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A-24

O negro em portugal

por A-24, em 24.05.11
HISTÓRIA Tabu negro em PortugalA história da presença dos negros em Portugal – um tabu até hoje – começa, a rigor, a partir de 1440, mas quase não deixou vestígios
Por Duda Guennes, de Lisboa

A presença do negro em Portugal é assunto tabu, votado ao silêncio, que só agora, discretamente, começa a ser estudado. E, nestes estudos, dois livros de autores estrangeiros são referências obrigatórias: Os Negros em Portugal – Uma Presença Silenciosa (Editorial Caminho – 1988), do brasileiro José Ramos Tinhorão, e O Negro no Coração do Império: uma Memória a Resgatar (séculos 15 –19), do antropólogo francês Didier Lahon (Casa do Brasil, Entreculturas – 1999).
Na década de 50, o historiador Manuel Heleno havia elaborado um exaustivo trabalho, em dois volumes, sobre a escravidão em Portugal. Lançou apenas o primeiro, que ia dos primórdios da nacionalidade até o século 15 (o período da servidão branca e moura). O segundo, que pegava de 1444, ano em que se efetuou o primeiro leilão de escravos negros em Lagos, Algarve, até a modernidade, foi simplesmente proibido de vir à luz pela censura.
Ainda hoje o mercado de escravos de Lagos, construído no século 16, está lá, de pé, para evocar o papel dos portugueses no tráfico negreiro. Em Lisboa, houve também uma “casa dos escravos”, de onde eram exportados para Sevilha e Valença. Em 1550, havia cerca de 10 mil negros em Lisboa, chegando a constituir 10% da população da capital. Estavam presentes na corte e nas casas da burguesia nascente e do clero. (Aliás, o papel do clero no tráfico de escravos precisa ser estudado). A mão-de-obra marinheira, que embarcou nas descobertas, era em grande número composta de escravos negros africanos. Geralmente eram batizados no porto de embarque e, se tentavam escapar, quando capturados eram marcados a ferro e fogo no rosto.


Houve, era inevitável, muitos cruzamentos que deram origem a muitos mestiços. É essa mistura de sangue que Portugal tentou esconder ao longo da sua história, e que agora os pesquisadores tentam resgatar. Houve até quem o negasse, como foi o caso do antropólogo Mendes Corrêa (citado por Tinhorão), segundo quem “a proporção de negróides, mulatos ou negros na nossa gente metropolitana é escassíssima”; os “portugueses não têm afinidades hemáticas com os negros africanos” ou “têm-se acumulado os documentos comprovativos de que são reduzidíssimos os vestígios das influências negríticas ou simplesmente negróides na população portuguesa atual” (1938).
Essa era a política “oficial” do Estado. No final da década de 50, Gilberto Freyre, que teve grande influência junto aos poderes salazaristas, propôs, e foi aceita, a “mítica” de que Portugal era uma sociedade multirracial. Em 1961, começou a guerra colonial na África portuguesa. O preto passou a ser o inimigo.
Com a Revolução dos Cravos, abril de 1974, e a independência das ex-colônias, a Metrópole foi invadida pelos “retornados” do ex-ultramar. Não se sabe ao certo o número, mas varia entre os 500 e 700 mil. Lisboa, que era uma cidade branca, passou a ser plurirracial, como preconizara Gilberto Freyre. Mas o preto continuou a ser discriminado.
Portugal tem um grande orgulho e proclama, aos quatro ventos, ter sido um dos primeiros países da Europa a abolir a pena de morte, mas foi também o último a ter acabado com a escravidão. E como demorou. Neste ponto, não resisto e volto ao livro de Tinhorão: “Decretada pelos liberais do chamado Setembrismo, a abolição do tráfico de escravos ao sul do Equador em 1836, com o objetivo de libertar os capitais necessários ao desenvolvimento – mas que serviu na verdade para desencadear o recrudescimento do comércio de escravos para o Brasil –, iniciaram-se em 1838 entendimentos exigidos pela Inglaterra para obter garantias contra o tráfico clandestino (o que foi formalizado por acordo de 1842, após a restauração da Carta Liberal de 1837), mas a instabilidade política no país, onde a força mais estável continuava ser a dos proprietários de terras, faz novamente sepultar o problema por mais 15 anos. Em 1858, finalmente, cinco anos depois do aparecimento do telégrafo, e dois anos após a inauguração do trecho inicial do caminho-de-ferro que devia ligar Lisboa ao Porto – e quando já se começava a discutir o socialismo nos meios operários –, o governo português marcou o fim da escravidão para 20 anos depois. E, de fato, embora a 27 de abril de 1869, após nova discussão do tema no Parlamento, ficasse escolhida finalmente a data da abolição para o dia 25 de abril de 1877, o assunto é retomado em abril de 1875, e a abolição antecipada para o ano seguinte, 1876, quando enfim se consumou”.


Presença residual – Como e por quê, depois de terem sido numerosos em certas cidades de Portugal, não se encontra nenhum traço de sua descendência? No livro de Lahon, as possíveis causas do esmaecimento da memória da escravidão negra em Portugal (fenômeno que também se deu em outras metrópoles européias) talvez se devam à falta de novas levas ou por miscigenação com a população portuguesa. A verdade é que os povos importados da África perderam, no século 20, a visibilidade que tanto sei
urpreendeu os viajantes estrangreiros da segunda metade do século 18. Uma visibilidade que agora volta a ganhar contornos mais nítidos com a entrada de trabalhadores africanos lusófonos e de brasileiros. Cresce também o número de imigrantes de países do Leste, especialmente da antiga Iugoslávia e da Ucrânia.
Com uma população envelhecida, controle de natalidade motivado por questões econômicas e a imigração de seus próprios cidadãos, nunca interrompida, para a América do Norte, França e Alemanha e outros centros, Portugal necessita cada vez mais de jovens imigrantes que possam restabelecer o seu equilíbrio populacional. O governo tem consciência dessa necessidade e estabelece políticas apenas para disciplinar a entrada desses imigrantes e reprimir abusos, mas, ao mesmo tempo, não consegue evitar que recrudesça um sentimento xenófobo que se tem traduzido em atitudes discriminatórias, especialmente em relação à juventude negra.
Em Portugal, a partir de 1761, progressivamente, os negros vão desaparecendo – especula-se que muitos tenham voltado para a África ou seguiram à força para o Brasil, onde teriam continuado a saga da escravidão, enquanto os libertos acabariam por se extinguir naturalmente, pouco a pouco. Com o fim da escravatura em todos os territórios sob controle luso, Portugal começa a substituir o trabalho escravo africano pelos galegos, que passaram a entrar no Reino em número cada vez maior, a ponto de o intendente-geral de polícia, Pina Manique, calcular em 30 mil esse contingente ao final do século 18. Mas essa é outra história...

(Leia mais na edição nº 65 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)