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A-24

O extraterrestre que apareceu em São Paulo e desapareceu em Ímola

por A-24, em 04.05.14


Vinte anos após ter morrido, Ayrton Senna continua a ser o maior símbolo da Fórmula 1. O Expresso tentou perceber o que fazia do brasileiro um "extraterrestre", como o apelidava quem o conheceu.
TEXTO: MARIANA CABRAL
FOTOS: GETTY IMAGES 
"Oinício do Mundial de Fórmula 1 de 1984 foi no Brasil, em Jacarepaguá, e eu fui às boxes para fotografar o piloto que se ia estrear naquele dia. Ele estava lá sentado, dentro do carro, e não estava ninguém à volta, porque nessa altura ainda podíamos andar à vontade. Comecei a tirar fotografias e ele, de capacete amarelo, levanta a cabeça de repente. Identifico-me e o Senna interrompe-me: 'Então, Francisco, já nos conhecemos'. Fiquei encavado, porra, mas este puto conhece-me de onde?"
Francisco Santos, na altura com 42 anos, já conhecia o puto de capacete amarelo, o novo piloto da modesta equipa da Toleman, mas não se lembrava. O puto, pelo contrário, lembrava-se bem. "Em 1979, eu trabalhava numa agência publicitária em São Paulo, no Brasil, e um dia a minha secretária diz-me: 'Francisco, tá aqui um garoto pra falar com você'. Entra-me ali um miúdo com 19 anos e pede-me para lhe arranjar um patrocínio para correr na Europa", conta ao Expresso.

"Na altura, o patrocínio não se proporcionou e nunca mais vi o rapaz. Até àquele dia, em Jacarepaguá, quando ele me diz 'você não trabalhou numa agência de publicidade em São Paulo?'. Fiquei verde, porque não me lembrava nada dele. Ao longo dos anos, ele mandava-me de vez em quando umas piadinhas sobre isso", graceja.

O puto, então com 24 anos, era só aquele que se tornaria um dos maiores pilotos da história da Fórmula 1: Ayrton Senna da Silva. "É difícil comparar pilotos e épocas diferentes, mas foi de certeza o mais carismático de todos os tempos. Para o povo brasileiro, ele era um deus. Aliás, para o domingo só começava para eles depois de verem o Grande Prémio", conta Francisco Santos, agora com 71 anos e atualmente a escrever o quarto livro sobre o piloto natural de São Paulo.
Foi precisamente em São Paulo que Domingos Piedade, ex-vice-presidente da AMG-Mercedes, percebeu o poder do "grande amigo" Ayrton, campeão do mundo em 1988, 1990 e 1991, numa altura em que não havia redes sociais nem o acesso à informação que há hoje. "Estava a ir para a fábrica da Mercedes e perguntei ao motorista, que já conhecia bem, quando é que a filha dele ia casar. E ele responde-me 'oi doutor, só sei que tem de ser num fim de semana sem grande prémio'".
Domingos, que trabalhou com Emerson Fittipaldi e Michele Alborreto, tem dificuldades em escolher o melhor - "entre Maradona, Di Stéfano, Pelé, Ronaldo... quem foi melhor?" -, mas destaca Senna como um "extraterrestre", completamente diferente dos outros. "Acho que ele tinha qualidades que não eram normais, mas sobrenaturais. Ele tinha o dom de desmultiplicar a velocidade na mente dele e via tudo fácil e devagar, mesmo quando ia a alta velocidade. Isso vê-se nas provas que ele fazia à chuva, com trajetórias pouco normais", explica.
"Extraterrestre" também é, curiosamente, a palavra que Artur Lemos, ex-diretor de relações públicas da Ford, utiliza para descrever Senna, com quem considera ter sido "um privilégio" privar, não só por aquilo que era nas pistas, mas também fora delas. "Era uma pessoa fascinante, simpático e acessível para quem o conhecia, mas com uma personalidade fortíssima, com um carisma muito especial", defende.
"Já o admirava antes de ele entrar na Fórmula 1, porque ele sempre foi um vencedor no desporto automóvel, por tudo onde passava. Era realmente um extraterrestre dos automóveis", explica Artur, referindo-se à carreira de Senna nos karts, onde começou oficialmente logo aos 13 anos, apesar de já conduzir desde os quatro anos por influência do pai, ávido fã de automobilismo.
Em 1983, Senna já era campeão de Fórmula 3, em Inglaterra, e começou a chamar a atenção de diversas equipas de Fórmula 1. No ano seguinte, estreou-se na Toleman e, apesar do carro modesto, destacou-se no grande prémio do Mónaco, onde começou em 13º e ameaçou a liderança daquele que seria o seu grande rival nos anos subsequentes: Alain Prost.
Mas seria apenas em 1985, já ao serviço da Lotus, que surgiria a primeira grande vitória do piloto brasileiro, num sítio que passaria a ser a sua "segunda casa": Portugal. "Estava no Autódromo do Estoril na primeira vitória do Senna. Ele passou um atestado de incompetência a toda a gente nessa corrida. Foi fascinante porque a pista parecia um rio e, mesmo com as circunstâncias difíceis, ele bateu toda a gente", recorda Artur Lemos, confesso fã do brasileiro, ao ponto de colecionar quase tudo sobre ele, entre miniaturas de carros, capacetes, canetas e livros.
"Tenho uma boa coleção, com um pouco de tudo, que comecei nos anos 80 e fui sempre continuando. É valiosa porque retrata todos os grandes momentos dele", afirma Artur, que é gestor de eventos, sem apontar o valor das peças, ainda que as estime em alguns milhares de euros.
"Há quem se ligue a atores ou cantores. Para mim, é o automobilismo e o ídolo sempre foi e sempre será o Senna, o maior piloto de todos os tempos. Penso que me revia nele, um grande ganhador. Não vejo no horizonte ninguém que consiga preencher o lugar que ele deixou", defende Artur Lemos, acrescentando que também tem uma coleção dedicada a outro piloto que era fã de Senna: Pedro Lamy.

"Senna foi o meu ídolo, era a minha grande referência e vai continuar a ser sempre", confessa Lamy ao Expresso. "Tínhamos uma boa relação. O facto de ele na altura ter comprado uma casa na Quinta do Lago dava-nos alguma proximidade e ele sempre me deu conselhos - como devia abordar a entrada na competição, como devia ser mais eficaz na pista...", afirma Lamy, que entrou na F1 em 1993.
O piloto português da Lotus estava em Ímola a 1 de maio de 1994, no fatídico grande prémio de San Marino, que já tinha começado mal nos dias anteriores - e onde também Lamy embateu num carro, embora sem gravidade. "Foi um dia muito confuso e um fim de semana muito difícil, negro. Na altura, não sabíamos que ele tinha morrido, mas quando soubemos, mais tarde, foram momentos muito complicados para todos."

O fim de semana de Ímola começou com um acidente grave de outro brasileiro, Rubens Barrichello, na sexta-feira, e passou para a morte de um austríaco, Roland Ratzenberger, no sábado, acontecimentos que perturbaram Senna ao ponto de reunir os restantes pilotos para debater a segurança da pista.

"Sou daqueles que acha que ele no dia em que morreu sabia que ia morrer. Ele deu entrevistas a dizer que estava preocupado e acho que ele, como crente, sabia", diz Artur Lemos. "Lembro-me perfeitamente do dia e lembro-me perfeitamente que estava a ver na televisão e comecei a chorar."
Quando entrou na curva Tamburello, Senna, que ia a 300 quilómetros por hora, perdeu o controlo do carro e despistou-se contra um muro. Um pedaço da suspensão entrou pelo capacete amarelo do piloto de 34 anos e penetrou-lhe o cerébro, matando-o. Mais tarde, soube-se que o descontrolo aconteceu devido à quebra da coluna de direção do Williams e não devido a um erro do piloto.

"Foi um choque para todos, especialmente no Brasil, onde literalmente milhões de pessoas encheram avenidas para o enterro dele. Ainda hoje em dia a campa dele quase que não se vê, tal a quantidade de flores e fotografias", conta Francisco Santos, que lançou a primeira biografia de Senna logo em agosto de 1994.
"No aspeto afetivo dos seguidores, há uma Fórmula 1 antes de Senna e depois de Senna", considera Francisco Santos, que refere que nem Michael Schumacher chegou perto do estatuto do brasileiro, apesar de ter batido todos os recordes. . "Agora, a Fórmula 1 está uma seca tremenda."
Domingos Piedade vai mais longe. "Conheço o Michael [Schumacher] desde os 16 anos. Ele vem de uma classe baixa e na Fórmula 1 são, em bom português, todos uns cagões, com a mania que são especiais. E ele, como tinha um sotaque muito forte - por exemplo, como se fosse do Norte, em Portugal -, evitava falar, para se defender, e isso tornou-o mais introvertido", prossegue o ex-vice-presidente da AMG-Mercedes.
"O Ayrton não era assim. Era um miúdo educado, que aprendeu rapidamente inglês e usava palavras em inglês que os próprios ingleses tinham de ir ver ao dicionário o que é que significavam", graceja. "Nas conferências de imprensa dele bastava haver uma pergunta, porque ele depois dissertava sozinho. Ele marcou a Fórmula 1 nessa altura. Hoje em dia não há nada assim", sustenta Domingos Piedade.
Francisco Santos garante que havia dois Senna. "De quinta a domingo, ele era de uma determinação e concentração inigualáveis: o objetivo era ganhar e ele não pensava em mais nada. De segunda a quarta, ele era outro Senna, era um paquerador, como dizem os brasileiros. Era muito namoradeiro, teve vários romances e era uma pessoa muito jovial e brincalhanona".
A modelo Adriane Galisteu foi o grande amor da vida do piloto brasileiro. "Hoje é tudo tão plastificado... Já não há groupies, já não há glamour. Agora seria impossível haver, por exemplo, um James Hunt, a sair do carro com uma lata de cerveja numa mão e um cigarro na outra. Hoje, faço os impossíveis para não adormecer a ver Fórmula 1. Falta um apelo qualquer", diz Francisco. Vinte anos depois, ainda falta Ayrton Senna.
Expresso