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A-24

Os emigrantes e a vergonha

por A-24, em 22.08.14
Alexandre Homem de Cristo

Há um lado negro na nossa relação com os emigrantes, com raiz no confronto com o Portugal de 1970. Somos um país que detesta olhar para o que foi e, quando tem de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

O homem do bigode, a mulher do buço, o pedreiro, a porteira, o peludo, o saloio, o burro, o devorador de bacalhau. Toda a gente, directa ou indirectamente, já se confrontou com os estereótipos que os estrangeiros têm dos portugueses, nomeadamente nos países que receberam imigração portuguesa nas décadas de 1970 e 1980 – França, Canadá, Luxemburgo, Suíça, entre outros. De certo modo, habituámo-nos a eles. Aprendemos a aceitá-los. Em muitos casos, já nem os achamos insultuosos; apenas castiços. Até porque, nessas décadas, essas caricaturas tinham uma ponta de verdade – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico. Foi, também, essa realidade que os nossos emigrantes levaram consigo. E foi esse o Portugal que deram a conhecer.

Mas, verdade seja dita, mesmo que levemos a coisa com alguma tolerância, já não gostamos de ser identificados com esses estereótipos. Afinal, parte dessa caricatura do povo português tem como efeito uma espécie de inferiorização social de nós, portugueses, face a eles, franceses, suíços ou ingleses. Uma inferiorização que, hoje, é particularmente injusta: em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus. E, consequentemente, as novas gerações de portugueses que se aventuram pelo mundo têm um perfil de qualificações muito superior ao da geração dos seus pais e avós. Portugal mudou. E os portugueses também.

Essa contradição, entre o que somos e como ainda nos reconhecem, sobressai na reportagem do Público, publicada há dias. Questionados os jovens portugueses que vivem no estrangeiro sobre esses estereótipos, os episódios vão todos no mesmo sentido: os portugueses que hoje emigram são cientistas ou engenheiros, mas continuam a ser vistos como trolhas. Ou seja, continuam a ser vistos como se fossem os seus pais.
Seria confortável acharmos que o preconceito que criticamos (e em que todos esses equívocos assentam) é exclusivo aos estrangeiros, que desconhecem a realidade portuguesa. Mas é um engano. A verdade é que esse preconceito está bem vivo entre nós e é aplicado a portugueses por portugueses. Esse é o lado negro da relação de Portugal com os seus emigrantes, que fingimos não existir e que não é mais do que o confronto entre dois países tão distantes como o Portugal de 1970 e o de hoje. Chocar de frente com o passado não é fácil. Sobretudo em Portugal: o país detesta olhar para o que foi e, quando tem mesmo de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

É Agosto. Carros de matrícula estrangeira percorrem as estradas e invadem as aldeias e pequenas cidades do país. É o mês dos emigrantes. E eles regressam à pátria para matar saudades, mostrando aos filhos, muitos deles nascidos fora, o que os fez esperar um ano pelo Verão. Mas, em muitos casos, o que os espera a eles é o mesmo desprezo social com que lidam lá fora – piadas e anedotas sobre o seu português afrancesado, estranheza e alguma condescendência com os seus hábitos. Portugal olha para os seus emigrantes com a mesma superioridade que censura aos que os recebem lá fora.

Não é só um problema de ingratidão – os emigrantes contribuíram muito para o desenvolvimento do país com as suas remessas, numa relação apaixonada e incondicional com as suas raízes. É, sobretudo, um problema de memória. Enquanto eles cá estiverem, todos os anos em Agosto, seremos forçados a lembrarmo-nos de onde viemos – das dificuldades da geração dos nossos pais, do analfabetismo, do inconformismo face a um país com poucos horizontes que os fez arriscar tudo lá fora. Mas, quando eles deixarem de vir? Iremos, finalmente, esquecer tudo. E quem esquece o passado perde também a visão sobre o futuro.

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e um comentário pertinente:

Pedro Grangeiro

AHC, você é um rapaz novo e, portanto, não tem culpa de ser vítima de um sistema educativo preocupado em ocultar tudo o que diz respeito ao Estado Novo. Assim, deixe-me esclarecê-lo.
Deixemos de lado os 50 anos que você diz que teria durado o Estado Novo, pois isso quereria dizer que teria acabado em 1983. Quando você diz « – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico.» parece-me que está a acusar o Estado Novo de ser responsável por esses baixos níveis, mas comete o mesmo erro da maior parte dos comentadores do Estado Novo: Esquece-se do ponto de partida. O ponto de partida foi a miséria total e absoluta deixada pela I República. Em 1926, Portugal tinha um PIB per capita equivalente a 28% do PIB per capita médio da Europa mais rica. No fim do Estado Novo esse número era já de 60 %. Curiosamente, 40 anos depois da revolução, continua na mesma, 60%.
Adiante você diz « em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus.» O seu erro repete-se: O Estado Novo encontrou um país com 70% de analfabetismo e deixou-o com menos de 30%. Concordará comigo que foi uma questão de tempo. Se o Estado Novo tivesse continuado, os níveis de escolaridade seriam, pelo menos, iguais aos de hoje, embora eu ache que seriam seguramente superiores, considerando o grau de exigência de então.