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A-24

Kalashnikov morreu, a guerra não

por A-24, em 26.12.13
Alfredo Leite

Sudão do Sul, República Centro-Africana (RCA), Síria, Congo, Mali, Somália, Iémen, Afeganistão, Palestina, Curdistão, Líbano, Iraque, Colômbia. Todos estes conflitos e tantos outros, mais ou menos esporádicos, fizeram mortes em 2013, sendo mais do que certo que as vão continuar a causar no ano novo que se aproxima. Todos eles têm um denominador comum (e não falo da estupidez e ganância do Homem): a abundância de homens, mulheres e, não raramente, crianças empunhando metralhadoras AK47, a arma de fogo que mais matou em todo o Mundo e cujo criador morreu nas vésperas deste Natal.

Calcula-se que tenham sido fabricadas desde 1947 mais de 100 milhões de Kalashnikov, mas o número pecará por defeito. Tantos foram os acordos de fabrico com terceiros e as cópias mais ou menos autorizadas, que se tornaria impossível calcular o número de AK47 em circulação. Sabe-se, isso sim, que é uma quantidade assustadoramente letal. A razão do sucesso desta máquina de morte é mais ou menos conhecida. Não é uma arma de precisão, mas, por ser construída com pouquíssimas peças, raramente avaria. É fácil de desmontar e tolera sem dificuldade elementos fatais para os soldados, como a humidade, areia ou lama. A juntar a tudo isto, é fácil de encontrar no mercado negro e é barata.

Já vi de quase tudo o que os homens conseguem fazer com uma Kalashnikov. Na aridez do Sudão, vi meninos exaustos a dormir numa esteira rota com a metralhadora ao lado, como se de um inofensivo urso de peluche que nunca tiveram se tratasse. Lembro-me, no Curdistão, do miliciano que me obrigou a fotografá-lo com uma "Kalash" de colecionador tão impecavelmente prateada, que quase esqueci o quão mortífera era a peça exibida com despudorado orgulho. Em Angola, olhei um polícia bêbado a disparar a sua AK47 só porque sim e no Paquistão vi os amigos de um noivo a comemorarem o casamento com rajadas para o ar, no cumprimento de uma tradição difícil de aceitar aos olhos ocidentais. Ali perto, no Iraque, testemunhei o papel das Kalashnikov no que de mais horrendo tem a guerra.

Mikhail Kalashnikov - que criou a AK47 como metralhadora defensiva - disse, antes de morrer, que não seria culpa sua "se as armas fossem usadas onde não deviam". Essa era para ele uma "culpa dos políticos". Por mais cínica que pareça, é bem provável que a afirmação faça sentido.

Com tantos conflitos ativos nos vários continentes, especialmente no africano, não surpreendeu a habitual mensagem papal "Urbi et Orbi", a primeira de Francisco. Tal como não foi surpresa a escolha dos destinatários indiretos dos seus recados.

O Papa referiu os "ódios" entre os rebeldes sírios e o regime de Bashar al-Assad e lembrou o "esquecimento" da violência na RCA. Jorge Bergoglio apelou ao "feliz término das negociações de paz entre israelitas e palestinianos" e ao "caminho do diálogo" para acabar com os conflitos religiosos na Nigéria. Era bom, como pediu Francisco, que 2014 fosse o ano. É utópico, mas bastaria a vontade política. Dos políticos.