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A-24

Sobre Robert Enke

por A-24, em 19.08.10

"Suponho que é o meu destino que tudo na minha carreira tenha de ser estranho. Às vezes, desejava que tivesse sido um pouco mais fácil." Infelizmente, quando Robert Enke disse isto ao jornalista Ronald Reng, citado pela revista FourFourTwo, só havia três pessoas capazes de ler nas entrelinhas: ele próprio [o guarda-redes], a sua mulher, Teresa, e o seu psiquiatra. No final da tarde da última terça-feira, o antigo jogador do Benfica estacionou o carro a poucos metros da linha férrea, deixou a carteira no banco do passageiro e caminhou uma centena de metros junto aos carris antes de saltar para a frente de um comboio que, em Neustadt am Rübenberge, perto de Hanôver, fazia, a 160 quilómetros por hora, a ligação entre Hamburgo e Bremen. O suicídio do atleta de 32 anos aconteceu não muito longe do cemitério onde está enterrada a sua filha e deixou o incrédulo futebol alemão com uma pergunta: porquê?
Enke, revelou a sua mulher, Teresa, sofria de "graves depressões" há muitos anos, especialmente desde 2003, problema que o casal tentou superar com terapia. "Quando ele estava mais depressivo eram alturas muito difíceis, porque não tinha motivação nem qualquer esperança de melhorar." O guarda-redes "sofria de depressão e de medo de falhar", acrescentou o médico Valentin Markser. O psiquiatra, que tratava há seis anos o guarda-redes do Hannover 96, diagnosticou-lhe uma angústia aguda perante o receio de errar e revelou que Enke recusou tratamento no próprio dia em que acabou com a vida, dizendo que se sentia bem. Chegar a uma das melhores selecções do mundo não bastou, nem ser eleito o melhor na sua posição no campeonato. No domingo, 49 mil pessoas viram-no empatar no estádio de Hanôver com o Hamburgo (2-2), três dias depois 35 mil participavam num desfile fúnebre pelas ruas da cidade.
O amor não basta
"Tentei dar-lhe perspectivas e esperança, dizia-lhe que nem tudo era mau, que o futebol não era tudo, que havia coisas belas na vida, mas não resultou. Pensámos que conseguiríamos com amor, mas às vezes o amor não basta", disse a viúva. No bilhete de despedida que deixou, Enke pediu desculpa aos familiares e aos médicos por lhes ter mentido sobre o seu espírito nos últimos dias. Os seus companheiros de clube e de selecção desconheciam-lhe a debilidade emocional. Ele sempre escondeu o problema, por medo de perder o futebol e a filha Leila, adoptada em Maio deste ano.
Nascido em 24 de Agosto de 1977, em Jena, na antiga República Democrática Alemã, Enke jogou no Jena Pharm, no Carl Zeiss Jena e no Borussia Mönchengladbach antes de se transferir em 1999 para o Benfica, ao qual chegou como titular da selecção sub-21 da Alemanha. O argentino Bossio parecia partir na frente, mas os reflexos e a qualidade do jovem alemão, que mostrou uma obsessão em aprender português, rapidamente o impuseram como substituto de Michel Preud"Homme. "Recordo dele a serenidade, a simpatia, a educação, o profissionalismo, as suas preocupações de carácter social e não só", referiu, à Lusa, José Mourinho sobre Enke, o guarda-redes da primeira equipa orientada pelo português como treinador principal.
O alemão, que tinha a leitura como um dos seus grandes hobbies, saiu de Portugal deixando uma óptima impressão (como futebolista e pessoa) e o sentimento era recíproco (regressou muitas vezes e chegou a ter planos de passar cá o próximo Natal).
Grande defensor dos direitos dos animais, Enke tinha praticamente um canil na sua residência em Lisboa. "Não resistia quando via um cão abandonado ou esfomeado e recolhia-o", afirmou Toni, também seu antigo técnico no Benfica, destacando a "enorme sensibilidade" do ex-atleta. Foi por esta altura, por causa do Mundial 2002 realizado na Coreia do Sul, que o guardião protagonizou uma campanha da PETA: o cartaz mostrava o alemão com os seus cães e a frase "Não pontapeie o cão, pontapeie a bola!".
Fuga da Turquia


Apesar de três épocas sem sucesso colectivo, Enke brilhou ao ponto de ser cobiçado pelo Manchester United e outros clubes, mas preferiu o Barcelona. Foi um erro. Pouco jogou na equipa catalã, que o emprestou ao Fenerbahçe, no qual teve a experiência negativa mais marcante da sua carreira. Sofreu três golos na estreia (derrota 0-3 em casa com o Istanbulspor) e foi assobiado pelos adeptos da equipa de Istambul, que ainda lhe arremessaram vários objectos. Enke saiu da Turquia nessa mesma noite, recusou voltar a actuar pelo Fenerbahçe e ficou sem jogar durante meia época. "Senti-me desajustado por causa da paixão exagerada dos adeptos e do clube. Senti-me absolutamente só e profundamente triste."
Os falhanços no Barça e no Fenerbahçe marcaram-no. "As fases depressivas eram difíceis, mas já tínhamos passado fases muito complicadas em Barcelona e Istambul e conseguimos sair delas com a ajuda do doutor Markser", disse Teresa. Em 2004, Enke regressou à Alemanha, para o Hannover 96. As coisas começaram a compor-se no plano profissional, mas não a nível pessoal. A filha nasceu com uma doença cardíaca e Enke passou a viver entre o campo de treinos e o hospital. "A Lara, a minha mulher e eu sentados na cantina deserta do hospital na véspera de Natal a comer salmão com batatas" - foi uma das memórias que não lhe saíram da cabeça. Depois de três operações ao coração, Lara, de três anos, morreu em 2006, quando recuperava de uma intervenção cirúrgica aos ouvidos.
Enke sempre foi uma grande esperança para a baliza da selecção alemã, mas, com Oliver Kahn e Jens Lehmann a taparem-lhe a ascensão, só em 2007, aos 29 anos, teve a primeira internacionalização. Este ano fixou-se finalmente como n.º 1 da Mannschaft, mas entretanto um vírus no estômago impediu-o de participar nos jogos mais decisivos da qualificação para o Mundial 2010, no qual o seleccionador Joachim Löw já tinha dito que deveria estar presente. Se Kahn e Lehmann eram loucura, Enke, ávido leitor, era delicado, a simpatia em pessoa. Uma estrela do futebol com os pés na terra, única, que ia para os treinos em Hanôver de comboio, no meio dos cidadãos comuns. Ainda mais única, afinal, do que se julgava.