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A-24

O Fascismo e a Memória Curta da Esquerda

por A-24, em 07.12.14
Via História Maximus

"O Comunismo distingue-se fundamentalmente do Fascismo porque foi o primeiro." - Virgílio Ferreira (1916 - 1996) in "Pensar", Bertrand Editora, 1992.

A esquerda usa e abusa da palavra "Fascismo". Desde há décadas, quando se trata de atacar qualquer inimigo, a esquerda não hesita em rapidamente o apelidar de "fascista" e a propaganda marxista tem-se laboriosamente encarregue desde a Segunda Guerra Mundial de erguer um "muro de betão" que tenta a todo o custo esconder a velha amizade e camaradagem que em tempos a esquerda partilhou com o "papão" fascista. A esquerda padece e sempre padeceu de memória curta e infelizmente são poucos os que tanto dentro, como fora do campo político da esquerda contradizem esta tendência. Deixo aqui um breve contributo que espero que possa auxiliar alguns "camaradas" a combater a gravíssima amnésia de que padecem há demasiado tempo.

Aquando da fundação dos Fasci italiani di combattimento em 1919, uma parte significativa dos seus membros e teóricos políticos eram, à semelhança do próprio Mussolini, ex-marxistas e/ou ex-membros de organizações da esquerda radical e revolucionária. Já em 1917 e no papel de líder dos Fasci d'Azione Rivoluzionaria, Benito Mussolini apoiou abertamente a Revolução Bolchevique, tendo-se mais tarde desiludido em relação à mesma por esta não ser na sua visão suficientemente radical, vejam bem! Sendo também um admirador de Lenine, Mussolini ficou igualmente desiludido com este por considerar que o mesmo estava a ficar demasiado parecido com o Czar Nicolau II.[1]

Desde a sua génese e até tomar o poder, o Fascismo foi em muitos aspectos ainda mais de esquerda do que a própria esquerda. O apelo à acção popular revolucionária, a estrutura para-militar, a retórica anti-capitalista e anti-burguesa, o anti-clericalismo, o ódio às elites e às monarquias, todos os elementos da esquerda mais radical e violenta estavam presentes no Fascismo. Talvez a única coisa que o Fascismo partilhava com a direita fosse o fervor nacionalista, de resto nada mais o distinguia da esquerda. 
No campo social, o Manifesto Fascista (Il manifesto dei fasci italiani di combattimento) publicado em 1919 por Alceste De Ambris e o futurista Filippo Tommaso Marinetti[2] propunha avanços radicais para a época como o sufrágio universal para homens e mulheres, a criação de uma jornada de trabalho de oito horas para todos os trabalhadores, um salário mínimo, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas, a redução da idade da reforma dos 65 para os 55 anos, um forte imposto progressivo sobre todo o capital, a confiscação de toda a propriedade pertencente a instituições religiosas e a revisão de todos os contratos militares, podendo o governo confiscar até 85% dos seus lucros.

Em 1924, a Itália já sob a liderança do Duce Mussolini, tornou-se o primeiro País da Europa Ocidental a reconhecer a União Soviética.[3] Se dúvidas houvesse sobre a latente irmandade entre marxistas e fascistas, estas dissiparam-se todas aqui. A este reconhecimento diplomático por parte da Itália Fascista, seguiram-se toda uma série de relações amistosas com os soviéticos que iam desde o campo económico ao campo cultural.
Na sua essência, o objectivo final tanto do Fascismo como do Marxismo era o esmagamento revolucionário da velha ordem social conservadora e burguesa e a sua substituição por uma nova ordem social baseada no culto da força, da vitalidade e da ordem em prol dos trabalhadores. A única diferença de relevo era que enquanto o Fascismo advogava o Nacionalismo, já o Marxismo seguia a linha do Internacionalismo, mas na praxis ambas as ideologias partilham muito mais semelhanças do que diferenças.
Em Portugal, o professor Salazar tornou-se um grande admirador de Mussolini e do Fascismo Italiano e chegou a ter na sua secretária uma fotografia de Mussolini autografada pelo próprio. No entanto, o modelo político seguido por Salazar, apesar de partilhar algumas semelhanças com o Fascismo Italiano, não foi na realidade um verdadeiro Fascismo devido à sua profunda interligação com a Igreja Católica que no fundo foi o que impediu que o regime caísse nos excessos de violência que caracterizaram outros regimes fascistas. Se quiserem, podem utilizar o termo "Fascismo Clerical" para caracterizar o regime de Salazar, mas mesmo assim ficam muito aquém de uma definição completa e que verdadeiramente faça justiça àquilo que realmente foi o Salazarismo.


António de Oliveira Salazar com a fotografia autografada de Mussolini sobre a sua secretária.

O ódio de Mussolini ao Liberalismo económico fica patente no facto de em 1935 já estar nacionalizada ou sob forte controle estatal cerca de 75% de toda a indústria italiana. O Duce sempre teve um "grande interesse pela URSS, talvez mais genuíno que o que sentia pela Alemanha nacional-socialista. Mussolini manteve boas relações diplomáticas com a URSS - na noite que precedeu o ataque alemão à URSS, houve grande jantar-festa na embaixada soviética em Roma, com a presença dos mais altos hierarcas do regime, pelo que as más línguas sugerem que Hitler não informou Mussolini do iminente ataque à Rússia de Estaline com medo que os amigos fascistas italianos informassem o Kremlin - e ao longo dos dois anos que se seguiram Mussolini defendeu sempre a ideia de uma paz separada entre o Eixo e a URSS. O anti-fascismo foi, pois, uma estória do pós-guerra !"
Curiosamente, foi nos anos finais da sua vida que Mussolini adoptou as políticas mais esquerdistas. Em 1943 e já como líder da então designada República Social Italiana, Mussolini insistiu que ao contrário do que muitos pensavam, ele nunca abandonou as políticas de esquerda e quis até nacionalizar a propriedade privada em 1939-1940, mas não o fez por razões tácticas que tinham a ver com a economia de guerra e a necessidade de não perturbar o sistema económico antes de vencer a guerra então em curso.[4]   
Com a guerra a correr mal para as forças do eixo, Mussolini começa cada vez mais a radicalizar as suas políticas económicas. Ordena a nacionalização de todas as empresas com mais de 100 trabalhadores e pede auxílio ao ex-comunista e antigo estudante de Lenine, Nicola Bombacci, para que o ajude a recuperar a imagem do Fascismo, conferindo-lhe uma imagem de movimento progressista e amigo dos trabalhadores. Oficialmente, a política económica da República Social Italiana foi designada de "Socialização" e foi o próprio Nicola Bombacci que teorizou a política económica. Ironicamente, mais tarde Mussolini acabaria por ser fuzilado com Bombacci e os seus corpos expostos lado a lado na Piazzale Loreto.


Da esquerda para a direita: os corpos de Nicola Bombacci, Benito Mussolini, Clara Petacci, Alessandro Pavolini e Achille Starace.

A rivalidade histórica e o ódio existente entre marxistas e fascistas é muito menos um conflito entre a esquerda e a direita e mais um conflito entre irmãos de esquerda que salvo algumas excepções, nunca se entenderam entre si, nem se vão entender. O corpus ideológico do Fascismo é hoje totalmente independente da esquerda marxista e este adquiriu uma identidade própria como ideologia política. Apesar de enfraquecido, está longe da derrota e a actual crise do modelo económico-financeiro em prática no Ocidente está a criar uma "oportunidade de ouro" para que movimentos, grupos e partidos de inspiração fascista possam ressurgir em força e com a imagem restaurada.

Claro que nada do que acima se escreveu irá alguma vez ser publicado no jornal Avante! ou ser reconhecido pelas lideranças dos partidos de esquerda, sob pena destas contradizerem mais de 70 anos de mentiras produzidas pela sua própria propaganda. No fundo, a "gloriosa luta" anti-fascista não passa de uma meia-verdade, sim, é verdade que os movimentos de esquerda combateram o Fascismo, mas apenas após o ataque Nacional-Socialista contra a União Soviética é que o fizeram com seriedade, pois até lá ambas as ideologias colaboraram extensivamente e partilharam entre si um compadrio muitíssimo comprometedor.

Resta dizer que no campo do sucesso político, o Fascismo sempre bateu e vai continuar a bater a esquerda marxista em toda a linha, pelo simples motivo de que este alia dois dos mais poderosos elementos que sempre motivaram o ser humano: a luta pela Nação ou tribo se assim lhe quiserem chamar e a luta por uma utopia social que acabe com a exploração do mais fraco pelo mais forte, ou a "exploração do homem pelo homem" se desejarem utilizar um termo genuinamente marxista. Estes dois elementos explosivos são o núcleo do Fascismo como ideologia e são o que lhe conferiram a força imbatível que teve nas décadas de 1930-1940 e que provavelmente voltará a ter futuramente numa forma metamorfoseada se a actual crise do modelo económico-financeiro na Europa não se resolver a breve trecho.

[1] NEVILLE, Peter - Mussolini. Oxon, England, UK; New York, New York, USA, Routledge, 2004, p. 36.
[2] ELAZAR, Dahlia S. - The making of fascism: class, state, and counter-revolution, Italy 1919–1922. Westport, Connecticut, US, Praeger Publishers, 2001, p. 73.
[3] PAYNE, Stanley G. - A History of Fascism: 1914-1945. The University of Wisconsin Press, United States of America, 1995, p. 223.
[4] SMITH, Denis Mack - Mussolini: A Biography. New York, Vintage Books, 1983, p. 311.
[5] SMITH, Denis Mack - Mussolini: A Biography. New York, Vintage Books, 1983, p. 312. 

O muro da vergonha

por A-24, em 14.11.14
Via Malomil

     Conta Jorge Luis Borges que o homem que ordenou a edificação da Grande Muralha da China, o imperador Shih Huang Ti, foi o mesmo que determinou que fossem queimados todos os livros anteriores a ele. Nesses dois gestos, aparentemente tão distintos, revelava-se, afinal, um mesmo desígnio - fazer parar o tempo. Com a queima dos livros do passado pretendia o imperador nada menos do que a «abolição da História», nas sábias palavras de Borges. Com a construção da infinda muralha, procurava Shih Huang Ti proteger o seu império das acometidas dos bárbaros do Norte, acautelando o futuro daquelas terras. Para que a China, assim defendida tanto do seu passado como do seu futuro, permanecesse imutável por séculos e séculos. «Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes», diz Jorge Luis Borges. Simplesmente, Shi Huang Ti actuou a uma escala tão gigantesca que a muralha que mandou construir é alvo de um mito urbano, segundo o qual ela seria a única obra feita pelo Homem observável a partir do espaço. Novamente, a lição de Borges: «Cercar uma horta ou um jardim é comum; mas não, cercar um império».
         O Muro de Berlim não teve, por certo, a pretensão de cercar um império, pois é duvidoso que o bloco de Leste fosse um «império» (apesar da lição premonitória de Hélène Carrére d'Encausse no seu L'Empire Eclaté); e, mesmo que o fosse, não era propósito do Muro defender um espaço de proporções tão gigantescas como a China imperial. Desde logo, porque a estrutura da obra, circunscrita à antiga capital do Reich, não correspondia à dimensão colossal da linha divisória da «Cortina de Ferro», cuja existência Churchill denunciara ao mundo no seu célebre discurso de Fulton. «Como pode uma muralha proteger, se não é uma estrutura contínua?», perguntou Kafka na narrativa que dedicou à muralha chinesa. O Muro de Berlim não era, nunca esperou ser, a Muralha da China. Esta, aliás, nunca foi derrubada. Permanece firme e visível a partir do espaço, segundo dizem. Em contrapartida, o Muro foi destruído, pedra sobre pedra, numa noite de exaltação e júbilo, há precisamente 25 anos.   
      


Em todo o caso, há um traço comum a todos os muros que se erigem, na China, na Alemanha, no Médio Oriente ou na fronteira do sul dos Estados Unidos. Os muros visam criar uma barreira entre seres humanos. Comungam, no fim de contas, do eterno mas utópico ideal de fazer parar a História, que se desenvolve da acção e na interacção dos homens. Qualquer muro retira aos cidadãos aquilo que lhes é mais essencial: a liberdade de escolher. Sintomaticamente, esse é título do capítulo dedicado à queda do Muro de Berlim na volumosa História da Alemanha de Dennis Bark e David Gress. No caso do Muro, a tentativa de congelar a marcha irreversível do tempo, comprimindo a liberdade de escolha individual, é algo que ficou patente no modo como a RDA procurou que os seus cidadãos ignorassem o que sucedia «do lado de cá». Para que, «do lado de lá», intra muros, a vida decorresse sem sobressaltos. Para que os fiéis do socialismo - que, note-se, não hesitavam em espiar-se uns aos outros - acreditassem como Pangloss que viviam no melhor dos mundos possíveis. Esta é uma realidade que o filme Good Bye, Lenine! captou de forma admirável, narrando a história de uma mulher que alimentava a crença na utopia socialista e para quem a vida parara antes da queda do Muro, pelo que jamais se adaptaria à febril aceleração do tempo que os grandes eventos da História sempre provocam. Por muito que julguemos tratar-se de uma história de ficção, foi algo que, de uma forma ou doutra, afectou muitos alemães de Leste, sobretudo quando descobriram que a utopia que existia a Oeste também não era tão prometedora nem tão radiosa quanto julgavam.

Dos livros, as imagens que temos do Muro são, em larga medida, tributárias das novelas de John Le Carré e das trocas de espiões nas sombrias noites de neblina do Checkpoint Charlie. Agora, até por força da abertura de muitos arquivos, chegou o tempo de o Muro de Berlim se converter em objecto de investigação histórica. Sobre ele têm sido publicados diversos livros, podendo citar-se a obra The Wall. The people's history (2003), de Christopher Hilton (um autor especializado em biografias de campeões da Fórmula 1...). Mas, ao escolher o trabalho de Frederick Taylor, as Edições Tinta-da-China fizeram, como sempre, a melhor opção. É possível encontrar na literatura germânica estudos mais aprofundados, geralmente sobre pontos específicos (a edificação, a queda, o impacto nas relações Leste-Oeste, os efeitos da Ostpolitik). Não é fácil, porém, descobrir uma obra que, apesar da sua apreciável dimensão (o livro tem 581 páginas), consegue conquistar o leitor da primeira à última linha. Para isso contribuiu, por certo, a circunstância de o autor, Frederick Taylor, não ser um historiador profissional ou um académico, mas um argumentista que escreve romances e obras de ficção. O estilo com que este livro está escrito lembra, de facto, o argumento de um filme construído pari passu com o propósito de prender a atenção do espectador. Apesar de sóbria e contida, a prosa desvenda um autor que, sem sacrificar o rigor dos factos, alicerçados numa sólida investigação, pretende acima de tudo despertar a paixão compulsiva de quem o lê. Basta atentar nos títulos de cada capítulo: «Areia», «Sangue», «Arame», «Cimento» e «Dinheiro», a que se segue um posfácio desolador, expressivamente chamado «O Roubo da Esperança». Como basta atentar na primeira frase de um prefácio que, num registo cinematográfico, abre com o apelativo título «Bem-vindo ao Muro»: «Foi num fim-de-semana, em Agosto de 1961». No dia em que Berlim começou a ser cercada no âmbito da «Operação Rosa», um acto surpreendente que a todos apanhou desprevenidos, incluindo os comandantes americanos ou Willy Brandt. O pai de Frederick Taylor teve uma grave crise cardíaca, que o faria morrer um dia depois. Por isso, diz Taylor, sempre associou a edificação do Muro a um sentimento de corte, de perda, de ruptura - e é o ajuste de contas com essa memória traumática que se encontra na génese da sua investigação.  

 
  
         Este livro descreve com rigor e detalhe o percurso de Berlim, começando por tempos remotos, passando pelos alvores da Guerra Fria até aos tempos do bloqueio, quando os americanos organizaram a «Operação Vitualhas» e os britânicos a «Operação Berlinde». Sobre essa «pré-história» do Muro existe, aliás, um livro curioso, The Unheralded. Men and women of the Berlin blockade and airlift (2003) (bibliografia mais actualizada aqui). Como também começam a surgir, a ponto de se converterem numa «moda» historiográfica e editorial, inúmeros livros sobre os sofrimentos infligidos ao povo alemão no pós-2ª Guerra. A título de exemplo, e sem nos pronunciarmos sobre o seu conteúdo, pode citar-se o livro do pouco recomendável James Bacque, Outras Perdas(traduzido entre nós pelas Edições Asa) ou, mais recentemente, After the Reich. The brutal history of the Allied occupation, de Giles Mac Danogh (2007). Para quem quiser ter uma visão aproximada do que sucedeu pode ler o bem conhecido História Natural da Destruição, de Sebald, para o período da guerra, e, para o pós-guerra, os tumultuosos primeiros capítulos do notável 1945. The war that never ended, de Gregor Dallas. Mas não é disso que trata este volume, que, como se disse, começa na «pré-história» do Muro e termina com a sua derrocada. Taylor tem apenas um objecto de estudo, que se converte numa obsessão para o leitor: o Muro de Berlim. Ou apenas «o Muro», pois de tão conhecido não necessita de outros qualificativos.        



         Este livro de Frederick Taylor não traz propriamente novidades sensacionais sobre a história do Muro. O essencial dessa história, aliás, sempre foi conhecido. E, apesar de ter perscrutado meticulosamente os arquivos alemães, norte-americanos ou ingleses, Taylor não teve como objectivo fazer descobertas espectaculares - ou, se teve tal objectivo, não conseguiu alcançá-lo. Do mesmo passo, não enveredou por caminhos interpretativos, nem possuiu a pretensão de nos fornecer uma nova visão historiográfica sobre a edificação do Muro ou a sua queda. Até porque, desse ponto de vista, os factos são de tal forma evidentes, conhecidos e interpelantes que não suportam interpretações especialmente originais ou polémicas, se exceptuarmos o prodígio de imaginação e delírio que o Avante! nos ofereceu há poucos dias. Se o leitor quiser não mais do que uma descrição do essencial da história do Muro bastar-lhe-á consultar uma obra como The Berlin Wall. Division of a City, de Thomas Flemming, que em escassas sete dezenas de páginas contém uma narrativa factualmente correcta, desapaixonada e objectiva do que se passou, acompanhada de fotografias bem ilustrativas - a começar pela reprodução do documento de 12 de Agosto de 1961 através do qual um homem de 49 anos, praticamente desconhecido no Ocidente, determina o início da operação de clausura dos acessos da Porta de Brandenburgo pelas forças da Volkspolizei. Chamava-se Erich Honecker.


         Mas quem quiser conhecer realmente o que se passou terá de ir mais além, mergulhando nos meandros da Guerra Fria. E, nesse aspecto, dificilmente se poderá encontrar melhor meio de atravessar o Muro do que este livro de Frederick Taylor. Desde logo, porque Taylor se atém a factos, não buscando interpretá-los mas tão-só envolvê-los numa narrativa apetecível e cativante. Depois, porque Taylor não pretende fazer qualquer «percurso alternativo» nesta subida ao Muro de Berlim, como acontece, por exemplo, no citado livro de Hilton, que nos procura dar - e, nesse aspecto, de forma plenamente conseguida - uma outra visão dos acontecimentos, a visão dos que sofreram a amargura de conviver com uma realidade que os humilhava, de um lado e doutro do arame, da areia e do cimento. Muitos tentaram a sua sorte. Alguns conseguiram escapar com vida. Outros, não. Mais de 100 morreriam a tentar escapar. Taylor descreve de forma apaixonante as diversas tentativas de fuga que o Muro suscitou, de túneis a balões, entre outros engenhosos meios, ainda que nem sempre eficientes. Para aqueles que não fugiram, não foi fácil conviver com uma fronteira tão brutalmente visível.
         Se as muralhas da China ou de Adriano foram erigida para proteger impérios civilizados dos povos bárbaros do Norte, o Muro de Berlim não foi construído para evitar a invasão dos ocidentais. Foi edificado para evitar a hemorragia dos povos de Leste, ou seja, para proteger os alemães da RDA deles próprios. Os turistas do Ocidente - como aconteceu, de resto, a Frederick Taylor na sua juventude - podiam viajar até Berlim, ainda que com as restrições típicas de um regime totalitário. Entretanto, a Oeste, como bem nota Anne Applebaum na recensão deste livro que publicou no The Washington Post, estudantes radicais mostravam-se insatisfeitos com a opressão da sociedade de consumo capitalista, apesar de todos os habitantes da parte ocidental Berlim terem um estatuto privilegiado, estando isentos do serviço militar e recebendo vultuosos apoios públicos, por forma a garantir que também eles não partissem rumo a outras paragens. De um lado e doutro do Muro, ninguém estava satisfeito. Todos viviam, no fim de contas, naquilo que Taylor designa por «gaiola surrealista». É curioso notar como ambos os regimes, cada um à sua maneira e com as armas de que dispunha, procuraram fixar os seus cidadãos: a Leste, através de soldados e metralhadoras; a Oeste, por meio de subsídios do Estado e regalias sociais.



O Muro de Berlim surgiu de tal forma associado à Guerra Fria e ao regime comunista que a imagem que retemos da sua queda é também a que melhor exprime a derrocada daquele regime. Mas, é preciso dizê-lo, a edificação da muralha de Berlim não foi, ao contrário do que tantas vezes se julga, um gesto dramático que fez entrar o mundo num novo patamar de conflito entre as duas grandes potências. Nesse aspecto, a crise dos mísseis cubanos representou um risco infinitamente superior, até porque, segundo Taylor, homens como Kennedy, Macmillan ou de Gaulle não se opunham frontalmente à existência de duas Alemanhas. Perante os estragos que a Alemanha unida provocara em duas guerras mundiais, o Muro actuou até como elemento estabilizador do equilíbrio mundial - eis o único ponto em que Taylor se aventura por caminhos interpretativos não isentos de suscitar polémica e controvérsia. Mais do que o sintoma de um confronto, o Muro exprimia um acordo tácito de partilha do mundo em esferas de influência. Seja como for, a sua queda tornou-se um dos momentos mais emblemáticos da implosão do comunismo, como se naquelas paredes estivessem inscritos, além de milhares de graffitti, as marcas de uma ideologia que ainda atormenta o nosso tempo.

         Só poderemos compreender a gigantesca explosão de alegria a que assistimos em 1989 se conhecermos a amargura dos que em 1961 viram as suas vidas alteradas de forma tão violenta e radical. Sobretudo, tão repentina. O Muro caiu no mesmo lapso de tempo em que nasceu: um dia. Por muito que todos tenhamos sido berlinenses, parafraseando a famosa proclamação de Kennedy, só um alemão - ou, mais do um alemão, um habitante de Berlim - pode alcançar totalmente o que o Muro significou. A muralha edificada num tranquilo dia de Agosto de 1961 não dividiu dois Estados, não fracturou uma cidade nem sequer separou dois regimes ou sistemas políticos. O Muro apartou famílias, estilhaçou vidas, destruiu trajectórias pessoais, penetrou nos pormenores mais ínfimos do quotidiano de gerações inteiras. Foi símbolo da divisão de uma Alemanha que se cindiu até na forma como recordou os traumas de um passado recente, como podemos concluir da leitura da obra Divided Memory. The nazi past in the two Germanys, de Jeffrey Herf.
         Há quem sustente, numa interpretação original, que foi a divisão das Alemanhas, simbolizada no Muro, que permitiu o espectacular crescimento da RFA, o Wirtschaftswunder e a estabilidade dos tempos de Adenauer. A existência da RDA, entrincheirada por trás do Muro de Berlim, inviabilizara a formação de uma «grande Alemanha» de 80 milhões de pessoas, que a França, marcada por dois conflitos mundiais, jamais aceitaria como parceira num projecto de cooperação à escala europeia. Ao Muro de Berlim dever-se-ia, paradoxalmente, o nascimento da Comunidade Europeia. Para que uns se unissem, outros tinham de permanecer separados. Esta tese, proposta de modo algo impressionista por Paul Johnson no seu livro Modern Times, merece uma discussão que seria descabido travar neste breve apontamento. Felizmente, Frederick Taylor, como já se disse, não propõe «teses», descreve factos. Em todo o caso, a sua visão das coisas não parece andar muito longe da avançada por Paul Johnson. Pelo menos, no sentido em que, para Taylor, o Muro não revelou um confronto, antes selou o pacto da convivência possível nos tempos sombrios da Guerra Fria.
         A encerrar estas linhas, é devida uma palavra de saudação às Edições Tinta-da-China. E não apenas por terem decidido publicar uma obra desta envergadura num país que só agora começa despertar para os ensaios históricos de grande dimensão -trata-se de um gesto de coragem editorial, que se espera encontre eco junto do público leitor. É de saudar o excepcional apuro que sempre caracteriza os livros desta editora. Um grafismo de incomparável qualidade, uma tradução escorreita, uma revisão cuidada, capaz de espantar as mais tenazes gralhas, uma atenção a elementos tão importantes como o índice onomástico são alguns dos muitos méritos que converteram a Tinta-da-China num caso singular no panorama editorial português.
        
         Frederick Taylor, O Muro de Berlim. 13 de Agosto de 1961-9 de Novembro de 1989, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2007, 581pp.
         [texto originalmente publicado em 2008 na revista RI – Relações Internacionais, e disponível aqui]



Texto e fotografias de António Araújo

As mães da Arménia

por A-24, em 14.11.14
Malomil

  Steve Jobs falava fluentemente arménio. Pelo menos, é o que alguns dizem, baseando-se no facto do fundador da Apple ter como mãe adoptiva Clara Hagopian, nascida nos Estados Unidos, mas de ascendência arménia. E não, não estamos a citar a Wikipedia, mas o dossier secreto de Steve Jobs no FBI. Todos conhecem a história dos pais biológicos e dos pais adoptivos de Jobs e que opinião tinha este sobre o assunto. Quando lhe diziam que Paul e Clara eram os seus «pais adoptivos», Steve replicava «são os meus pais, são 100% meus pais». Os outros, os biológicos, eram apenas «esperma e um óvulo», nada mais do que isso. Mas daí a saber falar arménio por via materna vai um grande passo. Seja como for, é provável que, no mínimo, conhecesse os caracteres da língua da sua mãe Clara – e é quase impossível não vermos a marca da beleza delicada da caligrafia arménia no desenho de tudo quanto sai do ventre da Apple.

A exaltação da maternidade é uma característica secular da cultura arménia. Décadas de guerras e horríveis tormentos fizeram o resto. Em 1915, o genocídio do povo arménio deixou-nos essa palavra – a expressão «genocídio» foi cunhada para descrever estes massacres – e imagens devastadoras. Imagens de mães em fuga, carregando os filhos às costas. De todas, a mais poderosa é aquela em que uma mãe chora a morte da sua menina.




Não admira, por conseguinte, que em Erevan exista uma escultura monumental intitulada «Mãe da Arménia». Aliás, existem esculturas com esse nome em vários pontos do país. Mas se a glorificação da maternidade – e da coragem guerreira das mulheres da Arménia – é um traço multissecular daquele país, a escolha da «Mãe da Arménia» deve-se, muito possivelmente, ao amplexo tão maternal quanto sufocante de uma outra mãe, esta severíssima. A Mãe Rússia. Não é por acaso que nas antigas repúblicas da URSS – em Kiev, na Ucrânia, ou em Tlibissi, na Geórgia – existem igualmente estátuas colossais de mulheres de armas, jovens esbeltas mas de ar belicoso, pouco ou nada maternal (ver a estátua de Kiev aqui no Malomil, e a da Geórgia aqui).




Mãe da Geórgia (1958)

A Mãe da Arménia data de 1967. Naquele lugar havia sido inaugurada, em 29 de Novembro de 1950, uma obra diferente, a maior estátua de Estaline erigida na Europa. A autoria desse monstro devia-se aSergey Merkurov (1881-1952), o escultor predilecto de Estaline. Nascido justamente na Arménia, Merkurov foi Artista do Povo da URSS, membro da Academia Soviética das Artes e director de um dos mais belos museus de Moscovo, o Pushkin. A ele se devem largas dezenas de máscaras mortuárias (no Museu Merkurov existe a única máscara mortuária autêntica de Lenine, além dos rostos derradeiros de Tolstoi, Gorky, Mayakowski). Do seu cinzel saíram as três maiores estátuas de Estaline que existiam na defunta União Soviética. Era primo do místico Gurdjieff e praticou actos notáveis, como ter salvo da ira revolucionária a estátua de Catarina, a Grande, que Merkurov discretamente empacotou para Erevan. Ao que parece, teve a tristíssima ideia de, para o 70º aniversário de Estaline, lhe oferecer uma muito dispendiosa estátua chamada, pasme-se, «Morte de um Líder». José Estaline, como é evidente, não apreciou a simpatia – recusou a oferta e o artista caiu em desgraça. Mas, por maiores que tenham sido os seus feitos escultóricos, o nome de Merkurov será sempre associado ao famoso «Abecedário Erótico» que desenhou em 1931. O blogue The Charnel-House publicou-o em abundância, pelo que, por pudor, vamos apenas deixar aqui uma das mais castas imagens. Apenas pro memoria, até porque o alfabeto obsceno já foi reproduzido entre nós, no blogue História Maximus. As figuras têm uma clara inspiração na iconografia erótica greco-romana – o que não admira, dada a formação clássica de Merkurov – e possuíam, aparentemente, um propósito iconoclasta e provocador. Mas, na verdade, o seu objectivo era conformista e servil, visando ferir a susceptibilidade ortodoxa e a influência da igreja para com isso agradar ao novo poder soviético.






Sergey Merkurov




Abecedário Erótico, de Sergey Merkurov (1931)



Ross Wolfe, escritor, tradutor e autor do blogue The Charnel-House, agradece a Agata Pyzik, ensaísta de origem polaca que, segundo ele, foi quem deu a conhecer ao mundo anglófilo o alfabeto lascivo de Merkurov. Agata Pyzik, que vive em Londres desde 2010, publicou recentissimamente um livro, com o título Poor But Sexy, Culture Clashes in Europe East and West, Ainda que centrando-se muito no caso da Polónia, sua terra natal, a tese que defende não anda longe da sustentada por André Meier em 2006 no documentário Do Communists Have Better Sex?



André Meier, Do Communists Have Better Sex? (2006)


Nesse documentário afirmava-se que os alemães de Leste tinham uma vida sexual muito mais activa e interessante do que os seus irmãos do lado ocidental do Muro. Mesmo que estes tivessem mais liberdade e maior poder de compra, os cidadãos da RDA beneficiavam de leis mais flexíveis em matéria de divórcio e aborto, além de uma política muito mais efectiva de controlo de natalidade. Sem pôr em causa a conclusão geral sobre a abundância e variedade do sexo na Alemanha de Leste, importa ter presente o seguinte: as alemãs e os alemães, quando jovens, parecia estar dispostos a optar pela monogamia, pelo menos jurídico-formal. Casavam muito mais cedo, em média, do que os cidadãos da Alemanha ocidental. Porquê? Entre outras coisas, para conseguirem subir na lista de espera dos apartamentos distribuídos pelo Estado. Ao fim de três anos, em cada três mulheres da RDA duas estavam divorciadas. E com filhos a cargo. Não admira que 90% das crianças da RDA tenham sido, desde tenra idade, educadas emKindergarten. A dada altura, dada a escassez de géneros, só vendiam fraldas a quem tivesse um documento comprovativo de maternidade: em resposta, as alemãs de Leste, apresentavam os seus bebés nas caixas dos supermercados. Um país curioso, desparecido há 25 anos, que, com a cumplicidade da indústria farmacêutica do Ocidente, permitiu que 14.000 dos seus cidadãos tenham sido usados como cobaias humanas no uso experimental de novos fármacos ou produtos congéneres (quimioterapia, antidepressivos, anticoagulantes, até pasta dentífrica). Desconhece-se o número de vítimas, como não se encontrou um único documento em que as «cobaias» dessem o seu consentimento – o seu consentimento informado – a estas experiências farmacológicas. O negócio rendeu cerca de 16,5 milhões de marcos às autoridades da RDA. Os pacientes não receberam um cêntimo.














Voltemos à Mãe da Arménia ou, melhor dizendo, regressemos à base. A monumental escultura de Estaline, como se disse, fora desenhada por Merkurov, autor do não menos escandaloso abecedário erótico. A base era do arquitecto Rafayel Israyelian (1908-1973), que expressamente afirmou que concebera o pedestal como uma basílica arménia, com três naves. Diz-se que a construção tem claras semelhanças com a Igreja de Santa Ripsima, construída no século VII. Não deixa de ser irónico que, na base de uma estátua a Estaline, desenhada por um escultor que fizera um abecedário pornográfico com fitos anticlericais, esteja um edifício inspirado numa igreja do século VII.









Já Estaline durou menos tempo. Praticamente a seguir à sua morte, várias estátuas em sua homenagem desapareceram da paisagem do Leste da Europa. Assim aconteceu, por exemplo, na Karl Marx Allee, em Berlim, hoje só restando no Café Sybille um pedaço do bigode e uma orelha da estátua do Pai dos Povos, que já mostrámos aqui. Também na capital da Arménia se fez desaparecer Estaline. Na Primavera de 1962, a estátua foi removida, o que exigiu um aturado trabalho de desconstrução, que matou um soldado e fez vários feridos.








A Estátua de Estaline, em Erevan



Substituíram Estaline pela Mãe da Arménia, agora uma estátua de Ara Harutyunyan. Com uma altura de 22 metros, feita de cobre, forma com o pedestal em basalto um conjunto de 51 metros de altitude. A basílica original mantém-se, sendo hoje um museu militar dedicado à 2ª Guerra e, em especial, aos mortos da Guerra de Nagorno-Karabakh, o conflito entre a Arménia e o Azerbaijão que terminou com um cessar-fogo em 1994 mas que, em substância, permanece por resolver. Entretanto, em Erevan, a belicosa Mãe da Arménia tornou-se um ícone, infinitamente reproduzido, quase sempre num registo kitsch pavoroso.






























Num território martirizado por séculos de conflitos, as mulheres ora pegavam em armas, ora ficavam em casa, cuidando dos filhos, esperando que os homens regressassem da frente. Entre as que se destacaram em combate, Sose Mayrig (1868-1952). Há quem diga que Mãe da Arménia se inspira nela, ou noutras como ela. Sose Mayrig lutou contra os turcos, de armas na mão, juntamente com o marido e os filhos do casal. Animou as tropas, era admirada pela sua bravura. Não abandonou os combates mesmo depois de ter sido ferida, de ter perdido o marido e todos os filhos.

Nos anos vinte, cansada de guerra, estabeleceu-se em Alexandria, no Egipto, onde morreria em 1952. Mas ainda hoje existem na Arménia muitas mulheres como ela. Eis uma imagem desconcertante: na aldeia de Degh, na fronteira com o Azerbaijão, uma senhora com a bonita idade de 106 anos não baixa os braços. De metralhadora A-47 em punho, defende a sua casa, agora e sempre. Com os azeris por perto, há que estar alerta.





Mães da Arménia foram, e são, também as mulheres e mães dos mortos em combate. A expressão «mãe da Arménia» vulgarizou-se na linguagem corrente e na iconografia do país. Existem estátuas de mães-coragem em vários lugares. Em Gyumri, uma mãe-escultura datada de 1975. Outra, mais erótica e dinâmica, em Ijevan. Em Abril deste ano, foi inaugurado no Memorial do Genocídio do Povo Arménio, em Erevan, uma escultura de Serouj Ourishian que figura uma mulher fugindo dos massacres, protegendo uma criança.







Estátua de Gyumri






Estátua de Ijevan




Estátua de Erevan,
Memorial do Genocídio do Povo Arménio

Uma das mais conhecidas e emblemáticas imagens de mães arménias é da autoria de Chanik Aramian, e data de 1861, chamando-se «Arménia de Luto» ou «Ruínas da Arménia», tendo sido reproduzida em bordados, tapeçarias. A partir da década de 1870, tornou-se um símbolo patriótico da nação arménia. É espantosa a semelhança existente entre essa gravura e a fotografia estereoscópica tirada por Onnes Kurkdjian circa 1877-1880, mostrando uma mulher entre ruínas, que pode ser vista aqui.








Recentemente, e tirando partido da popularidade do termo «mãe da Arménia», foi desenvolvido um projecto artístico, mas também de intervenção cívica e política, intitulado mOther Armenia (ou aqui). Dez fotógrafas arménias apresentaram o seu país segundo um ponto de vista feminino. Imagens de pessoas que vivem nas margens da sociedade (uma série é dedicada aos transsexuais), outras das viúvas ou das mães de soldados mortos. Interiores vazios, com fotos e recordações (ver o vídeo,aqui)

O trabalho mais marcante, neste contexto, é o de Sara Anjargolian, a série «An Absent Presence». Sara fotografou os familiares dos soldados mortos em circunstâncias acidentais, nunca esclarecidas. Não eram militares em combate. Estas «Mães da Praça de Maio» (e desculpem o lugar-comum, óbvio em demasia) reúnem-se na Praça da República, em Erevan, em frente aos edifícios ministeriais. Exigem saber em que condições morreram os seus filhos. Numa das imagens, Nana Muradyan observa as fotografias da autópsia do seu filho. Valery apareceu morto em 2010, numa base militar. As forças armadas sustentaram que se tratou de um suicídio, mas a família acredita que Valery foi assassinado para encobrir outro crime, possivelmente o furto de combustível. Nana afirma que, dias antes de morrer, Valery lhe dissera que tinha recebido um telefonema anónimo, dizendo-lhe para manter o silêncio quanto ao roubo de gasolina que testemunhara. Ofereceram-lhe uma quantia pelo seu silêncio: 3000 dram, a moeda local. O equivalente a sete dólares. Dias depois, apareceria enforcado na base militar onde servia.



Nara Muradyan, observando as fotografias da autópsia do filho
Fotografia de Sara Anjargolian

As forças armadas são uma das instituições mais reservadas e fechadas da Arménia. Nos últimos anos, têm-se acumulado queixas de maus-tratos e homicídios nos quartéis. Às dezenas, jovens aparecem mortos, dizendo-se que pereceram por acidente ou que se suicidaram. As mães da Arménia temem que os seus filhos cumpram o serviço militar obrigatório. A guerra terminou oficialmente em 1994, mas os mortos continuam. E, com eles, as mães da Arménia.





















Fotografias de Sara Anjargolian

No fim, enfim, Tigran Hamasyan, compositor e pianista de jazz arménio, tocando uma música inspirada no folclore do seu país. Título:Mãe, onde estás?
António Araújo

34 anos depois. Recordando um artigo de Baptista Bastos sobre a Alemanha dividida

por A-24, em 13.11.14

25 anos da quedo do muro: Alemanha oriental vendeu prisioneiros políticos ao ocidente

por A-24, em 10.11.14
DN


A braços com uma situação económica caótica, autoridades da RDA entregaram à RFA prisioneiros em troca de dinheiro, mas também café, cobre e petróleo, diz historiador.
A operação tinha um nome: haeftlingsfreikauf. A partir de 1964, a administração da República Democrática Alemã começou a trocar prisioneiros políticos, detidos quando tentavam desertar para o ocidente, por dinheiro e outros bens.
"Entre 1964 e 1989, cerca de 33.755 prisioneiros políticos e 250.000 seus familiares foram vendidos para a Alemanha Ocidental, por um valor total de 3,5 mil milhões de marcos", diz o historiador Andreas Apelt à BBC, no dia em que se assinalam os 25 anos da queda do Muro de Berlim.
Há também registo de negociações de presos por bens de primeira necessidade ou matérias primas, como café, cobre e petróleo.
Todas as negociações foram mantidas no mais absoluto secretismo: nem o regime comunista podia qualquer fraqueza a nível internacional; nem o governo democrático da República Federal Alemã queria fazer parecer que estava de alguma forma a financiar o estado totalitário vizinho.
Escreve a BBC que todos os movimentos foram feitos em ambiente de clandestinidade, em túneis de comboio desertos ou através de autocarros equipados com placas de matrícula rotativas, ao estilo dos filmes de espiões.

Filha de uma família vendida

Daniela Walther tinha 5 anos em 1961 quando foi detida, junto com a família, a tentar fugir de Berlim oriental. Hoje, conta à BBCporque a família decidiu arriscar a fuga: o pai, Karl-Heinz Prietz, que escrevia para uma revista de educação, tinha sabido junto de fontes das autoridades que a fronteira entre o leste e o oeste ia ser fechada.
"Ele sabia que eles iam construir o muro", conta Daniela. Lembra-se bem da noite em que tentaram passar a fronteira, numa zona menos vigiada: "O meu pai avançou e chamou a minha mãe, mas ela paralizou, não teve coragem. Lembro-me de estar junto dela, a ouvir o meu pai chamar".
A hesitação revelou-se fatal. Foram todos detidos. A mãe foi condenada a nove meses de prisão por cumplicidade na tentativa de atravessar a fronteira e Daniela Walther foi mandada para a cidade de Stockhausen, para viver com os avós. Aqui permaneceu até que a mãe foi libertada. Os avós pediam-lhe para ela dizer que era filha da tia, que vivia na Alemanha Ocidental. "Ser filha de alguém que tinha tentado passar a fronteira era pior do que ser filha de um assassino", afirma.
Quanto ao pai, estave oito anos preso - "Foi torturado. Ele nunca explicou os métodos que utilizaram, mas destruíram-lhe a saúde.Penso que não viu a luz do dia durante anos" - até que foi vendido.
Já em Berlim ocidental, Karl-Heinz Prietz conseguiu que se fizesse um negócio para reaver a família. "Penso que pagaram 100 mil marcos por nós", diz Daniela Walther. "Eu na altura não queria ir, queria ficar no leste com os meus avós, na o acordado era para a mulher e filha".
Daniela tinha então 13 anos - estávamos em 1969 - e teve pena de deixar os amigos e a vida que conhecia. "A minha amiga Gudrun veio despedir-se de mim. Tive muita pena de a abandonar. Ela disse que me viria visitar quando tivesse 60 anos, porque era autorizado sair da Alemanha Ocidental a partir dos 60 anos".

O que causou a grande fome da Irlanda?

por A-24, em 06.10.14
Via Instituto Ludwig Von Mises


Ao final da década de 1990, o então primeiro-ministro britânico Tony Blair fez um discurso no qual se desculpou pelo fato de a Inglaterra ter feito "muito pouco" em resposta à grande fome que acometeu a Irlanda no século XIX (1845-1852), a qual matou um milhão de pessoas e forçou a emigração de outros milhões de irlandeses. Segundo historiadores, algo semelhante a um fungo contaminou um grande volume de batatas, impossibilitando seu consumo e matando de fome os irlandeses.


O problema é que o governo inglês, em vez de ser culpado por ter feito "muito pouco", tem de ser culpado por ter feito "muita coisa".
O que causou a fome? A teoria popular — que sempre esteve muito em voga nos EUA e na Europa — diz que os irlandeses eram promíscuos, preguiçosos e excessivamente dependentes da batata. Como resultado, eles morreram como moscas quando surgiu uma praga que arruinou sua principal fonte alimentícia — e tudo isso durante um dos mais rápidos períodos de crescimento econômico já vivenciados pela humanidade.
Teria sido essa inanição um acidente ecológico, como normalmente dizem os historiadores? Como a maioria das inanições já registradas, a irlandesa pouco tinha a ver com um declínio na produção de alimentos. Adam Smith estava correto ao dizer que "safras ruins geram "escassez", mas é "a violência de governos bem-intencionados que converte escassez em inanição".
Com efeito, a mais evidente causa da inanição na Irlanda não foi uma fitopatologia, mas sim a até então longa e duradoura hegemonia política da Inglaterra sobre a Irlanda. Os ingleses conquistaram e subjugaram a Irlanda repetidas vezes, e se apropriaram de seus vastos terrenos agrícolas. Enormes fatias de terra do país foram repassadas compulsoriamente a latifundiários ingleses. Esses latifundiários ingleses contratavam fazendeiros para administrar suas posses. E esses fazendeiros, por sua vez, arrendavam pequenas fatias de terra à população irlandesa em troca de sua mão-de-obra e de uma parcela da produção total. 
A disputa por terras entre os ingleses fez com que os preços de arrendamento cobrados dos irlandeses fossem cada vez maiores. Ao mesmo tempo, os pedaços de terra disponíveis para o arrendamento eram cada vez menores. Essa combinação entre crescentes preços de arrendamento e decrescentes fatias de terra disponíveis para o plantio empurrou os irlandeses para a subsistência e gerou um enorme fardo financeiro sobra e economia da Irlanda.
Um arranjo de locação de terras só pode ser eficiente se houver direitos, deveres e respeito aos contratos. O problema é que os irlandeses tinham apenas deveres; eles não tinham absolutamente nenhum direito sobre a terra em que trabalhavam ou sobre qualquer aprimoramento que eventualmente implantassem na terra. Somente nas áreas povoadas maciçamente por irlandeses protestantes os inquilinos possuíam algum direito sobre seus eventuais aprimoramentos. E dado que os latifundiários residiam na Inglaterra, eles praticamente não faziam investimentos em suas terras, o que impossibilitava qualquer melhoria na produtividade dos irlandeses.
Sob o domínio inglês, os irlandeses padeceram de várias inanições. Como um boxeador com as mãos amarradas nas costas, os irlandeses não tinham outra opção senão ficar parados e aguentar heroicamente todos os socos. 
O economista Jean-Baptiste Say foi um dos primeiros a alertar para o fato de que o arranjo adotado — em que os latifundiários residiam em outro país (Inglaterra) e não faziam investimentos em suas terras — era deplorável. Ele corretamente diagnosticou o problema e sobriamente previu os desastrosos resultados que de fato vieram a se concretizar. Um membro do Parlamento britânico, em resposta, chegou a dizer que tal preocupação era desnecessária, pois os oceanos iriam engolir a ilha irlandesa e destruir tudo o que havia nela.
A lei malthusiana é frequentemente invocada para absolver os ingleses. Segundo tal interpretação, os irlandeses eram vistos como um bando de promíscuos que se casavam cedo e procriavam em excesso. O próprio Malthus chegou a considerar a situação irlandesa como incorrigível. Os irlandeses, portanto, estavam apenas pagando por seus pecados por meio da inanição e das doenças geradas pela fome.
Eram os irlandeses realmente um bando de promíscuos? A população da Irlanda era de fato alta e a ilha havia se tornado densamente povoada após a união com a Grã-Bretanha em 1801. Parte desse crescimento populacional pode ser atribuída ao desenvolvimento econômico da época, dado que a população também estava crescendo rapidamente na Inglaterra e no resto da Europa.
Ilustrações da Grande Fome irlandesa

Com efeito, a taxa de crescimento da população irlandesa era apenas ligeiramente maior do que a taxa de crescimento da população inglesa, e estava partindo de uma base numérica muito menor. E por que estava crescendo a taxas maiores? A resposta está no fato de que a Inglaterra havia atribuído à Irlanda a atípica posição de ser o celeiro da Revolução Industrial.

Ilustrações da Grande Fome irlandesa

A Lei dos Cereais britânica foi uma série de tarifas de importação criadas para proteger os agricultores britânicos contra a concorrência estrangeira. As tarifas não apenas faziam com que os preços dos grãos se mantivessem artificialmente altos na Inglaterra, como também protegiam as safras contra quedas de preços nos anos de fartura. Em 1821, essas leis foram estendidas à Irlanda, o que significa que os latifundiários ingleses que possuíam terras na Irlanda também eram protegidos por tarifas de importação. Mas os únicos beneficiários desse protecionismo eram os latifundiários ingleses (inclusive aqueles que possuíam terras na Irlanda), e não os irlandeses.
O povo irlandês conseguia cultivar grandes quantias de batatas nutritivas com as quais alimentavam suas famílias e seus animais. Já os latifundiários ingleses se beneficiavam do fato de que o plantio de batatas não exauria o solo e ainda permitia que uma grande porcentagem da terra fosse voltada para o plantio de grãos que seriam exportados para a Inglaterra.
Os preços artificialmente altos estimularam não apenas o uso mais intenso das terras atuais como também o cultivo de novas terras na Irlanda. Um insumo essencial para esse arranjo era a farta quantidade de mão-de-obra irlandesa, que era vista meramente como um bando de servos sem terra. 
Foi durante esse período de protecionismo e de alta demanda por mão-de-obra que a população da Irlanda passou a crescer a altas taxas.
Dado que os latifundiários ingleses estavam no controle do Parlamento, esse arranjo tendia a se perpetuar para sempre. No entanto, uma crescente fatia de industriais e trabalhadores na Inglaterra começou a defender o livre comércio. Tais pessoas se articularam, se organizaram e começaram a crescer como força política. Com a criação da Liga Anti-Lei dos Cereais, os Whigs e os Tories concordaram, em 1845, em reduzir as tarifas de importação e em abolir completamente a Lei dos Grãos já em 1846. Como consequência, o preço do trigo despencou em 1847, chegando ao menor valor em 67 anos.
Essa abolição de tarifas gerou um drástico e repentino impacto sobre o valor das terras na Irlanda, cujos preços despencaram. Simultaneamente, houve uma sensível redução na demanda por mão-de-obra irlandesa à medida que as terras da Irlanda deixavam de ser produtoras de cereais e eram convertidas em pasto.
O que tem de ficar claro é que, embora tenha sido o livre comércio o gerador dessas mudanças, quem de fato estimulou o crescimento populacional e a subsequente despovoação (a população irlandesa só foi se recuperar em 1951, e a emigração líquida só acabou e 1996) foram o protecionismo inglês e a Lei dos Cereais. Não tivesse havido esse incentivo artificial gerado pelo protecionismo, talvez a história teria sido outra.
Esse choque de preços tornou o declínio populacional inevitável. Quando a emigração se tornou uma opção viável, vários irlandeses preferiram enfrentar longas e perigosas jornadas rumo ao Novo Mundo a encarar uma barca para as fábricas da Inglaterra.
Mas a coisa piora.

Em vez de deixar o mercado funcionar, a Inglaterra lançou um maciço programa de intervenção governamental, o qual consistia essencialmente na execução de obras públicas e na construção de asilos para os pobres, a maioria já concluída imediatamente antes do início da grande fome. Um pouco antes, um relatório do arcebispo de Dublin Richard Whately, intitulado Irish Poor Inquiry, já havia rejeitado os asilos como solução para a pobreza. No relatório, o arcebispo Whately argumentou que a solução para pobreza eram investimentos e caridade. Mas essas soluções "radicais" foram rejeitadas pelos ingleses, que descartaram o relatório.
Os asilos serviram apenas para agravar o problema da pobreza. Já a execução de grandes obras públicas — um sistema que na realidade era apenas uma versão antecipada do New Deal — exigia uma pesada tributação sobre a economia local. Os burocratas ingleses retiraram dinheiro de projetos que aumentariam a produtividade e a oferta de produtos agrícolas e o redirecionaram para a construção de estradas inúteis.
A maioria dessas estradas ia do nada a lugar nenhum. Para piorar, a política estabelecida pelos políticos ingleses de pagar salários abaixo do valor de mercado — e você pode imaginar o quão baixo eles eram — fez com que os trabalhadores ganhassem, em termos de comida, menos do que a própria energia calórica que eles despendiam ao trabalhar na construção das estradas.
Estátuas em memória às vítimas (River Liffey, Dublin)
Em 1847, o governo britânico abriu cozinhas públicas para os pobres, as quais serviam sopas. Tal arranjo foi relativamente exitoso porque, como bem havia sugerido o arcebispo, era uma mímica de uma caridade privada e era capaz de fornecer nutrição sem exigir esforço calórico ou aumentos significativos de impostos. Mas tal programa foi rapidamente abolido em prol de um retorno à construção de asilos, o que novamente não foi capaz de resolver o problema da pobreza e da fome. No verão de 1847, o governo elevou impostos, um ato genuinamente irracional.
Além do total fracasso dos programas governamentais, os asilos, as obras públicas e as cozinhas para os pobres geravam uma grande concentração de pessoas em pequenos espaços. Isso permitiu que os vírus das doenças — a principal causa mortis da grande fome — se espalhassem e fizessem seu trabalho maligno. 
Nos vários outros casos de inanição que já haviam ocorrido no passado, o número de irlandeses mortos havia sido pequeno. Com efeito, a peste da batata não afligiu severamente grande parte da Europa. O que ocorreu de diferente com a Irlanda nos anos 1840? As Irish Poor Laws (uma série de leis criadas pelo Parlamento britânico para "resolver" o problema da pobreza na Irlanda) praticamente aboliram a caridade privada. Nos episódios de fome anteriores, os ingleses e os próprios irlandeses haviam se apressado em oferecer amplos serviços caritativos. Mas agora a situação era outra. O governo havia entrado em cena. Sendo assim, por que fazer caridade e doações se toda a população pagadora de impostos já estava "cuidando da situação"? A população inglesa passou a ser severamente tributada para pagar os maciços programas assistencialistas criados pelo governo britânico ao passo que os pagadores de impostos da Irlanda simplesmente não tinham como fornecer caridade adicional.
Relatos históricos sobre a postura dos políticos ingleses em relação à caridade privada são nefastos demais para serem ignorados. Há um relato de que o povo do estado americano de Massachusetts enviou um navio repleto de cereais para a Irlanda, mas as autoridades inglesas o confiscaram alegando que isso afetaria o comércio. Outro relato afirma que o governo britânico apelou ao sultão da Turquia para que reduzisse suas doações de £10.000 para apenas £1.000, pois isso estava constrangendo a Rainha Vitória, que havia doado apenas £1.000 para os flagelados.

Conclusão

Há teorias que dizem que os ingleses propositadamente geraram a grande fome irlandesa. Como aquela era uma era de revoluções, e dado que havia suspeitas de que os irlandeses estavam tramando mais uma revolta, trata-se de uma teoria relativamente factível.
No entanto, a questão da culpa não é tão importante quanto a questão da causa. O que é realmente importante é que a grande fome irlandesa originou-se de grandes erros econômicos, tais como a alegação de que inanições são causadas pelo mercado e pelo livre comércio, e que a fome é resultado de políticas laissez-faire. Até mesmo Karl Marx foi fortemente influenciado pelos eventos ocorridos na Irlanda enquanto escrevia em Londres.
A Irlanda foi devassada pelas forças econômicas originadas por um dos mais poderosos e agressivos estados que o mundo já conheceu. Sua população sofreu não por causa de um fungo (cujos cientistas ingleses insistiam ser apenas umidade excessiva), mas sim por causa da colonização, da espoliação, da servidão, do protecionismo, dos preços artificialmente altos sustentados pelo governo, do assistencialismo estatal e de insensatos programas de obras públicas.
Seria muito mais honesto de sua parte se Tony Blair pedisse desculpas por ter causado a grande fome e pelas políticas assistencialistas que apenas agravaram a situação dos irlandeses.

No Báltico, as feridas abertas de um passado que não passa

por A-24, em 04.09.14
Esther Mucznik

“A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.



“Museu das Vítimas dos Genocídios”, este é o nome do imponente edifício que em Vilnius, capital da Lituânia, pretende mostrar ao público a história das ocupações soviética e nazi. O edifício construído no final do século XIX reflecte a história conturbada do país e da cidade: província do império russo até 1914, Vilnius foi ocupada pela Alemanha durante a Primeira Grande Guerra e em seguida pela Polónia até 1939. Em 1940-1941, ao abrigo do pacto Ribbentrop-Molotov, a União Soviética entra na cidade e o edifício do actual museu foi quartel-general da NKVD – a polícia política soviética – e prisão dos recalcitrantes.

Com a invasão nazi, no verão de 1941, o edifício torna-se sede da Gestapo e doSonderkommando A – esquadrão de extermínio, que com o apoio de letões e lituanos, levou a cabo até 1944 o assassinato da quase totalidade dos 250 mil judeus da Lituânia, assim como de ciganos, resistentes nacionalistas e comunistas. E finalmente, entre 1945 e 1991, durante a longa ocupação soviética, o edifício torna-se de novo sede da polícia política comunista, rebaptizada em 1952 com o nome de KGB, local de interrogatório, tortura, prisão e execução.
Com uma história assim, o que nos conta hoje o Museu? Foi o que fomos ver neste verão de 2014, no decorrer de mais um “Seminário sobre Rodas”, viagem de estudo organizada pela Memoshoá – Associação Memória e Ensino do Holocausto, que desde há cinco anos percorre a Europa nos “passos” da Shoá com professores do ensino básico e secundário.
A maior parte dos três imensos andares do edifício é preenchida por aquilo que foi a prisão do NKVD-KGB. A guia, uma mulher jovem, conduz-nos demoradamente pelos meandros da prisão, as suas alas de interrogatório e tortura, celas e local de execução dos prisioneiros… Mas no decorrer da visita guiada apercebemo-nos da existência, sem qualquer menção nem paragem por parte da guia, de uma pequena cela com uma estrela de David ao fundo. Trata-se de um espaço exíguo onde o nosso grupo de 27 pessoas não cabe todo ao mesmo tempo, o único dedicado ao período nazi em todo o museu. Questionada, a guia remete para o final a visita ao referido espaço. Na verdade, esta não terá lugar: sob pretexto de que “somos especialistas” e que não precisamos dela, abandona-nos precipitadamente. Parece-nos evidente que não está preparada para nos falar do nazismo e sobretudo das vítimas judias…
O Museu das Vitimas do Genocídios conta bem a história de quase meio século de ocupação soviética: os documentos, as fotos e testemunhos são abundantes, esclarecedores e constituem uma clara condenação do regime comunista. Conta-nos também o combate pela independência da Lituânia e a resistência nacional e popular anti-soviética ao longo de todo esse período histórico. Mas a história da ocupação nazi é-nos praticamente ocultada. A narrativa do Museu é clara: sim, fomos ocupados pelos nazis entre 1941 e 1944, mas o verdadeiro sofrimento, aquele que tem de ser contado, narrado e nunca esquecido, é o meio-século de ocupação soviética. Esta é a narrativa que encontrámos com pequenas diferenças e algumas (poucas) excepções nos três países do Báltico: Lituânia, Letónia e Estónia. Os grandes museus nacionais evocam o sofrimento das populações sob o regime soviético, calando ou minimizando o massacre dos seus cidadãos judeus.
É compreensível? Em parte sim. Independentes entre 1920 e 1939, os três países ocupados pela URSS em 1939/1940, ao abrigo do Pacto Molotov-Ribbentrop, acolhem os nazis em 1941 como libertadores e muitos colaboram no extermínio dos judeus, ciganos e quadros comunistas. E em 1944-45, quando finalmente aguardam pelo restabelecimento da independência nacional, são de novo ocupados pelo poder soviético e desta vez até à sua derrocada, em 1991. São pois décadas de esperanças frustradas, de repressão, de deportações para os goulags siberianos. Por outro lado, nestes países ferozmente nacionalistas, as minorias étnicas ou religiosas não “são parte”, são os “outros”: a cultura define a nacionalidade, herança do império russo. Presentes desde o século XIV na Lituânia, na Letónia no século XVI e no século XVIII na Estónia, os judeus são considerados uma minoria nacional não autóctone, com as consequências óbvias em termos de marginalização social.
Mas vinte e três anos depois da libertação, é tempo de reconhecer que a história dos países do Báltico não é apenas uma longa e heróica luta pela independência. É também uma história de quatro anos de colaboração com o nazismo no extermínio praticamente total de uma parte significativa da sua população. Nas valas comuns das florestas de Ponary, em Vilnius, de Rumbula e de Bikernieki, perto de Riga ou de Klooga em Tallinn, jazem as cinzas dos cerca de meio milhão de judeus das comunidades dizimadas entre Julho e Dezembro de 1941, pelos Einsatzgruppen que acompanham o exército nazi na Operação Barbarossa. Em Janeiro de 1942, na conferência de Wahnsee, os três países do Báltico já são considerados praticamente judenrein – “limpos” de judeus. A brutalidade da matança coincide muito provavelmente com a decisão de Hitler nesse Outono de 1941 de levar a cabo o que hoje chamamos de Holocausto: o extermínio total do povo judeu.
Nas imensas e belíssimas florestas do Báltico que percorremos, pequenos e simbólicos memoriais erguidos perto das valas comuns por alguns sobreviventes, ou seus descendentes imigrados, financiados na sua maioria por entidades judaicas e doadores americanos, lembram um genocídio que liquidou perto de 100% de comunidades com uma vivência cultural única no mundo judaico. Os três países têm em comum uma intensa vida religiosa nos séculos XVIII e XIX à qual sucede uma vivência politica e cultural marcada pela secularização: desenvolvimento do movimento operário e dos movimentos sionistas, crescimento de uma imprensa, literatura e ensino em Iídiche e hebraico. Na viragem do século, Vilna, em russo, Vilno, em polaco, Vilnius em Lituano e Vilné em Iídiche, é o centro de todos os movimentos que suscitam uma transformação radical da vida judaica. A sua situação geográfica explica este papel chave. Considerada a “Jerusalém da Lituânia”, é um ponto de confluência entre o Ocidente e Oriente europeus, onde as correntes de vanguarda encontravam eco numa intelectualidade muito receptiva e preparada.
Na véspera da II Guerra, as cidades do Báltico partilham assim uma brilhante cultura judaica e universal com um forte tecido associativo, cultual e cultural. Tudo isto será destruído pelo genocídio nazi. No final dos anos 1990 viviam apenas no conjunto dos países bálticos independentes, 25.000 judeus e os vestígios do seu brilhante passado praticamente desaparecidos. Hoje, pelo que pudemos apurar, serão ao todo entre quinze a dezassete mil a lutar pela sobrevivência das suas comunidades.
O poeta de língua Idiche, Abraham Sutzkever, escreveu: “E se na minha cidade não restarem mais nenhuns judeus, as suas almas continuarão a habitar as suas ruelas sinuosas”. Mas mesmo as almas precisam de espaço na memória dos povos. Vilnius, Riga, Tallinn, cidades que procuram sarar as feridas de uma longa e recente ocupação, talvez ainda não sejam capazes, mas o que elas nos demonstram é que a memória europeia não é simétrica no leste e no ocidente europeu. “A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la”, escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer.

Os campos por onde passaram portugueses

por A-24, em 03.07.14
PATRÍCIA CARVALHO (TEXTO) e CÉLIA RODRIGUES (INFOGRAFIA)

Durante a II Guerra Mundial, dezenas de portugueses que moravam em França foram presos, colocados em campos de internamento e deportados, posteriormente, para campos de concentração na Alemanha ou na Polónia. Alguns acabaram por ser transferidos para outros campos, na Áustria ou em França. Todos eles estão aqui identificados, a par com os portugueses que passaram por cada um dos campos.

Royallieu-Compiègne
Situada na calma cidade de Compiègne, a cerca de 60 quilómetros de Paris, a caserna de Royallieu foi construída em 1913 e os seus 25 edifícios ocupavam uma área de 16 hectares. O local era querido aos franceses, uma vez que fora a poucos quilómetros da cidade, nos bosques que rodeiam Compiègene, que a 11 de Novembro de 1918 fora assinado o Armistício que marcava a capitulação alemã e o fim da Grande Guerra. Agora, em 1940, quando o marechal Pétain pediu um cessar-fogo, Adolf Hitler exigiu que este novo Armistício, de carácter totalmente oposto ao anterior, fosse assinado exactamente no mesmo sítio. A 22 de Junho de 1940 era, assim, consumado o acordo que punha fim às hostilidades alemãs contra a França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. O território francês foi dividido, ficando Pétain com a gestão do Sul, com a capital em Vichy, e o resto do país sob ocupação alemã.

No final de Junho, o complexo de Royallieu foi confiscado pelos alemães, para ali internarem prisioneiros franceses e britânicos. Um ano depois, as SS instalaram em definitivo um campo de internamento e de trânsito no local e Royallieu-Compiègne haveria de se transformar no mais importante local de deportação dos opositores do regime de Vichy.

Levados para ali de todos os pontos de França, os prisioneiros, sobretudo políticos e membros da Resistência, mas também judeus ou criminosos de delito comum, permaneciam no campo de internamento até serem encaminhados, a pé, para a estação de comboio da cidade, enchendo os vagões que os haveriam de levar para os campos de concentração do Reich. Entre 1942 e 1944 cerca de 45 mil pessoas foram deportadas em comboios que partiram de Compiègne.

Hoje, o que sobrou do antigo campo de internamento está transformado num Memorial e, no exterior, um monumento aos que por ali passaram, lembra: “Aqui, em Royallieu, 53 mil homens, mulheres e crianças vítimas da Alemanha Nazi foram internados, deportados e fuzilados, entre Julho de 1941 e Agosto de 1944”. Dos principais transportes que dali partiram com destino aos campos de concentração, o maior foi o Comboio da Morte que, com 2152 pessoas a bordo, deixou Compiègne a 2 de Julho de 1944, em direcção a Dachau.
Em pelo menos oito transportes iam portugueses, num total de mais de 30 pessoas. Os portugueses também foram deportados para os campos de concentração nazis em comboios que partiram directamente da ilha de Bordéus, Lyon, Toulouse e do campo de internamento de Pithiviers.

Pithiviers
O campo de Pithiviers foi construído no início da II Guerra Mundial com o objectivo de acolher os prisioneiros de guerra alemães. Após o Armistício de 22 de Junho de 1940, foi utilizado para os prisioneiros de guerra franceses. Com a ordem de apresentação em massa (e consequente detenção) dos judeus que habitavam em França, a 14 de Maio de 1941, conhecida como rafle du billet vert, o governo de Vichy transformou Pithiviers num campo de trânsito para os judeus. No ano de 1942, seis comboios partiram de Pithiviers nos dias 25 de Junho, 17 de Julho, 31 de Julho, 3 Agosto, 7 de Agosto e 23 de Setembro, transportando 6079 judeus para Auschwitz.
BUNDESARCHIV BILD 183-S69236, FRANKREICH, INTERNIERUNGSLAGER PITHIVIERS CC-BY-SA-3.0

Destes, apenas 115 sobreviveram até à libertação. O campo francês foi evacuado em Outubro de 1943 para ser transformado num campo de internamento para os detidos políticos. Michael Fresco ia a bordo do primeiro comboio a deixar Pithiviers, a 25 de Junho de 1942, com mil judeus. Ele é o único português que consta dos registos recuperados de Auschwitz.
Auschwitz
O campo de concentração de Auschwitz começou a ser instalado em 1940, a três quilómetros da cidade polaca de Oswiecim, aproveitando instalações militares pré-existentes. Esta primeira parte do campo, conhecida como Auschwitz I e à qual se acede através do portão com a famosa inscrição “Arbeit Macht Frei” (O trabalho liberta), foi concebida para receber prisioneiros políticos polacos. A função e cenário de Auschwitz iriam, contudo, mudar rapidamente.
Em 1941, o comandante do campo, Rudolf Hoess, recebeu instruções para ampliar Auschwitz, com o objectivo de ali receber os judeus destinados à “solução final” nazi. Na sua aubiografia Comandante de Auschwitz, que escreveu na prisão já depois de ter sido condenado à morte (acabaria por ser enforcado em Auschwitz I), Hoess recorda: “No Verão de 1941, [Heinrich] Himmler [comandante das SS] chamou-me a Berlim para me informar da ordem fatal que previa o extermínio dos judeus de quase todos os cantos da Europa e que faria com que Auschwitz se tornasse no maior matadouro humano que a história já conheceu”.

Começava, por isso, a nascer Birkenau (ou Auschwitz II), instalado a poucos quilómetros do primeiro campo e cuja construção obrigou à evacuação e destruição de aldeias polacas. Birkenau estava subdividido em diversos campos e a linha ferroviária terminava no seu interior, o que permitia fazer uma selecção dos prisioneiros que seriam enviados para as câmaras de gás, mal estes chegavam.
A destruição sistemática e premeditada dos registos dos prisioneiros do campo torna praticamente impossível saber quantas pessoas, na sua maioria judeus, foram assassinadas em Auschwitz, mas os números flutuam entre 1,5 milhões e os três milhões.
Nos registos do campo que sobreviveram à guerra consta apenas o nome de um português. Michael Fresco, nascido em Lisboa em 1911, morreria ali a 24 de Julho de 1942,menos de um mês depois de ter sido deportado.
Em Janeiro de 1945, com a aproximação dos russos, os alemães procuraram apagar as provas dos crimes cometidos em Auschwitz, queimando documentos, fazendo explodir os crematórios e pegando fogo ao bloco onde eram guardados os bens dos prisioneiros, conhecido como Canadá. Milhares de prisioneiros foram forçados a integrar as marchas de morte, com destino a outros campos, enquanto outros foram assassinados. O Exército Vermelho entrou em Auschwitz a 27 de Janeiro de 1945, encontrando cerca de sete mil prisioneiros.

Bergen-Belsen
Bergen-Belsen é, para muitas pessoas, ainda mais poderoso como sinónimo do horror nazi do que Auschwitz. E isto deve-se, em grande parte, à rápida divulgação de fotografias e vídeos do que os Aliados ali encontraram, durante a libertação do campo. O exército britânico chegou a Bergen-Belsen a 15 de Abril de 1945.
Bergen-Belsen começou por ser um campo de prisioneiros de guerra, mas em 1943, as SS assumiram o controlo de parte desta área, transformando-a num campo de concentração e criando uma zona para judeus “especiais”, que os nazis esperavam poder trocar por alemães capturados pelas forças Aliadas. Nesse ano foi também estabelecido o chamado “Campo Neutro”, onde se encontravam cidadãos de países neutros, como Espanha, a Turquia e Portugal. Neste campo estiveram detidos 19 judeus da Salónica, com um passaporte colectivo português passado pela legação de Berlim a 11 de Julho de 1944, que chegaram a abandonar Bergen-Belsen, mas cujo destino final se desconhece.
Quando eles deixaram Bergen-Belsen, o campo já se tornara no inferno de fome e epidemias de tifo e desinteria que haveriam de dizimar milhares de prisioneiros, incluindo as duas irmãs Anne e Margot Frank.
O livro Remembering Belsen – Eyewitnesses Record of the Liberationcongrega um conjunto de depoimentos de soldados, pessoal de auxílio e prisioneiros de Bergen-Belsen, nos primeiros dias após a libertação do campo. O brigadeiro H. L. Glyn-Hughes, o médico mais graduado entre os britânicos e que assumiu a organização do auxílio às vítimas, descreve o que encontrou: “O campo todo foi originalmente construído para albergar 8 mil pessoas e quando chegamos tinha 40 mil vivos, enquanto no solo estavam espalhados dez mil corpos, e foi-nos reportado que outros 17 mil tinham morrido no mês de Março. Depois de uma rápida vistoria a toda a área, percebemos que 25 mil prisioneiros precisavam de hospitalização imediata e que deste número, dez mil provavelmente morreriam.”

Os ingleses optaram por queimar todas as barracas dos prisioneiros, à medida que iam sendo esvaziadas, pelo que hoje nada dessa parte do campo permanece. Além do Memorial construído em Bergen-Belsen, e dos monumentos erigidos no interior do perímetro do campo em honra dos que morreram, o que se passou ali tem como principais testemunhas as elevações de terreno, cobertas de erva e flores na Primavera, que são, afinal, as sepulturas comuns que guardam os corpos dos milhares de vítimas.
Alguns dos portugueses deportados para os campos de concentração nazis foram transferidos para Bergen-Belsen, com o aproximar do fim da guerra. Dos nomes recolhidos, só uma pessoa sobreviveu, Maria Barbosa. Sem que Maria o saiba, o seu irmão Francisco, mais novo dois anos, chegou a Bergen-Belsen a 20 de Março de 1945 e morreu ali, em data e de causa desconhecidas.
Tal como Francisco terão morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen Prosper Colomar (10 de Abril de 1944), Manuel João (morto a 25 de Abril de 1945, dez dias após a libertação), Richard Lopes (morto a 21 de Maio de 1945, pouco mais de um mês após a libertação) e Francisco Ferreira. Deste último desconhece-se a data da morte, mas o seu nome ainda aparece numa lista de sobreviventes, feita a 19 de Abril pelos próprios prisioneiros, pelo que terá sido também uma das quase 14 mil pessoas que morreram após a libertação de Bergen-Belsen.

Buchenwald
Buchenwald, que acabaria por se tornar no maior campo de concetração dentro da Alemanha, começou a ser construído em 1937, em Ettersberg, perto da cidade alemã de Weimar. Ao longo dos anos, o complexo cresceu até se tornar o epicentro de 136 subcampos e foi o local de detenção de 250 mil pessoas. Estima-se que 56 mil delas terão morrido.
O portão de Buchenwald, com a irónica inscrição “Jedem Das Seine” (A cada um o que lhe é devido), ainda lá está, com o relógio da torre de entrada parado na hora (15h15) a que os prisioneiros do campo, sabendo da aproximação das tropas americanos, se revoltaram, a 11 de Abril de 1945. Também é possível ver as celas em que os prisioneiros eram enforcados ou mortos com um tiro na nuca e o poste em que eram pendurados pelos pulsos, braços cruzados atrás das costas. O local das antigas barracas está marcado por pedras negras e blocos de granito com o número de cada um dos blocos.
Buchenwald foi o destino inicial de muitos dos portugueses deportados de França. Dos dez transportes que deixaram Compiègne com destino a este campo, quatro levavam portugueses a bordo.

Os portugueses que seguiram para Buchenwald a partir de França são Manuel Alves, João Faria de Sá, Augusto José Rodrigues, Prosper Colomar, Emílio Pereira, Julien Laranjo, Duarte da Paixão, Aníbal dos Santos, Venâncio Dias, Cândido Ferreira, Luís Ferreira e António Ribeiro. Todos eram prisioneiros políticos.
Por Buchenwald passaram também Maria d’Azevedo, inicialmente enviada para Ravensbrück, e o seu filho, Maurice d’Azevedo, nascido a 8 de Julho de 1924. Maurice foi enviado para Buchenwald no transporte que saiu de Compiègne a 22 de Janeiro de 1944, e em que também seguiam Prosper Colomar, Julien Laranjo e Emílio Pereira. O jovem está identificado como francês, embora existam dados que também colocam o seu local de nascimento no Porto. Mãe e filho, também prisioneiros políticos, terão sobrevivido ao campo. De todos os portugueses que passaram por Buchenwald, pelo menos quatro morreram, dois dos quais – José Augusto Rodrigues e Cândido Ferreira – neste campo de concentração.

Dachau
Dachau foi o primeiro dos campos de concentração nazis e, por isso, o modelo que todos os outros deveriam seguir. Fundado a 22 de Março de 1933, apenas algumas semanas depois de Adolf Hitler ter sido nomeado Chanceler (30 de Janeiro de 1933), tinha como função inicial receber prisioneiros políticos, mas a guerra tornou a sua população muito mais diversificada. As contas do Memorial do campo indicam que 200 mil pessoas de toda a Europa foram internadas em Dachau e nos seus subcampos entre 1933 e 1945. Destas, 41.500 morreram.
Dachau foi o destino de pelo menos dois transportes franceses, que partiram de Compiègne, em 1944. Um deles, que deixaria a França a 2 de Julho de 1944, ficou conhecido como o Comboio da Morte, pelas condições dramáticas a que os prisioneiros foram sujeitos, e que deixariam sem vida, ao longo do percurso, cerca de 520 dos 2152 passageiros iniciais. Um dos que não resistiu à viagem foi o único português a bordo deste transporte. Bernardino da Silva, nascido a 17 de Março de 1923, em Santo Tirso, morreu algures entre 2 e 5 de Julho, no trajecto entre Compiègne e Dachau. Tinha 21 anos.

No transporte que deixou Compiègne a 18 de Junho de 1944, com 2143 pessoas, seguiam quatro portugueses: Acácio Pereira, Manuel Pires, André ou Mário de Sousa e Joaquim Sequeira. O campo nazi, nas imediações de Munique, foi também o destino final do “Comboio Fantasma”, que partiu de Bordéus a 9 de Agosto de 1944. Com 656 pessoas a bordo, este transporte levava nove portugueses, o maior número de nacionais num comboio de França com destino aos campos de concentração. Naquele mês de Agosto chegaram, por isso, a Dachau, Américo da Costa, Delfim da Cunha, António Ferreira, Casimiro Martins, Alberto Mateus, José Agostinho das Neves, José Oliveira Varjia (muito provavelmente um erro), Tomás Vieira e Abel Carvalho. Um décimo homem, João Fernandes, também nasceu em Portugal, mas está identificado como francês. Para Dachau seguiu ainda um comboio que saiu de Lyon a 29 de Junho de 1944, com dois portugueses a bordo – Francisco Barbosa da Costa e Alberto de Oliveira, nascido a 27 de Março de 1893. Pelo menos cinco destes portugueses haveriam de morrer em campos de concentração nazis.
A tentativa desesperada dos alemães de destruir todos os vestígios documentais do que acontecera no campo, a proximidade das tropas norte-americanas e um ataque da Resistência alemã, auxiliada por antigos prisioneiros de Dachau que tinham conseguido escapar a uma das marchas forçadas, impedem que uma ordem para a aniquilação total dos prisioneiros seja cumprida e a 29 de Abril de 1945, um domingo, os norte-americanos entram finalmente no campo. No livro Le Bataillon d’Eysses, editado pela Amicale dos Antigos Detidos Patriotas da Central de Eysses, em 1962, reproduz-se o relato de um prisioneiro sobre esse momento: “Uma calma enganadora plana sobre o campo, onde reina a inquietude. A espera prolonga-se. De súbito, às 17h34 o primeiro jipe entra no campo. Já era tempo. Uma divisão SS devia queimar o campo com um lança-chamas na noite de domingo para segunda-feira. As tropas americanas, prevenidas pelos prisioneiros que tinham fugido, tinham antecipado em um dia o seu avanço. Apesar da ordem para permanecermos nos blocos, instala-se a confusão total. Somos livres!”.

Flossenbürg
Flossenbürg começou a ser construído em Maio de 1938 e a sua localização foi escolhida pelas SS pela proximidade das pedreiras de granito que se encontravam nas colinas em torno de pequena localidade no Sul da Alemanha. No final desse ano, Flossenbürg tinha já 1500 detidos.
Os primeiros prisioneiros de Flossenbürg eram alemães, considerados “criminosos” ou “associais” e no final de 1938 chegaram os primeiros prisioneiros políticos. Após o início da guerra, o campo e os seus subcampos de trabalho, que se espalhavam até à Checoslováquia, receberam prisioneiros de toda a Europa. Segundo os dados do Memorial do campo, até Maio de 1944, as SS e a Gestapo autorizaram a deportação de 22 mil homens para o campo. As condições iriam deteriorar-se muito no último ano de guerra, quando ali chegaram mais 78 mil prisioneiros, incluindo 16 mil mulheres. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas tenham morrido em todo o sistema prisional sob a alçada de Flossenbürg.
Por lá passaram, pelo menos, quatro portugueses. Um deles, António Ferreira, nascido a 22 de Março de 1895, em Vila Real, tinha chegado a Dachau, a 28 de Agosto de 1944, a bordo do “Comboio Fantasma”, e foi transferido, alguns meses depois, para Flossenbürg, onde chegou a 2 de Fevereiro de 1945. O seu número de prisioneiro era o 45.484. Ferreira esteve, muito provavelmente, no subcampo de Leitmeritz, que entre 24 de Março de 1944 e 8 de Maio de 1945 recebeu mais de 16 mil prisioneiros. O português não permaneceu ali muito tempo, uma vez que a 7 de Março de 1945, pouco mais de um mês depois de chegar a Flossenbürg foi transferido para o campo de Bergen-Belsen.

PD-USGOV-MILITARY-ARMY.
Manuel Alves, nascido a 29 de Novembro de 1910, em Vila Verde, foi deportado de França para o campo de concentração de Buchenwald, em Janeiro de 1944. Cerca de um mês depois foi transferido para Flossenbürg, tendo recebido o número de prisioneiro 6670. Manuel Alves foi enviado para o subcampo de Hradischko, a sul de Praga, a 3 de Março de 1944, e ali terá permanecido até à evacuação do campo, a 14 de Abril de 1945. A pé ou de comboio, os prisioneiros são encaminhados para Leitmeritz. Ao contrário de António Ferreira, cujo destino se desconhece, Manuel Alves terá sobrevivido à guerra.
Final diferente teve Alberto Oliveira, nascido a 27 de Março de 1893, no Porto. Deportado de França para Dachau em Junho de 1944, é transferido para Flossenbürg em 23 de Julho desse ano. Enviado para o subcampo de Leitmeritz, é reconduzido ao campo principal a 11 de Agosto. Com 41 anos, Alberto Oliveira, que era casado, morre no campo. O certificado de óbito indica que ele morreu às 7h20 do dia 21 de Setembro de 1944, vítima de insuficiência cardíaca.
Também José da Silva, sobre quem existe muito pouca informação, terá morrido em Flossenbürg, a 10 de Dezembro de 1944, depois de ter sido transferido para este campo a partir de Dachau. Desconhece-se quando é que o português foi deportado para a Alemanha.
As tropas norte-americanas entraram em Flossenbürg a 23 d Abril de 1945, encontrando 1500 prisioneiros em estado muito debilitado.

Mauthausen
O campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, foi criado em 1938. A sua localização, tal como acontecera com Flossenbürg ou Natzweiler-Struthof, foi decidida graças à presença de pedreiras nas imediações. Contudo, o principal objectivo deste campo foi, desde o início, a aniquilação dos prisioneiros e não o aproveitamento do seu trabalho por razões económicas. Esta situação só se iria alterar a partir de 1943, quando a falta de mão-de-obra e a necessidade de intensificar a produção de armamento, em unidades que estavam, entretanto, a ser transferidas para o subsolo, obrigaram a uma utilização cada vez maior dos prisioneiros para o trabalho forçado.
Das cerca de 200 mil pessoas que passaram por Mauthausen e pelos campos de trabalho que lhe estavam associados, estima-se que 100 mil morreram. O campo foi libertado pelos norte-americanos a 5 de Maio de 1945.
Pelo menos quatro portugueses passaram pelo campo de Mauthausen e dois morreriam ali. Tomás Vieira, nascido 7 de Março de 1890, em Albufeira, foi deportado para Dachau, a 9 de Agosto de 1944, no “Comboio Fantasma”, com oito outros portugueses. A 14 de Setembro desse ano foi transferido para o comando Ebensee de Mauthausen, uma unidade subterrânea de produção de armamento, a que os nazis deram vários nomes de código (Kalk/Calcário ou Zement/Cimento são apenas alguns) com o objectivo de disfarçar a sua função. Entre os campos satélite de Mauthausen era considerado como um dos que tinha piores condições, e uma das taxas de morte mais elevadas. O Livro dos Mortos do campo refere que Tomás Vieira morreu às 17h45 do dia 16 de Novembro de 1944. A causa de morte que lhe é atribuída, e que será, muito provavelmente, falsa, é broncopneumonia e problemas cardíacos.
BUNDESARCHIV BILD 192-334, KZ MAUTHAUSEN, GARAGENHOFEINFAHRT CC-BY-SA-3.0

Delfim Ribeiro da Cunha, deportado para Dachau no mesmo comboio de Tomás, também acabou por encontrar a morte no campo de Mauthausen, para onde foi transferido no mesmo dia que o seu companheiro. Casado e com dois filhos, Delfim tinha nascido a 1 de Março de 1887, provavelmente em Lousada (Lozade é a referência que aparece nos registos nazis). Não há dados que indiquem a causa de morte, mas sabe-se que o português morreu a 4 de Abril de 1945.
Os dois outros portugueses que passaram por Mauthausen conseguiram sobreviver-lhe. Um deles foi João Fernandes. Deportado de França, em Agosto de 1944, para Dachau, esteve cerca de um mês no campo de Mauthausen, antes de ser transferido para o campo de Natzweiler-Struthof.
Por fim, nos registos do ITS – International Tracing Service, surge ainda como tendo passado por Mauthausen Julien (Júlio?) Laranjo, nascido a 24 de Feveireiro de 1919, em São Tiago (ou Santiago). Deportado de França para Buchenwald num comboio que deixou Compiègne a 22 de Janeiro de 1944, Júlio foi transferido para Mauthausen um mês depois, a 22 de Fevereiro. Aparentemente, conseguiu sobreviver aos rigores do campo durante mais de um ano, tendo sido libertado a 5 de Maio de 1945, quando as tropas americanas ali entraram.

Natzweiler-Struthof
No campo de Natzweiller-Struthof, o único campo de concentração nazi instalado em França, estão elencadas as nacionalidades dos prisioneiros que ali morreram e nesta lista surge “1 Português”. Este cidadão, Emil Rolsa ou Rozsa, tinha, de facto, papéis portugueses, mas, ao que se sabe, não nasceu em Portugal nem alguma vez visitou o país. Os serviços do campo indicam à Revista 2 que Emil, nascido a 15 de Abril de 1894, chegou a Natzweiler-Struthof, na região da Alsácia, a 24 de Novembro de 1944, transferido do campo de Dachau. Tinha a categoria de “preso político”, com o número 43.954, e não sobreviveria muito mais do que um mês aos rigores do trabalho nos campos satélite para onde foi enviado. No livro Portugueses no Holocausto, Esther Mucznik também se refere a Emil Rozsa, identificando-o como húngaro, nascido em Budapeste.
Dois outros portugueses passaram pelos subcampos de Le Struthof, mas ambos sobreviveram.
O campo de Natzweiler-Struthof abriu a 21 de Abril de 1941, meses depois de, em Setembro de 1940, os alemães terem descoberto que as montanhas da região estavam cobertas de granito rosa. Além de fornecer mão-de-obra escrava para a indústria de guerra alemã, o campo também foi palco de experiências, relacionadas com o tifo e o uso de gás pimenta e fosfeno.
Com o avanço das tropas Aliadas em território francês, os nazis decidiram evacuar Natzweiler-Struthof em Setembro de 1944, pelo que quando os norte-americanos chegaram ao campo, a 23 de Novembro de 1944, o encontraram quase vazio. O mesmo aconteceu com os cerca de 70 subcampos de Le Struthof, para onde cerca de 35 mil deportados tinham sido enviados nos anos anteriores sem sequer passar pelo campo principal.
Foi, provavelmente, o que aconteceu com os dois portugueses João Fernandes e Joaquim Sequeira. De João Fernandes sabe-se que nasceu numa localidade identificada como Gondariz, a 5 de Junho de 1911. Nos documentos que o referem tanto aparece identificado como português como francês, o que pode ser uma mera confusão, por ele ter sido detido em França ou, mais provavelmente, porque terá adquirido a nacionalidade francesa depois de emigrar para aquele país. João foi enviado para Dachau no “Comboio Fantasma”, que deixou Bordéus a 9 de Agosto de 1944, e passou os meses seguintes a ser enviado de campo para campo. Depois de estar cerca de um mês em Dachau passou por Mauthausen também durante um mês e, a 18 de Outubro de 1944, foi transferido para o subcampo de Schomberg, incluído na rede de Natzweiler-Struthof. Há informações de que João Fernandes sobreviveu à guerra e regressou a França, em Maio de 1945.
Joaquim Sequeira também passou por um dos campos satélite de Natzweiler-Struthof, o de Markirch, por um curto período. Deportado de França para Dachau, em Junho de 1944, o português é transferido para Markirch a 19 de Julho e aí permanece até 4 de Outubro, quando é reenviado para o universo de Dachau – primeiro para o subcampo de Allach e depois para Trostberg. Joaquim, casado e com um filho, sobreviveu à sua passagem pelos campos de concentração, e regressou a Lacapelle Biron, onde vivia.

Neuengamme
Muito próximo da cidade de Hamburgo, o campo de concentração de Neuengamme começou a ser construído em 1938, inicialmente como um campo satélite de Sachsenhausen, nas instalações de uma antiga fábrica de tijolos. Rapidamente, contudo, se autonomizou, tornando-se o maior do noroeste alemão e criando a sua própria rede de subcampos, sobretudo ligada à produção de armamento e à construção.
Pelo complexo de Neuengamme passaram mais de cem mil prisioneiros de toda a Europa, dos quais 42.900 não sobreviveram às condições de vida e de trabalho classificadas como “assassinas”.
Os subcampos de Neuengamme começaram a ser esvaziados a 24 de Março de 1945 e o campo principal recebeu ordem de evacuação a 19 de Abril. Quando os britânicos entraram em Neuengamme, a 2 de Maio, relataram ter encontrado “um campo vazio”.
O português Casimiro Martins morreu em Neuengamme, para onde fora transferido, depois de 52 dias em Dachau, a 22 de Outubro de 1944. Casimiro tinha 38 anos quando morreu, às 7h50 de 18 de Dezembro de 1944, alegadamente de uma infecção no intestino.

Nos registos do campo de concentração não existem dados sobre Casimiro. Os dois únicos prisioneiros identificados como portugueses pelos responsáveis pelo Memorial de Neuengamme são um homem apresentado como Dominique Dagougna (provavelmente Domingos da Cunha), nascido em 27 de Dezembro de 1904, que ia a bordo de um transporte que saiu de Compiègne a 21 de Maio de 1944. O outro era um companheiro do mesmo transporte, identificado como Manuel Barrera-Gornez (provavelmente Manuel Barreira Gomes), nascido a 9 de Fevereiro de 1899. Em ambos os casos, desconhece-se o destino.
Curiosamente, o campo também não tem qualquer indicação sobre Paulo da Silva, nascido a 10 de Janeiro de 1908, em Vinha, e que seguia a bordo do mesmo transporte. Entre os pertences de prisioneiros recolhidos em Neuengamme e guardados pelo ITS está um relógio que pertenceu a este português, sobrevivente da guerra. A lista de bens recolhidos em Neuengamme inclui também um relógio e uma aliança em ouro de Manuel João – outro passageiro do mesmo transporte. Apesar de ter nascido em Loulé, a 31 de Dezembro de 1891, Manuel João aparece identificado como francês, talvez por se ter naturalizado. João sobreviveu a Neuengamme mas não resistiu a Bergen-Belsen, para onde foi transportado, tendo morrido já depois da libertação do campo.
Outro passageiro do mesmo transporte de 21 de Maio, identificado como francês mas nascido em Lisboa, a 8 de Agosto de 1888, é Richard (Ricardo) Lopes. Ricardo foi um dos que também não sobreviveu ao inferno de Bergen-Belsen e que ali morreria, já depois da libertação do campo.
As informações relativas a Francisco Ferreira e a Maria Barbosa também indicam que ambos passaram por Neuengamme. Ele já passara anteriormente pelo campo de Sachsenhausen e seria posteriormente transferido para Bergen-Belsen, onde terá morrido. Maria Barbosa foi transferida para Neuengamme depois de ter passado por Ravensbrück. Maria também seria levada para Bergen-Belsen, onde conseguiu sobreviver, tendo sido repatriada para França a 17 de Maio de 1945.

Ravensbrück
Situado a cerca de 90 quilómetros a norte de Berlim, o campo de Ravensbrück foi criado exclusivamente para mulheres. As primeiras prisioneiras chegaram ali em Maio de 1939, e eram, sobretudo, “associais” transferidas do campo de concentração de Lichtenburg, que encerrou na mesma altura.
Apesar de marcadamente feminino, Ravensbrück haveria de mudar ao longo dos anos de guerra – em Abril de 1941 foi criado na sua área um pequeno campo para homens e em Junho de 1942 abriu um campo para jovens, o Uckermark. A partir de meados de 1944, e graças à sua posição geográfica, Ravensbrück foi sendo inundado de prisioneiros, forçados a abandonar os campos que iam caindo nas mãos dos Aliados. As condições degradaram-se de forma acentuada e a exterminação em massa de prisioneiros passou a fazer parte da rotina do campo.

Por este campo passaram duas portuguesas, deportadas de França a 31 de Janeiro de 1944: Maria Barbosa (27.864) e Maria d’Azevedo (27.650). O grupo de mulheres incluído neste transporte ficou conhecido como as “27.000”, por causa dos números de prisioneiras que lhes foram atribuídos, entre 27.030 e 27.988.
Apesar dos trabalhos forçados, das doenças e da fome que sempre tiveram de enfrentar, os detidos de Ravensbrück iriam ver a sua vida mudar drasticamente com a sobrelotação do campo resultante da chegada de milhares de outros prisioneiros. “Nos últimos meses de existência, o sistema concentracionário enfrenta novas dificuldades. Este período é caracterizado pelo caos absoluto em que a pouca força que resta é posta ao serviço de uma barbárie calculada”, afirma Pierre-Emmanuel Dufayel no livro Un Convoi de Femmes, sobre o transporte em que seguiram as duas portuguesas.
Cerca de 200 mil pessoas (132 mil das quais eram mulheres e crianças) passaram pelo sistema de Ravensbrück. O campo seria libertado pelo Exército Vermelho a 30 de Abril de 1945.

Sachsenhausen
Sachsenhausen, às portas de Berlim, foi construído em 1936 e considerado como o campo perfeito. Mais de 200 mil pessoas foram ali detidas e muitos milhares terão morrido.
O local serviu também como local privilegiado para “treinar” futuros comandantes de outros campos de concentração, como Rudolf Hoess, que viria a liderar Auschwitz. Na sua autobiografia Comandante de Auschwitz, Hoess recorda como foi transferido de Dachau para Sachsenhausen, a 1 de Agosto de 1938, e como se tornou responsável pelo pelotão de fuzilamento, tendo assistido a execuções quase diárias de prisioneiros após o início da guerra, a 1 de Setembro de 1939. Nessa mesma noite, aliás, Hoess presidiu à primeira execução em tempo de guerra. “Era um comunista que se recusara a continuar a trabalhar na fábrica Junkers, em Dessau.”
Sobre o campo, Hoess diz ainda: “Se Dachau era predominantemente vermelho, porque tinha sobretudo prisioneiros políticos, Sachsenhausen era verde”. O oficial referia-se à cor dos triângulos identificativos colocados nas vestes dos prisioneiros e em que o verde se referia aos “criminosos”.
Há indicações de que pelo menos dois portugueses passaram pelo campo de Sachsenhausen. De acordo com a Fundação para a Memória da Deportação, Francisco Ferreira, nascido em Guimarães a 13 de Outubro de 1916 esteve em Sachsenhausen, antes de ser enviado para os campos de concentração de Neuengamme e Bergen-Belsen, onde terá morrido.
DOMÍNIO PÚBLICO, DISPONIBILIZADA PELO AUTOR
Inácio Augusto Anta é o outro. A sua história é resumida no livro Salazar Portugal e o Holocausto, de Irene Flunser Pimentel e Cláudia Ninhos. Aí, conta-se que o português, formado na Escola do Exército, saiu de Portugal em 1936, para se dirigir a Paris. Contudo, havia de parar em Barcelona, onde casou. O relato da história de Inácio Augusto Anta, feito a partir de um artigo censurado, publicado no jornal O Século, em 1945, diz que o militar perderia o filho de seis meses na fuga através dos Pirenéus, após a derrota do Exército Republicano, acabando por se sediar em Bordéus, onde se envolveria com a Resistência. Detido pela Gestapo, Inácio seria enviado para Sachsenhausen, onde contraiu tuberculose e foi morto na câmara de gás.
Não há registo de Inácio Augusto Anta na lista de transportes franceses para os campos de concentração da Fundação para a Memória da Deportação, mas há uma referência a um Ignácio Anta Gomes, nascido a 5 de Abril de 1906, sem que seja indicado como foi deportado para a Alemanha. Não se sabe se este será o mesmo Inácio Augusto Anta já referido e a historiadora Cristina Clímaco também não sabe se alguma destas pessoas é o mesmo Inácio Anta que ela refere no artigo Nos Campos de Sudoeste de França (1939-41), sobre o internamento de portugueses.
Neste artigo, Cristina Clímaco refere-se a Inácio Anta como estando, primeiro, em San Juan de las Abadesas, a comandar um grupo de “mais de três centenas” de pessoas, aquando da fuga que se seguiu à queda de Barcelona, durante a Guerra Civil Espanhola. Depois, Anta é identificado no campo de internamento francês em Argelès-sur-Mer, onde chefiou o grupo português aí colocado. “Contestado pelos comunistas, acabará por abandonar o campo português e instalar-se no espanhol. Perco-lhe aí o rasto”, admite a historiadora à 2.
O campo de Sachsenhausen foi libertado a 22 de Abril de 1945 por tropas soviéticas e polacas.

Cem anos depois, o passado continua a assombrar Sarajevo

por A-24, em 30.06.14
Num país dividido como a Bósnia-Herzegovina, onde o passado continua a assombrar o presente, as comemorações dos cem anos da Primeira Guerra Mundial são assunto delicado: tanto tempo depois, os olhares cruzados sobre Gavrilo Princip, o sérvio bósnio que assassinou o arquiduque Francisco Fernando a 28 de Junho de 1914, assim precipitando a Europa num conflito que acabaria por se estender ao resto do mundo, mostram que as feridas da sangrenta desintegração da Jugoslávia continuam por cicatrizar. Os concertos que terão lugar na capital, Sarajevo, e em Visegrad, ali assinalando a data que mudou para sempre o século XX, são um sinal de que continua a ser impossível falar do passado a uma só voz.

Em Sarajevo, onde o herdeiro ao trono dos Habsburgos foi abatido a tiro numa manhã do Verão de 1914, a Filarmónica de Viena vai tocar Haydn, Schubert, Brahms e Ravel, em memória do crime que deu início à guerra e encerrou uma era de paz e progresso na Europa. Paralamente, em Visegrad, a principal orquestra da Sérvia interpretará o Concerto de Verão de Vivaldi num tributo a Gavrilo Princip, que os sérvios continuam a ver como um herói cujo acto de bravura deu a machadada final em séculos de ocupação dos Balcãs. A organização está a cargo do cineasta Emir Kusturica. 

Os líderes da Sérvia e dos sérvios bósnios recusaram-se a participar nas comemorações organizadas em Sarajevo, argumentando que a maioria muçulmana da Bósnia e a maioria católica da Croácia estão decididas a impor que Princip fique para a História como um terrorista nacionalista, assim culpando os sérvios em geral pelas guerras que abriram e fecharam o século XX na Europa. Contrariando essa visão, os sérvios vão inaugurar em Visegrad um mosaico representando Princip e os seus colaboradores; um grupo de actores reconstituirá o assassinato de Francisco Fernando e o julgamento do seu jovem assassino de 19 anos, que morreu na prisão, vítima de tuberculose, meses antes do fim da Primeira Guerra Mundial.
O assassinato do herdeiro ao trono dos Habsburgos, disse Kusturica à Reuters, "iniciou a libertação da servidão e da escravatura". "Não vejo por que razão toda a gente haveria de assinalar o dia no mesmo lugar quando as visões sobre este acontecimento são tão desencontradas", reforçou.
Do outro lado da barricada, a mensagem é de união: em Sarajevo, as comemorações terminarão com um musical ao ar livre que junta 280 artistas de toda a Europa, incluindo sérvios, e cujo título, esperançoso, é A Century of Peace after the Century of Wars ("Um século de paz depois do século das guerras"). "Gostaríamos de abrir simbolicamente o novo século com um gesto artístico sobre a paz e o amor", explicou à Reuters o encenador Haris Pasovic. "Representamos uma geração mais nova, comprometida com a mesma ideia básica - a vitória da paz e da vida sobre todas as coisas más que aconteceram", acrescentou o estudante de teatro sérvio Uros Mladenovic.
O Presidente austríaco, Heinz Fischer, encabeça a lista de dignitários que assistirão às comemorações do centenário da Primeira Guerra Mundial na capital bósnia. Os festejos são maioritariamente patrocinados pela França. Com a unidade e a prosperidade da Europa ameaçadas pela crise económica e social, os líderes dos 28 Estados-membros da União Europeia reúnem-se na próxima quinta-feira, dia 3, em Ypres, uma cidade que é sinónimo da morte e do sofrimento causados pela guerra de 1914-1918.

Uma estátua para um assassino
O concerto que a Filarmónica de Viena dá este sábado na Bósnia terá lugar na antiga Câmara Municipal de Sarajevo, onde na manhã de 28 de Junho de 2014 Francisco Fernando e a mulher, Sofia, assistiram a uma recepção pouco antes do atentado fatal.
Um mês depois, o exército austro-húngaro atacava a Sérvia e as grandes potências europeias entraram no conflito. Mais de dez milhões de soldados morreram à medida que os impérios se desmoronavam e o mapa do continente se redesenhava radicalmente.
Reconvertido em Biblioteca Nacional em 1949, o edifício neo-mourisco ardeu em 1992 durante o cerco que manteve a cidade sitiada ao longo de 43 meses. Quase dois milhões de livros foram então destruídos; uma placa entretanto colocada no local denuncia a culpa dos "criminosos sérvios". Meticulosamente restaurado, reabriu em Maio e vai acolher o seu primeiro evento este sábado. Mas os sérvios são sensíveis a qualquer tentativa de estabelecer ligações entre as guerras de 1914-1918 e de 1992-1995.
"Ponderei ir a Sarajevo", declarou o primeiro-ministro sérvio Aleksandar Vucic. "Mas era suposto passar junto de uma placa que refere os 'agressores sérvios fascistas'. Lamento, mas com todo o devido respeito não posso fazer uma coisa dessas."
Muitos bósnios e croatas recordam a ocupação austro-húngara como um período de progresso e vêem em Princip um sérvio nacionalista movido pelas mesmas ambições territoriais que estiveram anos depois por trás das limpezas étnicas da década de 1990. Na sequência da Primeira Guerra Mundial, consideram, o domínio austro-húngaro foi substituído pelo domínio de Belgrado, no contexto do então criado reino da Jugoslávia.
Depois da Segunda Guerra Mundial, e sob o regime socialista jugoslavo, Princip foi oficialmente reabilitado como um combatente pela libertação de todas as nações e de todas as fés unidas por Tito. Mas a desintegração da Jugoslávia, que se pulverizou entretanto em sete novos estados, quebrou qualquer hipótese de unanimidade acerca do seu papel na História. A guerra, fomentada pela Sérvia e pela Croácia, provocou a morte de cem mil pessoas, na sua grande maioria bósnios. Até hoje, continuam a ser descobertas valas comuns.
A casa natal de Princip, no Noroeste da Bósnia, foi demolida, mas foi reconstruída este ano pelos sérvios, que planeiam reabri-la como museu. E entretanto, na metade Leste de Sarajevo, de maioria sérvia, será inaugurada uma estátua do assassino de Francisco-Fernando. Os acordos de paz que selaram o fim da Guerra dos Balcãs dividiram a Bósnia em duas regiões altamente autónomas, distribuindo o poder por facções étnicas antagónicas num sistema que os críticos acreditam apenas ter cimentado as divisões anteriores. Os líderes políticos continuam a enfatizar as diferenças, apesar de uma aparente disponibilidade acrescida entre os bósnios para seguir em frente.
Perante a polémica das comemorações do centenário da Primeira Guerra Mundial, o líder bósnio sérvio Milorad Dodik, que frequentente agita o fantasma de uma secessão, disse aos jornalistas: "Tanto no sofrimento como nas celebrações, sempre estivemos em lados opostos. Isso diz muito acerca do passado da Bósnia, mas também acerca do seu presente." PÚBLICO

Portugueses na luta pela Crimeia

por A-24, em 12.06.14



Via Da Russia


Gomes Freire de Andrade
Nos últimos meses, muito se tem falado da Crimeia, península da Ucrânia que foi recentemente anexada à força pela Rússia. Moscovo baseou os seus direitos no facto de ter conquistado esse território à Turquia há mais de 200 anos e ele ter sido ilegalmente entre à Ucrânia pelo líder comunista Nikita Khruschov em 1954.
É verdade que o Império Russo sacrificou milhares de homens para conquistar a Crimeia e a parte meridional da Ucrânia, pois permitiu-lhe ganhar posições nas costas do Mar Negro.
Como era costume nessa altura, nas campanhas contra os turcos participavam militares estrangeiros, principalmente oficiais de alta competência. Por exemplo, nas campanhas realizadas entre 1788 e 1791, participaram dois ilustres militares portugueses que se cobriram de glória: Gomes Freire de Andrade e Manuel Inácio Pamplona Côrte-Real.
Sob o comando do Marechal de Campo e Príncipe Potemkin, o sargento-mor Gomes Freire de Andrade distinguiu-se nas batalhas nas planícies do Danúbio, na Crimeia e no cerco de Otchakov, no sul da Ucrânia. Pela sua valorosa atuação, Catarina II, imperatriz da Rússia, promoveu-o a tenente-coronel em 1790 e a coronel do Regime de Minas em 1791, concedendo-lhe ainda a Ordem de S. Jorge e uma espada de honra.
A 28 de abril de 1789, Francisco José de Horta Machado, embaixador de Portugal em São Petersburgo, escrevia para a corte portuguesa: “Gomes Freire de Andrade entrou no número dos que receberam a Ordem Militar de S. Jorge das mãos da imperatriz. Com que trará de aqui por diante no seu vestido um sinal de ter sido bravo... Quando agradeci ao Marechal Príncipe Potemkin a boa conta que devia ter dado do meu compatriota, e que lhe tinha conseguido esta distinção, respondeu-me: Monsieur Freire serviu perfeitamente bem”.
A 24 de setembro do ano seguinte, o militar português volta a ser premiado pela sua bravura em combate. Francisco Xavier de Noronha Torresão, encarregado da correspondência da Legação de Portugal em S. Petersburgo, comunicava para Lisboa: “O Comendador Gomes Freire de Andrade recebeu ontem uma espada de ouro, com a inscrição: “Pelo Seu Valor”, que Sua Majestade Imperial lhe mandou dar pelo Príncipe de Nassau. Faz gosto ouvir os elogios que não só os chefes, mas os seus companheiros, fazem da bravura, do zelo e da atividade do Comendador Gomes Freire Andrade”.


Manuel Inácio Martins Pamplona Côrte-Real 
Manuel Inácio Martins Pamplona Côrte-Real entrou ao serviço da Rússia em agosto de 1784, sendo nomeado tenente do Batalhão de Granadeiros de Kiev. Em abril de 1790, quando já tinha sido promovido a primeiro major, foi enviado para a Flotilha a Remos do Negro, onde participou nos combates contra os turcos, nomeadamente em operações nas margens do Danúbio e na conquista de Ismail, que os turcos tinham transformado numa fortaleza inexpugnável.
“Ele comportou-se como um oficial bravo, valoroso, inteligente e laborioso”, escreveu o general Iossip Ribas na certidão passada ao oficial português.
Outro conhecido general russo, Alexandre Suvorov, destacou também a bravura do primeiro major Pamplona na tomada de Ismail, tendo sido por isso condecorado com a Ordem de São Vladimir (4º grau com fita).

Mais tarde, este militar português foi agraciado com o título de conde de Subserra e foi ministro de D. João VI.