucos, como eu. Aceitam tudo”, diz Tamás Vero. “Se nos dissessem que a situação ia ficar assim há dez anos, eu diria que não, que não podia acontecer. Ou se acontecesse, que me ia embora. Mas ainda estou aqui.”
A linha vermelha
Para cada um há uma linha vermelha que ditaria a decisão radical de deixar o seu país. A sua mulher já a passou, e os sogros também: foram no ano passado para Israel. “Por ela, já estaria no avião.” Ele, não – ainda. A filha mais nova já está a estudar numa escola em que se fala inglês, caso seja preciso.
Nesta congregação muitas famílias foram para Israel, para a Alemanha, para a Áustria, diz Vero. “No último ano, foram mais do que cinco ou seis famílias, com filhos pequenos, que saíram. Porque a situação está cada vez menos democrática, a par do anti-semitismo.”
Robert Frölich é o rabino da maior sinagoga da Europa, a grande sinagoga da Rua Dohany
Protesto contra a construção de um monumento dedicado à II Guerra. O monumento é especialmente incómodo para a comunidade judaica por apresentar a Hungria como uma vítima inocente
“Tenho muitos amigos no Facebook”, diz Frölich, comentando com um ar divertido que esta é “a nova plataforma da comunidade”, e “muitos escrevem que querem ir embora – não por eles, mas pelos filhos”.
Katalin Pécsi, académica da Universidade Central de Budapeste dedicada a questões de judaísmo, que encontrámos depois de uma conferência no Instituto Alemão de Budapeste sobre a questão judaica, desvaloriza um perigo real, tangível. “A situação política é terrível, mas os judeus estão numa situação boa – que não é o caso dos ciganos, dos sem-abrigo ou dos homossexuais”, nota. Mas sublinha, como Vero, a falta de democracia: “O maior perigo para os judeus húngaros não é o anti-semitismo”, diz, “é não haver democracia.”
A Hungria “é formalmente uma democracia”, sentencia Frölich.
Objectos deixados por judeus junto ao local onde irá ser construído o monumento dedicado à II Guerra
“Quando começaram, esta era a República da Hungria”, diz o rabino, e está a falar do Governo do primeiro-ministro Viktor Orbán, no poder desde 2010. “Agora é Hungria”, nota, referindo-se às alterações constitucionais de 2012. Faz uma pequena pausa: “Vai ser república de novo.”
Mas perante o ambiente claramente mais desconfortável, muitos judeus têm-se reunido – na sinagoga, em centros judaicos. “A vida judaica está mais viva”, diz o rabino Vero.
Zsuzsa Fritz, directora do centro comunitário judaico Balint, nota também que “as pessoas têm aparecido mais porque têm necessidade de pertença”.
O desafio do centro que Fritz dirige é criar algo que falta aos judeus húngaros, diz: “Ser positivamente judeu.” A identidade dos judeus da Hungria está ainda muito marcada pelo Holocausto, em que morreram cerca de 600 mil judeus, a maioria em dois meses de 1944. Quando terminou a II Guerra, havia cem mil judeus em Budapeste, hoje, com mais de cem mil pessoas, a Hungria tem uma das maiores comunidades judaicas da Europa.
Esta tentativa do centro de redefinir o que é ser-se judeu nota-se em pormenores como as portas das casas de banho do centro: a das mulheres tem uma fotografia de Barbra Streisand, a dos homens a imagem de um jovem Woody Allen.
Fritz diz que o anti-semitismo está no ar, mas que a questão não são os judeus. “Actua sobre a auto-estima e a atmosfera da comunidade judaica”, sim. “Mas não é pessoalmente contra os judeus.” E ela não quer estar sempre a falar nisso. “Aumenta o nosso desafio de construir uma identidade positiva. Não ajuda estarmos sempre a focar-nos no anti-semitismo, eles a dizer ‘judeus’ e nós a dizer ‘anti-semitas’.”
Frölich diz que o primeiro-ministro, Viktor Orbán, não é racista nem anti-semita, “é político”. Tem de seguir os seus interesses como político, que neste momento é fazer gestos à extrema-direita. “O problema é que quando o génio está dentro da garrafa, tudo está bem. Se ele sai, já não se pode voltar a pôr. E está fora.”
"Vamos atirar os gays e os judeus ao Danúbio"
Para Frölich, uma das coisas mais perigosas é a “violência verbal e ideológica”. Ele dá um exemplo: “Na escola ensinam escritores nazis – o Governo incluiu nos programas. Sim, escritores nazis da II Guerra fazem parte da literatura húngara que as crianças têm de ler. Isto é violência ideológica, é mais perigoso.”
Katalin Pécsi conta que muitas famílias estão a mandar os seus filhos estudar em escolas judaicas por estas serem “um lugar seguro”, a salvo de intervenções ideológicas nos programas e de uma atmosfera nociva. “Ainda no outro dia no autocarro um jovem foi apanhado sem bilhete. Quando o revisor lhe pediu o dinheiro da multa, ele retorquiu: ‘Não pago nada aos judeus’”, diz, sacudindo os volumosos cabelos ruivos em desaprovação não muito séria. “Para ele, os judeus são quem está numa posição acima, representam o poder”, explica.
Pécsi fala ainda de um apoio frequente entre minorias, como, por exemplo, a participação dos judeus nas marchas de orgulho gay. Numa das últimas, houve um ataque contra a marcha. O slogan era: “Vamos atirar os gays ao Danúbio e os judeus a seguir.”
O que dá arrepios é que já foram atirados judeus a este Danúbio. Num dos mais comoventes memoriais a vítimas da Cruz de Ferro, o partido húngaro que defendia as mesmas ideias do Partido Nazi da Alemanha, há uma série de sapatos à beira do rio, um pouco à frente do Parlamento. Os sapatos, apesar dos modelos antiquados, parecem ter sido acabados de deixar ali, e não em 1944-45, quando os milicianos juntavam judeus e os punham ali em fila, obrigando-os a descalçarem-se antes de os atingirem a tiro e eles caírem ao Danúbio.
Segundo a Enciclopédia do Holocausto, entre Dezembro de 1944 e Janeiro de 1945, os partidários da Cruz de Ferro levaram cerca de 20 mil judeus do gueto de Budapeste para as margens do Danúbio, onde os mataram e atiraram os seus corpos ao rio.
O memorial do realizador Can Togay e do escultor Gyula Pauer foi erguido em 2005. Foi há menos de dez anos. Budapeste parece estar tão diferente agora.
“Não me atrevo a pensar no que vai acontecer”, diz Frölich. “Temos um exemplo e sabemos onde acabou. Agora, a única esperança é que o mundo de 2014 não é o mundo de 1944.”
Todos os anos chegam centenas ao acampamento militar de Verão em Mogyoród, na Hungria. São crianças e adolescentes, não têm mais de 15 anos. Uns vão atraídos pelos fascínio da vida militar, impregnados em espírito militarista omnipresente na sociedade, uma provável herança do passado imperial e das ocupações nazi e comunista.
Outros são levados pelos pais, grande parte nacionalistas, numa espécie de ritual de passagem para um mundo adulto onde não há emoções, só rectidão e disciplina. Durante uma semana obedecem a ordens gritadas, vivem em tendas, passam noites sem dormir, só de guarda. Aprendem a usar velhinhas AK-47 (com pólvora seca), simulam estar sob o ataque de gases lacrimogéneos, ensinam-lhes noções sobre a Ordem e a Pátria.
Neste projecto privado, são treinados por soldados experientes ainda no activo, num lugar onde "qualquer vulnerabilidade ou questionamento de ordens militares é pura e simplesmente ignorado, silenciado e internamente reprimido", refere o texto que acompanha este trabalho fotográfico do espanhol Oriol Segon Torra.
"Os jovens soldados que já previamente sentiram o chamamento da Pátria viverão as actividades da semana imbuídos de ares épicos. Por outro lado, os protagonistas cépticos, cada vez mais dessensibilizados, mais obedientes, mais dóceis, terão sido transformados em disciplinados jovens patriotas da grande Hungria, que um dia voltará a ser o que foi no passado." Num país onde a extrema-direita tem vindo a ganhar fôlego, Oriol mostra-nos os seus "Young Patriots", um projecto que venceu o Exposure Award 2014 da plataforma See Me.
Durante as próximas semanas o P3 apresenta alguns dos projectos que fazem parte da 24.ª edição dosEncontros da Imagem. O evento, este ano dedicado ao tema "Fé e Esperança", decorre de 18 de Setembro a 31 de Outubro, em Braga.
A penalização da mendicidade na Noruega é o derradeiro exemplo de uma tendência para aprovar leis, regulamentos ou medidas que dificultam a vida de quem dorme nas ruas da Europa. Ao mesmo tempo, há tentativas de integrar os sem-abrigo. Diversos países delinearam estratégias, como Portugal.
Com a crise a semear pobreza, há cada vez mais gente sem casa pela Europa. Alguns descobrem que as acções mais corriqueiras na rua podem resultar numa sanção penal. O último exemplo vem da Noruega. Este Verão os seus municípios voltam a poder banir a mendicidade.
A Federação Europeia de Organizações Nacionais Que Trabalham com Sem-abrigo (FEANTSA) tem manifestado "preocupação" pelo modo como, em diversos pontos da Europa, se tem optado por "medidas repressivas". Em 2012, aliou-se à Housing Rights Watch e à Fondation Abbé Pierre para produzir o primeiro relatório sobre "a criminalização dos sem-abrigo na Europa".
No Sul e no Norte, no Ocidente e no Oriente, regiões e municípios têm avançado com regulamentos e medidas que dificultam o dia-a-dia de quem sobrevive nas ruas, diz Freek Spinnewijn, director da FEANTSA, ao PÚBLICO. Proíbem actos como deitar-se, dormir, comer ou guardar pertences pessoais no espaço público, mendigar, distribuir comida ou recolher lixo dos contentores.
A tendência vem dos Estados Unidos, com tradição de "lei e ordem" baseada em políticas como a "tolerância zero". Antes os sem-abrigo não faziam parte da chamada "população perigosa". Esse lugar pertencia aos ciganos e, na Irlanda e no Reino Unido, aos travellers. Com o aumento de estrangeiros entre os sem-abrigo, alguns tornaram-se "vítimas" de leis e regulamentos que punem o suposto risco de crime.
A Freek Spinnewijn a Noruega parece um caso "interessante". Tem um Estado social forte e um conjunto de leis progressistas. Os noruegueses não serão tão afectados pela proibição de mendigar. A medida, anunciada com a promessa de mais apoio à reinserção de toxicodependentes e expansão da habitação social, recairá mais sobre os estrangeiros indocumentados, em particular sobre os de origem cigana saídos da Roménia, da Bulgária e da Hungria.
Escalada na Hungria
Nenhum lugar preocupa tanto Freek Spinnewijn como a Hungria. Desde meados dos anos 2000 que as autoridades locais criminalizam a chamada "mendicidade silenciosa". E já então era proibido mendigar na companhia de crianças ou de forma "agressiva". A partir de 2010, com a subida da extrema-direita ao poder, o país começou a escalada para a criminalização dos sem-abrigo.
Primeiro, o Parlamento húngaro aprovou a lei que permite atribuir funções específicas ao espaço público e proibir quaisquer outras. Depois, Budapeste interditou o uso do espaço público para morar. Volvidos uns meses, o Parlamento decidiu punir com 60 dias de prisão ou 530 euros de multa quem, durante seis meses, por duas vezes violasse qualquer proibição de dormir no espaço público. Mais um mês e estava a proibir dormir no espaço público em todo o país.
"A criminalização dos sem-abrigo pode ter o perigoso efeito secundário de forçar as pessoas a procurarem lugares mais escondidos, onde é mais difícil receber a ajuda — amiúde vital — de cidadãos preocupados ou o acompanhamento de técnicos que se deslocam ao terreno", sustentou Balint Misetics, professor no Colégio de Estudos Avançados em Teoria Social, no referido relatório.
"A Hungria choca mais porque não teve o cuidado de esconder o que está a fazer e fá-lo a um nível nacional", considera Freek Spinnewijn. "Noutros países europeus, isso tem estado a acontecer de uma forma mais subtil, por vezes quase invisível, e a um nível das regiões ou dos municípios."
Cory Potts, criminologista da FEANTSA, e Lucie Martin, socióloga da Diagénes, pegam no caso da Bélgica para mostrar como tudo pode começar com sanções administrativas e acabar em prisão. Veja-se o caso de Liège. De acordo com o regulamento aprovado em 2011, mendigar é permitido entre as 8h e as 17h de segunda a sexta e das 7h às 12h de domingo; não podem estar mais de quatro mendigos numa rua; não se pode mendigar em cruzamentos, nem em entradas de edifícios públicos, empresas, casas. Desde 2012, quem desrespeita as regras cai na alçada da polícia. Na primeira vez, um aviso; na segunda, uma intervenção do serviço social; na terceira, detenção.
Os sem-abrigo não desapareceram da cidade. Há zonas de tolerância. Cory Potts e Lucie Martin temem que essa tolerância esteja ameaçada. Proliferam os locais "semipúblicos", o que abre caminho a novas restrições. E a requalificação que se vai fazendo vai tornando os sítios mais "defensivos". Basta colocar barreiras nos bancos públicos para impedir as pessoas de se deitarem neles, por exemplo.
Punir comportamentos
Há exemplos anteriores à crise que começou nos EUA em 2008 e se estendeu à Europa. A Câmara de Barcelona é emblemática: em 2005, optou por punir comportamentos que considera anticívicos, como vomitar, urinar, defecar, cuspir, pintar graffiti, mendigar na rua, exercer a prostituição ou fazer venda ambulante, com multas que oscilam entre 120 e os três mil euros.
No ano passado, a Câmara de Madrid aprovou um modelo mais duro: punir com multa de 750 a três mil euros quem pedir esmola à porta de um centro comercial, acampe, faça malabarismos ou solicite serviços sexuais no espaço públicos, cuspa ou atire papéis para o chão, ofereça folhetos nos semáforos; perturbe os vizinhos, enquanto rega as plantas; alimente ou dê banho a cães na rua.
Em Itália, os exemplos multiplicam-se. Logo em 2008, a Câmara de Roma decidiu castigar com multas de 50 a 150 euros quem se pusesse a comer ou a beber, a cantar, a fazer barulho ou a dormir no centro histórico ou mesmo fora dele, se junto a monumentos. Também decretou que não se pode mendigar, nem vender flores ou outros pequenos objectos, a menos que se tenha licença.
Verona foi mais longe. A câmara resolveu passar multas de 25 a 500 euros a quem alimentar sem-abrigo. O presidente, Flavio Tosi, eleito pelo partido de extrema-direita anti-imigração Liga do Norte, diz que o objectivo é promover "a higiene" e "a imagem pública da cidade".
Tudo isto, na opinião de Freek Spinnewijn, reflecte ignorância e sensação de impotência. "Ser sem- abrigo não é uma escolha individual, é o resultado de uma série de desvantagens", sublinha. "Tornar a vida destas pessoas mais difícil não resolve o problema. As pessoas podem ficar menos visíveis, mas continuam lá."
Havia complacência, corrobora Sérgio Aires, presidente da Rede Europeia Anti-pobreza. Pensava-se os sem-abrigo como pessoas com problemas de saúde mental, dependência de bebidas alcoólicas ou drogas ilícitas. Essa ideia é mais redutora do que nunca. Muita gente tem perdido a casa com a crise.
Sérgio Aires lê nas leis, regulamentos e medidas que dificultam a vida dos sem-abrigo uma "intolerância para com os pobres" que lhe parece "estranha". As pessoas que estão a chegar às ruas são "mais parecidas com o cidadão comum". Muitas vezes tinham vidas integradas até perderem o emprego.
O fenómeno está na agenda europeia. Há meia dúzia de anos que a União instiga os Estados-membros a investirem na integração das pessoas sem-abrigo.
Diferentes países adoptaram estratégias para reduzir o número de pessoas a dormir nas ruas. Alguns optaram por abordagens mais baseadas na lógica "casa primeiro", como a Suécia, a Finlândia e a Dinamarca. Outros, apesar de considerarem isso importante, falam em aumentar a qualidade da rede de albergues e de serviços de apoio à habitação, como os Países Baixos, a França e Portugal.
Regras portuguesas
"Portugal não tem orçamento", comenta Freek Spinnewijn. Apesar disso, o país cabe no rol de exemplos positivos. "Tem uma estratégia nacional. Ainda está no papel, mas tê-la já é um princípio."
Segunda a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, aprovada em Portugal em 2009, ninguém deve permanecer na rua mais de 24 horas, a menos que seja essa a sua vontade. Existiriam centros de emergência — estruturas de resposta imediata, das quais se sairia, com um diagnóstico feito, para alojamento temporário ou permanente. Em lado algum foram criados.
A estratégia aponta para a organização local. Sempre que o número de sem-abrigo justifique, deve constituir-se um Núcleo de Planeamento, Intervenção a Sem-Abrigo e delinear-se um conjunto de respostas integradas. "Vai funcionando no Porto", afiança Sérgio Aires. Em Lisboa não tanto. Tenta-se agora reactivá-la. "Há muita coisa a acontecer e essa não é uma das prioridades." Congratula-se por não haver em Portugal a intolerância de outros países. Nem um clima rigoroso.
No ano passado, pelo menos 4420 pessoas viviam em jardins, estações de metro ou camionagem, paragens de autocarro, estacionamentos, passeios, viadutos, pontes e abrigos de emergência de Portugal. O número peca por defeito. Corresponde às pessoas acompanhadas no âmbito da Estratégia.
Os técnicos encontram resistência entre alguns sem-abrigo. Os albergues não permitem animais. Nem deixam entrar quem emite sinais de estar de consciência alterada. Têm rigorosos horários de entrada e saída. As pessoas têm de sair e de voltar cedo. São forçadas a passar o dia na rua. E, na maior parte das vezes, não têm privacidade no albergue. Mesmo assim os que existem não chegam para as encomendas. A Segurança Social recorre então a pensões, amiúde, de baixíssima qualidade.
"Aquelas pessoas querem viver numa casa, como as outras, mas precisam de algum apoio para isso", diz Freek Spinnewijn. Alargar o mercado social de arrendamento parece-lhe a melhor hipótese. "Em muitos países, o Estado e a Igreja e outras organizações têm inúmeras casas vazias."
Há uns meses, o diário britânico The Guardian fez as contas: na Europa existem umas 11 milhões de casas vazias e uns 4,1 milhões de sem-abrigo. Em Portugal a desproporção também é grande 4420 sem-abrigo e, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 735 mil casas vazias.
O exemplo de Portugal pode ajudar a perceber o quão inalcançável pode ser uma casa. O preço das rendas permanece alto para quem recebe 179 euros de rendimento social de inserção ou 235 euros de pensão social, como já explicou ao PÚBLICO Henrique Pinto, director da Cais.
Sérgio Aires também faz a defesa das bolsas de habitação. Não a construção de bairros, modelo que criou não lugares por toda a Europa, mas a recuperação de casas situadas em ruas comuns, "com dignidade, a custos controlados". Na certeza de que tal não será solução para todos.
A 9 de julho, o partido radical nacionalista húngaro Jobbik perdeu o seu apelo perante o tribunal Europeu dos Direitos do Homem de Estrasburgo.
O partido contestava a dissolução da Guarda Húngara, uma organização paramilitar constituída por sua iniciativa, decidida em 2009 pelas autoridades húngaras, escreve oNépszava. O TEDH considerou que essa proibição não constituía uma violação do direito de reunião e de associação.
Fundada em 2007 pelo Jobbik, e contando com vários milhares de membros, a Guarda Húngara era sobretudo acusada de atiçar a tensão entre húngaros e ciganos e de recrutar jovens magiares aproveitando a crise económica e a alta taxa de desemprego. A milícia continua, no entanto, a funcionar enquanto associação cultural.
Outrora criativa e florescente, a cena cultural húngara é hoje regida pelos valores nacionais defendidos pelo Governo. O grito de alarme de uma jornalista húngara que emigrou para a Alemanha.
Quem troca de país muda de alma, diz-se na Hungria. Ora, ao longo dos dois últimos anos e meio, meio milhão de húngaros expatriou-se para todo o mundo, duas vezes mais do que durante a repressão que se seguiu à revolta de 1956. É demasiado, para um país de apenas dez milhões de habitantes.
Decidi, também eu, não continuar a tolerar a situação. Não faltam razões para isso: o dinheiro, as perspetivas de futuro e, sobretudo, a sensação de asfixia na Hungria de hoje.
Faço parte de uma geração que era suficientemente jovem após 1990 para sentir que a atmosfera dos anos da infância e da escola tinham mudado. Quando se teve uma vez na vida oportunidade para expressar livremente a opinião, não se quer abdicar dela, mesmo que viver nunca mais tenha sido fácil na Hungria.
Na década de 2000, a cena alternativa húngara passou por um período efervescente. Em Budapeste, havia um cinema de autor a cada esquina, estreava um novo filme húngaro todos os meses, uma nova vaga de jovens cineastas não tinha mãos a medir. Os amigos reuniam-se à noite na praça Liszt-Ferenc, perto da rua Andrassy, nos cafés da Nagymező (a “Broadway” de Budapeste, onde se concentra a maioria dos teatros da cidade), ou nos “romkocsma” [literalmente “bares nas ruínas”, estabelecimentos de venda de bebidas instalados em prédios devolutos, como os utilizados pelos “ocupas”] e conversava-se do que se tinha visto ou lido. A televisão transmitia programas culturais e todos os campos políticos estavam representados nos debates.
Esperança e ilusão desapareceram
Defendiam-se causas e acreditava-se em si mesmo e no futuro. Viena e Berlim talvez fossem mais sofisticadas, mais ricas, mas Budapeste iria sê-lo um dia. Tudo avançava devagar, os programas de urbanização, a modernização das infraestruturas, tudo estava atrasado. Isso tinha um certo encanto, na época; seguia-se na direção certa, Budapeste ia tornar-se uma metrópole multicolorida, vibrante, próspera, tolerante, em suma, uma grande cidade como as outras.
Dois ou três anos depois, tudo isso desapareceu: a esperança, o encanto, a ilusão. A política do Fidesz tornou-se omnipresente na vida da população. Uma política que entravou tudo o que era inovador, livre, inconformista e crítico. Fez morrer o teatro alternativo, cortando os subsídios há três anos. Pelo terceiro ano consecutivo, nenhum filme foi produzido na Hungria e, pela primeira vez, não se realizou a Semana do Cinema Húngaro – quem acreditaria nisso?
À frente do teatro público, estão lacaios de Viktor Orbán. São os únicos que tomam decisões, que definem o que se entende por “cultura”. Amadores extremistas, assumiram o controlo.
A cultura será apenas uma causa entre outras, mas sou jornalista cultural e a situação afeta-me profundamente. O meu trabalho tornou-se impossível. Deixou de haver secção cultural nas estações do serviço público de televisão. Milhares de jornalistas da televisão foram postos na rua, devido à desativação dos programas culturais. Apenas os fiéis do partido podem moderar os programas políticos. Quanto aos noticiários, são mera propaganda: só há uma verdade.
Tudo deve ser pautado pelo nacionalismo
Na Hungria, tudo deve ser pautado pelo nacionalismo: pensamento, teatro, arte, e até mesmo o ar que respiramos, se possível. Em nome da nova ordem, desintegra-se a escola e a universidade. Passando por cima de uma promessa de campanha, o Fidesz quer introduzir propinas – quem for isento é obrigado a assinar um contrato em que se compromete a não sair do país nos três a seis anos após a formatura. Quando um estudante protesta, a polícia invade-lhe a casa.
Percorro a imprensa uma vez por semana. Revelam-se as coisas mais incríveis, como o projeto da “Margem romana”, a única secção do Danúbio que permanecia intocada em Budapeste, com as margens orladas de choupos. Querem agora construir aí uma barragem, para proteger as casas de fim de semana – ilegais – dos novos-ricos, mas não se protegem os blocos de apartamentos que todos os anos sofrem inundações. O presidente da Câmara apoia o projeto. Outros autarcas viabilizam iniciativas semelhantes noutros lugares. Nas cidades pequenas e no campo, o dinheiro público é usado para alcatroar os caminhos até à porta das suas garagens.
Aprovada na semana passada no parlamento, a mais recente revisão constitucional mostra para que lado sopra o vento. Muitos artigos que haviam sido retirados por serem inconstitucionais reaparecem agora na Constituição. Entre eles, a criminalização dos sem-abrigo ou a regulamentação das críticas a figuras públicas. Além disso, o Tribunal Constitucional deixa de poder controlar a Constituição – ou é-lhe permitido fazê-lo apenas parcialmente.
Lei do silêncio protege o poder
A lei do silêncio nunca protege senão o poder, os opressores e nunca os oprimidos. Isso sente-se na Hungria, a cada esquina. Caras deprimidas nos transportes públicos, lojas e restaurantes desertos. Tudo é punido ou"" penalizado, a ordem deve prevalecer, e os cofres do Estado enchem-se à conta disso; hoje, existem mais controladores de trânsito do que carros nas ruas. Temos o direito de chamar publicamente “animais” aos ciganos e osjornalistas que utilizem esse tipo de palavreado não têm de pedir desculpa, porque muitos húngaros supostamente esclarecidos gostam de o ouvir.
Antes de decidir vir-me embora, sentia que o país andava à deriva e ninguém mexia um dedo para parar este processo. Como revelam sondagens recentes, este declínio vai prosseguir. Quarenta por cento dos húngaros voltariam a votar no egocêntrico Orbán e no seu partido, mesmo sabendo que o rei vai nu.
Mas num país onde tanta gente anda nua, ninguém pode acusar o ministro presidente – especialmente quando se tiram benefícios pessoais da situação. Ou quando se está cilindrado, com medo de perder o lugar e os meios de sobrevivência, se se disser o que se pensa.
Quem troca de país muda de alma, diz o provérbio. Mas eu sou húngara, e nunca vou deixar de o ser.
Em 2014, os estrangeiros poderão comprar terras agrícolas, por enquanto reservadas apenas aos húngaros. Enquanto não chega esse fim de prazo fixado pela UE, que o Governo de Viktor Orbán tenta adiar, camponeses e personalidades ricas, frequentemente próximas do poder, disputam as parcelas mais interessantes.
No campo, algures na Hungria. Let the world change you... and you can change the world / Flickr Joëlle Stolz
Um alto portão branco, com grades novas: faz lembrar a entrada na mítica propriedade do clã Ewing, no Texas. Só a campainha, fabricada em Florença, revela que o antigo couto de caça dos condes de Széchenyi, no sudoeste da Hungria, pertence a Carlo Benetton, da dinastia italiana do têxtil. Proprietário de grandes extensões de terra na Argentina, explora aqui sete mil hectares, plantados de milho, trigo e álamos. “As pessoas chamam ‘Dallas’ ao castelo”, sorri Harri Fitos, secretário municipal de Görgeteg, a sul do lago Balaton. Quanto à aldeia de 1200 habitantes, rodeada de cercas que protegem os campos dos animais, há quem lhe chame “Alcatraz”, como a antiga prisão de alta segurança norte-americana: a taxa de desemprego aqui é de 50% e a esperança de encontrar um emprego é muito pouca, salvo na segurança das grandes propriedades. A Hungria não tem petróleo. Mas tem terras aráveis – mais de cinco milhões de hectares – que aguçam os apetites. Porque a proibição de compra imposta na Hungria a todos os estrangeiros, desde 1994, prolongada aquando da adesão à União Europeia, em 2004, deverá chegar ao fim em maio de 2014. Pelo menos, segundo as previsões de Bruxelas.
Hectares que valem ouro
Mas está em curso uma corrida para que esta fonte de riqueza continue, na sua maior parte, em mãos húngaras. A nova lei agrária, adotada em julho por iniciativa do Governo conservador de Viktor Orbán, impede os estrangeiros de adquirirem, no futuro, terrenos agrícolas e torna nulos os contratos-promessa, celebrados perante a perspetiva de abertura do mercado. “Todos os especialistas dizem que a Hungria tem um grande potencial”, lembra Peter Roszik, presidente da associação de agricultores de Györ-Moson-Sopron, na raia da fronteira com a Áustria. “Toda a gente quer terras e há seis ou sete vezes mais candidatos à compra do que lotes disponíveis.” E não há grande coisa para distribuir, exceto o meio milhão de hectares cultiváveis do setor público, que o Fidesz, o partido no poder, prometeu, durante a campanha das legislativas de 2010, reservar prioritariamente para explorações familiares. Atualmente, cresce a tensão entre os pequenos agricultores húngaros, sobrecarregados de dívidas, e os “oligarcas”, quase sempre próximos de Viktor Orbán, que recentemente beneficiaram das atribuições de terras (cerca de 100 mil hectares) que o Estado lhes aluga a preços baixíssimos, por um prazo de 20 anos. Ora, essas terras valem, literalmente, ouro: “Nos atos notariais, na Hungria, o valor da terra é sempre expresso em coroas de ouro da imperatriz Maria-Teresa”.
Uma república das bananas? O secretário de Estado da agricultura, Jozsef Angyan, paladino dos pequenos agricultores, demitiu-se em finais de janeiro, no meio de grande polémica, protestando contra o favoritismo. Desde então, Jozsef Angyan, que continua a ser deputados pelos conservadores, não para de publicar os números que demonstram que “barões verdes” ou “laranja” – a cor do Fidesz -, dividem entre si a parte de leão. A agricultura é um excelente negócio, graças aos subsídios europeus de cerca de 200 euros por hectare, e à isenção, no mínimo durante cinco anos, de imposto sobre os rendimentos de exploração. Os espertos conseguem embolsar somas que atingem os 75 milhões de florins [cerca de €264 mil] por ano, por cada mil hectares. Se os estrangeiros puderem investir como entenderem, os preços das terras vão subir, mas o seu rendimento será menor: esta é “a prosaica verdade que se esconde atrás do zelo nacionalista”, afirma o jurista austríaco Peter Hilpold, no diário Die Presse. A comunicação social húngara sublinha que 58% dos deputados com assento no parlamento de Budapeste são donos de terras, na maior parte das vezes arrendadas a terceiros. Na Hungria, a tentação de especulação fundiária é tal que, adverte Jozsef Angyan, o país corre o risco de, muito rapidamente, se tornar numa “república das bananas”, com arame farpado e guardas armados para impedirem a criminalidade galopante. Sinal da degradação do clima, começa a haver ocupação pontual de terras.
Jogaram a carta xenófoba “Por aqui, somos uma espécie de América Latina”, acrescenta, em Görgeteg, Ander Balazs, representante regional do partido de extrema-direita Jobbik, a terceira força parlamentar. Ander Balazs juntou-se a um grupo de ativistas musculados para destruírem o portão de uma das propriedades de Carlo Benetton. Mas, por que fazem de Benetton um alvo, quando ele comprou terras dentro da legalidade, no início dos anos de 1990, antes de alugar as de uma antiga cooperativa comunista? “Porque ele é italiano, não é húngaro”, responde Enikö Hegedüs, deputado todo-o-terreno do Jobbik, que nesse dia vinha servir de reforço em Görgeteg. As próprias autoridades de Budapeste jogaram a carta xenófoba ao anunciarem a anulação de contratos duvidosos. “Alguns desses contratos”, explica ao jornal Le Monde o atual secretário de Estado da Agricultura, Gyula Budai, “estavam registados junto de um notário ou de um advogado. Mas não tinham data, por estarem à espera do fim da moratória”. Nessa altura, bastava completá-los e inscrever o nome do novo proprietário no cadastro. Os visados são italianos, belgas, alemães, eslovacos e, sobretudo, austríacos: só eles, a acreditar nas autoridades, controlam dois milhões de hectares de terra dos seus vizinhos húngaros. Na verdade, dez vezes menos, protesta o adido agrícola austríaco em Budapeste, Ernst Zimmerl. Ao longo dos caminhos de Görgeteg, Harri Fitos revela os discretos negócios de que estão a ser alvo os campos húngaros: aqui, 50 hectares da sociedade florestal do Estado, postos gratuitamente à disposição de um “oligarca” com bons contactos; ali, um terreno reservado, em princípio, à caça, onde semearam milho. “Nada disto figura em cadastro algum nem em nenhum produto interno bruto”, sublinha. “Bem vistas as coisas, os Benetton fazem tudo dentro da absoluta legalidade.”
Ostracizado na Europa pelos abusos de autoridade, o Governo húngaro está empenhado numa política “de abertura a Leste”. Em busca de novos aliados no Oriente, invoca presentemente a suposta descendência das tribos da Ásia Central dos húngaros, um outro mito alimentado pela extrema direita magiar.
Mas eis que bem no meio do verão, com as bolsas aparentemente de férias, o partido húngaro no poder decidiu fazer uma surpresa e apoiar um obscuro festival que favorece os laços entre a nação húngara e as tribos da Ásia Central no quadro do turanismo [corrente ideológica que pugna pela união dos descendentes das tribos turcófilas da Ásia Central]. Por sua vez, este movimento está ligado à atual e à antiga extrema direita húngara. É, seguramente, mais um assunto explosivo entre Budapeste e o resto da Europa.
Nos passados dias 10, 11 e 12 de agosto, cerca de 250 mil pessoas participaram na puszta [tipo de estepe húngara], perto da pequena localidade de Bugac, no centro do país, no quarto festival Kurultaj, um encontro entre as tribos e os povos que reivindicam a tradição do turanismo.
Considera-se desde logo que os turanistas são oriundos do Irão e da Turquia, antes de alguns povos da Ásia Central reclamarem, mais tarde, a descendência dos turanistas. Mas hoje em dia a maior parte dos especialistas são unânimes em afirmar que esta última teoria não passa de uma lenda moderna.
Um elemento da ideologia fascista
Na Hungria, o turanismo – a ideia de que os húngaros são descendentes dos turanistas – ganhou popularidade entre as fações de direita, em particular durante o período entre guerras. Uma parte da elite húngara pretendia assim ultrapassar o complexo Tratado de Trianon, segundo o qual a Hungria perdia dois terços do território e um terço da população.
Mais perigoso do que o Turan I – o único tanque húngaro da II Guerra Mundial, construído pela Škoda –, o turanismo constitui um elemento da ideologia fascista húngara liderada por Ferenc Szálasi. Os atuais membros e correligionários do partido de extrema direita – Jobbik –, que se distingue, nomeadamente, pelo grau de abertura às teses antissemitas, fazem referência direta à herança de Ferenc Szálasi.
Com um toque de cinismo e de ironia, poderíamos avançar com a ideia de que não é apenas com a ideologia que o Jobbik apoia publicamente as declarações antissemitas dos dirigentes iranianos, mas também por estar convencido de que os húngaros e os iranianos têm os mesmos antepassados.
“Recuperar as raízes da nação húngara”
Este ano, o festival de Kurultaj de Bugac que, até agora, esteve sempre associado ao Jobbik, foi pela primeira vez um evento semioficial. Segundo a agência de notícias MTI, Márton Gyöngyösi, o vice-presidente do Jobbik (e também atual vice-presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento), por ocasião de uma conferência de imprensa organizada no passado fim de semana, insistiu na necessidade de se recuperar as raízes da nação húngara a Leste e a mentira da teoria fino-húngara que “os inimigos dos húngaros tentaram instilar neles”.
Gyöngyösi saudou a política oficial “de abertura a Leste” do Governo. Mas, para Budapeste, esta procura de aliados na Ásia não passa de uma tentativa de compensar o seu atual isolamento diplomático na Europa. Neste sentido, um turanismo renovado seria o ideal.
Sándor Leszák, vice-presidente do Fidesz [partido do Governo de Viktor Orbán], recebeu os chefes tribais no parlamento e o Governo contribuiu com 70 milhões de forintes [cerca de 251 mil euros] para a organização do evento. No passado fim de semana, foi possível ver velhos em trajes folclóricos sentados nas poltronas parlamentares arte-nova e assistir a diversas cenas de combate e demonstrações de caça ao falcão.
Cada vez mais perto da extrema direita
Mas este evento talvez não seja tão estranho como isso. O diário pró governamental Magyar Nemzet entrevistou, por exemplo, um uigur emigrado na Alemanha, para quem a evocação (mítica) das raízes está intimamente ligada à luta contra a opressão na região autónoma uigur, na China. Agradeceu aos “irmãos húngaros” o facto de poder relembrar a cultura e os costumes do seu povo.
Depois da recente “reabilitação” de Miklós Horty, o ditador do período entre guerras, cujo nome figura novamente em algumas ruas, e das críticas internacionais de que a Hungria foi alvo por causa do antissemitismo crescente que reina no país, a exploração conjunta pelo Governo e pelos fascistas da mitologia do turanismo pode levar a que se pense que Viktor Orbán e o seu partido estão mais próximos do Jobbik do que os europeus possam imaginar.
Csanad Szegedi, 29 anos, era uma estrela no partido de extrema-direita Jobbik, na Hungria. Crítico de ciganos e de judeus, Szegedi é, afinal, ele próprio judeu e descobriu-o há dois anos. O partido não via nisso um problema, mas forçou-o a demitir-se porque tentou escondê-lo durante meses, até com tentativas de suborno.
Szegedi classificava os judeus como ameaça aos símbolos da Hungria, acusando-os também de terem "açambarcado o país". Porém, em 2010, soube que era descendente de judeus.
A verdade sobre os avós maternos – uma sobrevivente de Auschwitz e um sobrevivente de campos de trabalho forçado geridos pelos nazis de Adolf Hitler – foi-lhe revelada por um homem, Zoltan Ambrus, que cumpria pena de prisão devido a um caso que envolvia posse de armas e explosivos.
Ambrus sustentou, num encontro entre os dois, que tinha documentos que provavam as raízes judaicas de Szegedi – que fará 30 anos em Setembro e que saltou para a ribalta em 2007, quando fundou a Guarda Húngara, uma organização nacionalista, proibida dois anos mais tarde.
De acordo com a agência de notícias Associated Press, a conversa entre os dois foi gravada e o registo áudio mostra que Szegedi ficou surpreendido com a revelação. Tentou depois comprar o silêncio de Ambrus oferecendo-lhe dinheiro e um cargo no Parlamento Europeu, para o qual tinha sido eleito deputado.
A gravação foi parar à Internet e alimentou especulações. Até que, no passado mês de Junho, Szegedi veio a público, sob pressão, confirmar que tinha sangue judeu, embora sublinhasse que não professava o judaísmo.
Tentou também negar que fosse anti-semita, mas diferentes registos de intervenções públicas no passado demonstravam que ele não se coibia de atacar os judeus.
O líder do Jobbik, Gábor Vona, garante que o partido não investiga o passado familiar dos seus membros, e que apenas está a exigir o afastamento de Szegedi por causa da tentativa de suborno em que foi apanhado.
Depois de admitir em público a verdade sobre a família, Szegedi encontrou-se com um rabi, Slomo Koves, perante o qual se desculpou por qualquer comentário ofensivo para os judeus que possa ter feito, prometendo igualmente visitar Auschwitz para prestar homenagem à memória dos judeus mortos naquele campo alemão de extermínio. Jobbik demitiu-se também dos cargos partidários e está a ser pressionado para deixar o lugar de eurodeputado em Estrasburgo.
Em Abril, o Jobbik tornou-se a terceira força política na Hungria, e entrou pela primeira vez no parlamento húngaro, elegendo 47 deputados com 16,67% dos votos. As eleições legislativas foram ganhas pelo partido de centro-direita Fidesz. A ascensão da extrema-direita marca, aliás, o contexto político actual da Hungria.
O próprio partido do Governo é conotado com posições mais extremistas, sendo-lhe frequentemente atribuído o pecado de não se distanciar suficientemente, em algumas matérias, das opiniões do Jobbik. De resto, tem ajudado mesmo a reabilitar figuras históricas do país ligadas ao nazismo, como o escritor József Nyírö, um fascista incluído no novo currículo escolar, de leitura obrigatória.
Por mão do Jobbik, outra figura tem sido proclamada aos quatro ventos, a do almirante Miklós Horthy, que governou os húngaros entre as duas guerras mundiais do século XX, se aliou a Hitler e praticou leis antisemitas).
Laszlo Csatary, o criminoso de guerra nazi mais procurado vive tranquilamente em Budapeste há 17 anos, sob a sua verdadeira identidade, apesar de o Centro Simon-Wiesenthal ter informado a justiça húngara sobre o seu passado já há dez meses, denunciou esta organização.
Num prédio do XII bairro da capital húngara há uma caixa de correio com dois nomes: “Csatary/Smith”. Mas correspondem na verdade à mesma pessoa, diz a AFP: um homem de 97 anos, que foi chefe da polícia do “ghetto” da cidade de Kosice, que hoje fica na Eslováquia mas, na altura da II Guerra, era território húngaro e designava-se Kassa. Csatary era conhecido pelo sadismo. Usava um chicote à cintura e, segundo a AFP, que cita documentos descobertos pelo Centro Wiesenthal, gostava de o usar nas mulheres do “ghetto” de Kassa, chicoteando-as até fazer sangue, e obrigava-as a cavar trincheiras só com as mãos. Foram assassinados 15.700 judeus de Kassa. A grande maioria foi deportada para o campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia, durante a ocupação pela Alemanha nazi do que viria a ser o território da Checoslováquia. Em 1948, embora estivesse em fuga, Csatary foi condenado à morte na Checoslaváquia. Segundo o Centro Wiesenthal, refugiou-se no Canadá, em Montréal e Toronto, sob uma falsa identidade, onde se tornou negociante de arte. Mas em 1995, as autoridades canadianas descobriram a sua identidade – foi nessa altura que fugiu para a Hungria. Quem descobriu o paradeiro de Csatary na Hungria foram jornalistas do tablóide britânico “The Sun”, usando informações do Centro Simon Wiesenthal. Tocaram-lhe à campainha e ele veio à porta: “Não fiz nada, vão-se embora”, disse-lhes, antes de lhes bater com a porta na cara. O procurador adjunto de Budapeste, Jenö Varga, prestou declarações lacónicas à AFP: “Estamos a estudar as informações que nos foram transmitidas, nomeadamente pela imprensa.” Mas Serge Klarsfeld, presidente da Associação de Filhos e Filhas de Deportados Judeus de França, minimiza o papel desempenhado por Csatary no Holocausto. “Hoje pode encabeçar a lista dos mais procuradso, porque os que restam têm entre 90 e 100 anos. Mas há 30 anos, havia 35 mil pessoas na lista”, disse na rádio Europe 1. “Restam muito poucos criminosos nazis em fuga. E os que sobram eram jovens na altura, portanto tinham poucas responsabilidades”, sublinha o francês. “É bom que nos empenhemos em perseguir os criminosos até ao seu último fôlego mas, por outro lado, estes não são mais do que comparsas ou figuras subalternas.”