"o aborto, outra vez"
por A-24, em 11.08.12
Neste Agosto madrileno, quente e de ruas vazias, com os vizinhos na praia e os meus filhos no Alentejo, os dias passam lentos, como que desocupados, mesmo que às oito da manhã tenha já o cu sentado na secretária em frente ao monitor . Acontecem os dias de Agosto com os seus Jogos Olímpicos, a crise do euros e da dívida, da Síria, com mortos na televisão por tiroteios de loucos desfasados e com esse eterno incêndio que nunca se apaga e que cada ano vai incinerando o nosso futuro. Estamos adormecidos em Agosto, os que trabalhamos com a rotina dos autocarros e dos e-mails, os que estão de férias com os pés soltos, livres de saltos e das correrias dos pequenos almoços e dos colégios que fecham antes que o trabalho. E há quem se aproveite desta sonolência: especuladores, amantes, programadores de televisão e políticos. E há um político espanhol que tem a convicção que o verão nos aparvalha: chama-se Alberto Ruiz Gallardón e é o Ministro de Justiça.
Enquanto foi Presidente da Câmara de Madrid a ninguém lhe importou que endividasse a capital até níveis pornográficos, nem que substituísse as árvores das alamedas e da praças pelo granito frio, nem muito menos que fosse um ultra-católico com antepassados membros do regime franquista (às vezes a sonolência não é só questão estival, trata-se só da ausência de consciência civil). Gallardón sentou-se na sua cadeira do seu ministério e de ali começou a sua Cruzada pessoal nesta Espanha endividada, arruinada, entristecida e sem mais futuro que o resgate: modificar a lei do aborto. Os fetos têm direitos. Direito a não serem abortados, mesmo que venham com graves mal-formações, porque os mal-formados também devem nascer, independentemente que durem 2 horas ou 2 décadas em condições lamentáveis, agarrados a uma máquina ou ao destino de uma mãe que não teve direito a decidir uma vida digna, não para ela, mas para o filho que lhe mal-crescia no ventre. Este senhor diz-se católico e agora (talvez inspirado pela cabronice congénita de uns gajos que, sem ter sexo, nem filhos nem casa ou mulher que amar, tentam ordenar sobre a vida dos outros) programa legislar sobre o mais íntimo, sagrado e pessoal que poderá nunca ter uma mulher, a maternidade. Em Espanha, se este homem tão pouco cristão conseguir concretizar os seu sonho, a livre vontade da mulher ficará anulada e crianças, e toda a sua família, estarão condenadas a mal viver, porque assim é a lei de Deus, ou do raio que o parta. Nem os critérios dos médicos seriam válidos se esta lei se materializa. Imagino que daqui a pouco tempo saberemos que nem a violação será uma justificação para abortar. Se numa democracia nunca aceitaríamos que um muçulmano fundamentalista nos impusesse as suas convicções religiosas, porquê deveremos aceitar que um ultra-católico legisle segundo a sua moral? São mais válidas as teorias católicas sobre a sexualidade e a natalidade que a dos muçulmanos só porque estamos mais habituados? E afinal quem tem que se adaptar a quem? O conjunto da sociedade democrática aos parâmetros da Curia Católica ou ao contrário? Que alguém queira ser do clube dos padres é obrigatório? Aliás, é obrigatório abortar? Não. Aborta quem quer. Nem sequer se trata de um assunto religioso.
Trata-se de uma decisão íntima, pessoal, livre e, em última instância, da mulher. Assim são as nossas regras, as dos democratas, as dos cidadãos livres. Não será um padreco com aspirações a um lugar no santoral quem decida por mim, pelo futuro da minha família, dos meus filhos. Este é o PP que nos governa em Espanha, um partido que me acha inferior ao homem e portanto incapaz de tomar decisões conscientes e que necessitaria sempre a tutela superior. Acaso estes homens nunca desistirão de tentar controlar o destino das mulheres, a minha vida, o meu direito a decidir quando quero ter um filho e em quais condições? Proibir o aborto é obrigar a ter um filho que não se quer ou não se pode ter. E não me venham com sermões sobre mulheres que abortaram e se arrependeram, casos de deficientes bem sucedidos e histórias de lagriminha fácil para a TVI. Não, minha gente, não. O aborto é um tema demasiado sério para demagogias bacocas e cantorias de grupos de catequistas. Aqui não.