Quando os "bons" também decapitam
por A-24, em 22.09.14
Há duas semanas o Channel 4 britânico emitiu uma grande reportagem (Nigeria's Hidden War: Channel 4 Dispatches) que teve muito pouca repercussão em Inglaterra e no resto do mundo. Entre muitas atrocidades e situações extremas, a reportagem televisiva mostrava um grupo de soldados nigerianos a cortar a garganta a vários jovens numa aparente ação de retaliação pela decapitação de militares nigerianos por parte do Boko Haram, o grupo terrorista que professa o radicalismo islâmico e que espalha o terror na Nigéria, o país mais populoso de África e o maior produtor de petróleo do continente.
O Boko Haram não é desconhecido no ocidente, sobretudo desde que decidiu raptar em série centenas de raparigas, pelo simples facto de irem à escola. As atrocidades do Boko Haram são imensas e atraem com facilidade a nossa atenção. Mas a verdade é que muitas ações de retaliação do exército nigeriano não têm qualquer repercussão entre nós, como esta reportagem do Channel 4 demonstrou, ao não ter tido qualquer efeito público. Aliás, a Amnistia Internacional tem tentado em vão chamar a atenção internacional para a "guerra suja" que devasta a Nigéria, mas só as brutalidades do Boko Haram é que são alvo de atenção.
Porque é que ações "idênticas" nos chocam ou nos são relativamente indiferentes? A questão é muito complexa e exige uma resposta filosófica ou moral, que não arrisco dar. Mas todos sabemos que as coisas são assim. No Expresso, por exemplo, sempre demos enorme atenção nas páginas do Internacional aos avanços e às loucuras do Boko Haram e pouco escrevemos sobre a resposta do exército nigeriano. Mesmo nos órgãos de comunicação social, acaba sempre por haver um lado bom ou menos mau num conflito. Quando de um lado da barricada estão grupos com os "valores" do Boko Haram, a escolha é quase automática. Gente que rapta crianças, que fuzila e decapita em série, que professa um regresso à idade das trevas, que despreza a democracia e exclui a liberdade religiosa ou qualquer direito elementar, não merece qualquer complacência.
Foi assim na Nigéria, no Mali ou no Sudão. Mas não foi assim na Síria, por uma razão extraordinariamente simples. Numa primeira fase da guerra todas as atrocidades foram atribuídas ao regime de Assad, que não hesitou em dizimar cidades ou em usar armas químicas, banidas por todos os acordos internacionais. À medida que a guerra se prolongou, a atenção virou-se a espaços para os milhões de refugiados, uma crise que pouco comoveu a comunidade internacional. Só muito mais tarde é que se começou a dar atenção a um movimento com muitos meses: a tomada de assalto por extremistas sunitas do movimento anti-Assad. É difícil aceitar isto, mas foi o facto de Assad ser "o mau" que atrasou tanto o reconhecimento do perigo que o Estado Islâmico representava para o Ocidente.
Quem criou o Estado Islâmico percebeu isto desde o início. O maniqueísmo com que se olha para uma guerra civil beneficiou-o por muito tempo, conseguindo financiamento de países sunitas da região, como o Qatar ou a Arábia Saudita, de que o Ocidente tanto gosta. Ao longo desse período em que pouco foram notados, os terroristas do Estado Islâmico já usavam as suas armas de sempre nas redes sociais: vídeos com atrocidades, mensagens e fotografias sobre a sua cavalgada heroica, relatos de como são bem tratados os que se submetem (e convertem) ao Estado islâmico e o fim que têm os que o desafiam ou são considerados apóstatas.
Os vídeos de decapitações, de fuzilamentos, de lapidações ou crucificações não são de agora. É por isso que defendo que não devem ser ignorados. Devem, isso sim, ser usados com cuidado, cortados nas suas partes chocantes e gratuitas, editados e explicados. É claro que a decapitação de James Foley elevou esta questão a um limite extremo, pela barbaridade, pela cobardia, pelo sotaque do verdugo e, sobretudo, pela proximidade da vítima. Foley é "um de nós", um ocidental que teve o azar de cair nas mãos de uns torcionários quando apenas estava a fazer o seu trabalho, absolutamente inofensivo.
A grande diferença dos dias de hoje não está na forma como jornais, televisões ou sites devem tratar este caso, mas na explosão da internet e das redes sociais. Em 2002 o jornalista Daniel Pearl foi decapitado no Paquistão, mas o vídeo pouco foi visto, apesar de ter sido notícia em todo o mundo. Dois anos depois, o vídeo da decapitação do empresário americano Nicholas Berg foi divulgado na Malásia, mas a sua visualização foi restrita. O que mudou entretanto não foi a brutalidade dos verdugos nem a natureza das vítimas, foi a força das redes sociais e dos sites de alojamento de vídeos. E mudou para toda a gente, para vítimas e atacantes, para quem está por perto ou do outro lado do mundo.
A sofisticação do estado Islâmico é evidente. Tem Apps oficiais (The Dawn of Glad Tidings ou simplesmente Dawn), tem gestores de redes sociais, adapta as hashtags até ao ponto em que são trends no twitter, tem contas sucessivas no youtube para nunca estar fora do ar e, em caso extremo, recorre a uma rede social chamada Diaspora onde os vídeos são literalmente impossíveis de serem retirados, porque ironicamente tem uma arquitetura pensada para escapar à censura dos Estados...
Ignorar a propaganda do Estado Islâmico não é uma boa opção. Podemos e devemos cortar partes chocantes e não repetir ad nauseam as imagens. Mas ignorá-las pode ter um efeito errado. É verdade que as imagens provocam o efeito pretendido ao espalhar o medo entre nós, mas não é menos verdade que os Estados Unidos e a União Europeia só acordaram para o estado Islâmico quando estas imagens chocaram os cidadãos dos seus países. Não é caso único, foi a queda do avião da Malasian Airlines que obrigou a União Europeia a deixar de ignorar que a Rússia estava a interferir no conflito ucraniano...
O maior desafio na reação à propaganda do estado Islâmico não está nas redações, mas nas redes sociais e motores de busca. As redações devem aprender a trabalhar perante uma ameaça tão sofisticada e tão bem organizada em todo o tipo de ações. Por exemplo, sabe-se agora que o célebre assalto do estado Islâmico ao Banco Central de Mossul não valeu nem de perto nem de longe os célebres 430 milhões de dólares que o Estado Islâmico divulgou.
Nas redes o desafio é muito mais complexo. O Youtube, o Facebook e o Twitter demoraram muito a responder à propagação do vídeo da decapitação de Foley. Foram muito lentos e ainda hoje os vídeos e as fotografias circulam. Num artigo no Financial Times, Zenyep Tufecki, da Universidade da Carolina do Norte, lembra que se o Estado Islâmico tivesse usado imagens não autorizadas de um concerto de Beyoncé, estas tinham sido imediatamente retiradas. Esta é a questão fundamental: qualquer imagem de Beyoncé, da Premier League ou da Formula 1 é retirada mais depressa das redes sociais que uma decapitação.
Este tema não fica por aqui. O Estado Islâmico vai estar entre nós muito tempo e vai bombardear os nossos espaços públicos, que hoje são os meios de comunicação social, mas, muito mais, as redes sociais. Um campo vasto que faz toda a diferença entre a quase indiferença da decapitação de Daniel Pearl em 2002 e a de Foley em 2014. E que faz toda a diferença entre as atrocidades do Estado islâmico e as do exército nigeriano. As redes sociais são muito assim, de modas e ondas avassaladoras. Lembram-se de Koni, que obrigava crianças a lutar ao seu lado no Uganda? Claro que não, isso já foi em 2012...