Os gajos porreiros
por A-24, em 23.12.13
Anda por aí uma lacrimejeirice pegada e politicamente correcta de homenagem às excelsas virtudes do comediante Ricardo Araújo Pereira, fazendo-se apelo a que se distinga, na sua dimensão de homem público, o actor talentoso do protagonista político equivocado.
A alma portuguesa é pródiga neste tipo de tolerância de salão, como se não fosse suficiente a um talento a sua existência para ser reconhecido, tornando-se necessária a exaltação enfática do mesmo, exercício que, em regra, visa mais a exaltação própria da virtude do tolerante que exalta, do que a verdadeira exaltação das qualidades do tolerado exaltado. Por via da regra, o exercício consiste no apelo a que se reconheçam as grandes qualidades profissionais e humanas do visado, deixando-se de lado outras suas facetas tidas como menos recomendáveis. Assim se compõe a moral social portuguesa dos “gajos porreiros”.
Isto faz-me lembrar um episódio recente da vida cultural brasileira, no qual algumas almas igualmente generosas pediram publicamente para se usar de compreensão absoluta para com os artistas vanguardistas da esquerda histórica do país, entre eles, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, ferozmente incomodados com a ameaça de publicação de algumas biografias não autorizadas das suas vidas exemplares, apelaram ao “visto prévio” das mesmas, o mesmo é dizer, à reposição da censura que eles tanto tinham combatido no passado, e logo agora em proveito próprio. A este propósito, retorquindo a tão inspirados apelos, um comentador sagaz aceitou o repto e declarou: “Eu não confundo e distingo muito bem a pessoa do Caetano Veloso da sua obra musical; e considero ambos uma merda!”.
Não direi o mesmo de Ricardo Araújo Pereira, que sempre me pareceu um comediante acima da média nacional, eventualmente só abaixo de um Herman José da era jurássica e dos clássicos dos anos 50 e 60. Mas parece-me que dar importância pública às suas posições políticas para lhe salientar os méritos profissionais é um exercício muito dispensável. As escolhas políticas de Araújo Pereira só poderão dizer respeito a quem o estime como actor se se confundirem com o exercício da sua profissão. Por mim, no momento em que ele começar a fazer humor comprometido com a luta de classes e com os malefícios do neoliberalismo, se isso alguma vez acontecer, mudarei imediatamente de canal. É só isto.