O Papa que enfrentou Salazar
por A-24, em 12.11.14
“Vamos ter tempos difíceis com a Igreja” disse o Presidente do Conselho
O Papa Paulo VI (1963-1978), de seu nome Giovanni Montini, e que foi beatificado no passado 19 de Outubro pelo Papa Francisco, em Roma, foi o primeiro Pontífice a pisar o território de Portugal. Aliás, foi o primeiro Papa a visitar Fátima.
Veio a Fátima no dia 13 de Maio de 1967 para assinalar os 50 anos das Aparições de Nossa Senhora (1917-1967), pedir a Paz no mundo e a unidade da Igreja. Mas também para dar um sinal claro da importância da presença de Maria na sociedade, pedir a intercessão da Virgem para o futuro da Igreja, para o bom termo do Concílio Vaticano II e, claro está, chamar a atenção da Humanidade para a importante Mensagem de Fátima.
Na época, Portugal era governado por Oliveira Salazar. Sabemos hoje que Salazar pensou em recusar a necessária autorização para Sua Santidade visitar Portugal. No entanto, e apesar de uma certa crispação inicial, a viagem redundou num verdadeiro êxito.
A relação entre Salazar e Paulo VI
Apesar de na aparência a relação entre Salazar e Paulo VI ter sido sempre da maior cordialidade pública, aquela também ficou marcada, e por inúmeras vezes, por algumas fricções. Cordialidade e fricções visíveis em alguns episódios que seleccionamos para si e que se contam nas páginas seguintes.
Quando Paulo VI iniciou o seu Pontificado, em 1963, e em sequência do Concílio Vaticano II (1962-1965), respirava-se na Santa Sé um clima de novos tempos, enquanto em Lisboa se prosseguia com a questão ultramarina e outras complicações.
Alguns sectores católicos mostravam um empenho bastante visível contra o conflito, mas também a favor da mudança política e social do regime.
Após o impacto da encíclica Pacem in Terris (1963) de João XXIII, com as resoluções do Concílio Vaticano II e a linha de modernização da Igreja preconizada por Paulo VI, tinha surgido algum estímulo à procura de soluções para a guerra do Ultramar (1961-1974).
Salazar e Paulo VI e o Cardeal Cerejeira como intermediário
Eleito Papa em Junho de 1963, Paulo VI tinha um perfil que não agradava a Salazar. Um Salazar escaldado com algumas posições do antecessor: João XXIII que, em 1956, ainda Cardeal, estivera em Fátima num retiro espiritual, mas que era conhecido, na óptica de Salazar, pelas suas posições “liberais” e “progressistas”.
Num comentário à escolha de Paulo VI, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da época, Franco Nogueira, observou que se tratava de uma vitória da “ala esquerda da Igreja”. No mesmo dia, e de acordo com o Ministro, Salazar fez o seguinte desabafo: “Vamos ter tempos difíceis com a Igreja”. Era esta a opinião generalizada das elites do regime português em relação ao Vaticano da época do Concílio Vaticano II.
A visita do Papa que Salazar queria impedir
Em 1963, foi conhecido o propósito do novo Pontífice participar no Congresso Eucarístico Mundial, em Bombaim. A possibilidade de o Papa ir à Índia – que dois anos antes anexara militarmente os territórios ultramarinos portugueses de Goa, Damião e Diu – foi vista por Salazar como “inconcebível”.
A ida a Bombaim, realizada em Dezembro de 1964, constituiu um forte ponto de fricção entre o Estado Novo de Salazar e a Igreja Católica de Paulo VI.
Salazar classificou a visita de “agravo gratuito, no duplo sentido de que é inútil e de que é injusto, praticado pelo chefe do Catolicismo em relação a uma Nação católica”. Além de a ter considerado como uma “injúria feita a Portugal”.
A censura do regime impediu o noticiário sobre o acontecimento. Contudo, o então padre António Ribeiro – futuro Cardeal Patriarca de Lisboa e sucessor do Cardeal Gonçalves Cerejeira – foi afastado do seu programa semanal na RTP por insistir em abordar o tema.
Porém, e segundo alguns, foi esta visita a Bombaim que abriu a porta à possibilidade de o Papa vir a Fátima, como forma de “compensar” Portugal.
Quando se soube da possibilidade, ainda que remota, de Paulo VI visitar Fátima, através da voz do Cardeal Costa Nunes, o “País estremeceu”. Franco Nogueira afirmou que Salazar lhe dissera, quando teve conhecimento da possível visita do Papa: “Enquanto eu for vivo, o Papa não entra aqui… não lhe daremos visto”.
O Cardeal Cerejeira, Salazar e a visita de Paulo VI à Índia
Salazar ficou deveras irritado com a possibilidade de Paulo VI, em 1964, visitar a antiga Província Ultramarina Portuguesa. Sabemos que tudo fez no campo diplomático para impedir a realização da viagem anunciada.
Salazar ficou muito agastado com a deslocação do Papa à Índia, evocando essencialmente questões meramente políticas.
É importante, por breves instantes, reflectir um pouco sobre o que representaria para Salazar e para muitos portugueses a realização de tal viagem à Índia. Em poucas palavras, podemos afirmar que esta viagem era uma verdadeira afronta para Portugal e para os portugueses.
Mais: na perspectiva de Salazar, esta viagem seria uma legitimação que o Vaticano concedia à União Indiana, e com reflexos a nível internacional, e que Portugal não podia, de forma alguma, aceitar. A visita, no entender de Salazar, podia significar o apoio, pela Santa Sé, da anexação de Goa pela União Indiana. Mas, também, a aprovação espiritual dada a uma atitude de guerra assumida pelo Governo de Deli. E, não sendo a Índia um país católico nem Bombaim um local de peregrinação, Salazar entendeu que essa viagem possuía apenas motivos políticos e não pastorais.
E quando Salazar soube da intenção de Paulo VI visitar Goa e orar no túmulo de São Francisco Xavier, sentiu uma profunda raiva interior, misturada com um forte sentimento de indignação. Ficou, como escreveu Franco Nogueira, “possesso de revolta”.
Qual era, então, a solução para Salazar? Impedir, por todos os meios possíveis, que essa viagem tivesse lugar.
Perante isto, o governante partiu para a ameaça. Através do Cardeal Cerejeira, avisou que, se o Papa realizasse a viagem à Índia e, sobretudo, visitasse Goa, a Concordata – assinada entre Portugal e a Santa Sé, em 1940 – seria denunciada e a política religiosa de Portugal “radicalmente” alterada. Salazar ameaçou, ainda, cortar relações oficiais entre o nosso País e a Santa Sé, colocando o sector católico nacional e o Vaticano em alerta.
O Cardeal Cerejeira, extremamente preocupado e “aterrado” com a situação, encontrou-se por duas vezes com o Pontífice nesse ano de 1964. O último encontro seria a 13 de Outubro de 1964. E como parecia que estes encontros não surtiam o efeito desejado, inclusivamente no último o Papa não permitiu que se aflorasse o assunto, o Cardeal e a diplomacia nacional conseguiram contactar com diversas personalidades com vista a demover o Papa da sua visita a Goa.
Em suma, Paulo VI fez a viagem, é certo. Mas ficou-se por Bombaim e não foi a Goa, como pretendia.
Salazar, criticou e condenou, de forma clara e inequívoca, a visita de Paulo VI. Mais: sentiu a atitude do Papa como um insulto a Portugal e aos milhões de católicos nacionais.
Franco Nogueira sabia que Portugal não podia “enfrentar com êxito uma hostilidade unânime de forças reais. E a Igreja é uma força real”.
Porém, Paulo VI, veio a Fátima como peregrino mostrando, assim, a dimensão deste Santuário que em terra portuguesa era “Altar do Mundo” e não altar dos interesses de Oliveira Salazar. Também Paulo VI, com esta decisão de se deslocar a Fátima, pretendia provar, de forma clara, que não ligava a contendas de natureza política e que apenas se guiava por questões pastorais.