Índia - "Apagão? Qual apagão? Para milhões de indianos a escuridão é a norma"
por A-24, em 19.08.12
A noite cai rapidamente nesta aldeia indiana e, em breve, a escuridão vai ser absoluta. Às 19h30, homens, mulheres e crianças deitam-se em esteiras à porta das suas casas. Os únicos sons que se ouvem são dos sapos, dos grilos e do abanar dos leques.Nas planícies do Norte da Índia muitas pessoas não se aperceberam do enorme apagão eléctrico que afectou metade do país no início do mês. Por estas bandas, são poucas as casas que têm acesso à electricidade e as que estão ligadas recebem energia muito intermitentemente. Por isso, a maior falha eléctrica de todos os tempos foi um não-acontecimento.Cerca de um terço da população indiana, perto dos 400 milhões de pessoas, não está ligada à rede nacional eléctrica, vivendo privadas do desenvolvimento, progresso e oportunidade que a electricidade representa. Muitas dessas pessoas vivem aqui, nos superpovoados estados do Uttar Pradesh e Bihar, nas planícies do rio Ganges, no Norte do país.A falta de electricidade é talvez o símbolo mais óbvio da desigualdade que ainda afecta este país e do falhanço governativo que está a atrasar as ambições da Índia de ser uma superpotência económica.
"Em termos puramente económicos, o acesso à electricidade é provavelmente a maior barreira ao crescimento da Índia", disse Ashish Khanna, o principal especialista do Banco Mundial em questões energéticas na Índia. Os estudos do Banco Mundial mostram que o fornecimento intermitente de energia é o principal constrangimento para o investimento e a criação de emprego no país.
As clínicas de saúde não podem funcionar eficazmente sem electricidade e sistemas de refrigeração para os medicamentos e as crianças não podem estudar às escuras. A falta de energia ajuda a explicar as fracas pontuações da Índia nos rankings de desenvolvimento humano bem como o smog que paira pelos céus destas planícies provocado pelo uso generalizado de lenha e estrume para cozinhar.Se os indianos mais ricos encontram maneiras de lidar com a falta de energia, recorrendo a geradores ou baterias, os pobres estão completamente dependentes de um Governo que falha regularmente com as suas obrigações. Nenhuma das 400 casas da aldeia de Kataiyan tem electricidade, um motivo de vergonha para Gulabi Amarikan, de 35 anos, quando ela visita familiares em aldeias onde há luz.
Estudar na escuridão"Tenho três filhos, mas será que eles vão conseguir algo melhor para as suas vidas?", pergunta enquanto se prepara para fazer o almoço no forno a lenha da sua pobre e minúscula cozinha. "Eles não podem ver televisão e aprender aquilo que os outros aprendem. Não podem ler em casa. Temos de viver às escuras e na ignorância."Numa casa vizinha, Kamlesh Yadav, de 13 anos, tenta ler os livros da escola com a ajuda de uma lamparina. "Os olhos magoam-me e tenho dores de cabeça", diz ele. "Os rapazes das aldeias com luz têm melhores notas."
As tentativas de Yadav para estudar são muitas vezes relegadas para segundo plano perante a sua principal missão quando está em casa: manter um olho atento nas poucas lojas da zona que ocasionalmente tem electricidade. "Se vejo luzes à distância tenho que ir a correr até lá com o telemóvel do meu pai", explica. "Eles carregam a bateria do telefone a troco de cinco rupias."Há sete anos, o Governo indiano lançou um ambicioso plano para levar electricidade a todas as casas indianas até 2012. Oficialmente, quase 100 mil aldeias foram ligadas à rede eléctrica nacional e, embora o objectivo global não vá ser alcançado, a proporção de aldeias com luz aumentou de quase 75% para perto dos 90% no ano passado.
A aldeia de Kenwasia é típica. Aparece nas estatísticas como tendo electricidade, mas poucas casas estão ligadas à rede, e as que estão recebem muito pouca energia.
"A luz vai-se abaixo quatro vezes por noite", diz Pawan, que conduz um rickshaw motorizado convertido em veículo de transporte de mercadorias. "De dia dificilmente temos mais do que três horas de electricidade, e quando temos, é com uma potência tão fraca que não podemos ligar os electrodomésticos em casa. A televisão e o frigorífico estão estragados, a ventoinha roda mas não faz vento nenhum. A única coisa que podemos fazer é carregar os telemóveis."A situação é pior na zona mais pobre da aldeia, habitada por dalits, os intocáveis, que representam a classe mais baixa no rigído sistema de castas da Índia. Ali as casas não têm electricidade. Jai Chand, que lutou para que Kenwasia fosse ligada à rede eléctrica, explica que os pobres não têm dinheiro para isso.
"Há diferentes níveis de subornos que é preciso pagar para instalar um poste, um transformador, um cabo ou uma ligação", explica. A electricidade é tão intermitente, a burocracia para conseguir uma linha é avassaladora, os subornos são tão altos, que a maioria das pessoas que não têm luz não se dá ao trabalho.
Aqueles que podem, roubam electricidade. Jovens sobem para os telhados ao pôr-do-sol e usam longas canas de bambu para ligarem cabos clandestinos à rede eléctrica. Assim que têm luz podem acender uma lâmpada ou uma ventoinha nas suas casas. De manhã, os cabos ilegais já desapareceram. Mesmo as pessoas de classe média recorrem a este esquema para poderem ligar um ou outro electrodoméstico extra."Não estou a roubar dos meus vizinhos, só estou a tirar da rede eléctrica do Governo", justifica Rashid Ahmed, o dono de uma banca à beira da estrada. "Sou pobre, para mim isto não é roubar, isto é sobreviver. Uma ligação pirata minha não vai levar o país à falência."O país pode não estar falido mas as empresas de distribuição eléctrica estão. É-lhes exigido que vendam electricidade a baixo preço e perdem entre um quarto e um terço da energia que fornecem por causa dos roubos. Por isso estão profundamente endividadas. O preço da conta da luz é tão baixo que, por cada unidade que uma companhia vende às aldeias, a sua dívida aumenta quase quatro rupias, refere um estudo do Prayas Energy Group.
"Para estas empresas não há como ganhar", disse N. Sreekumar do Prayas. "O que acontece é que as companhias eléctricas optam por fornecer energia às aldeias durante poucas horas para manterem o prejuízo no mínimo."
As ordens são para dar prioridade às zonas urbanas, disse sob anonimato um responsável ligado ao fornecimento de energia. E admitiu que evita entrar nas aldeias mais pobres, porque muitas vezes é cercado pela população aos gritos, exigindo electricidade.
Apesar dos obstáculos, os peritos dizem que os problemas energéticos da Índia rural podem ser superados. China, Brasil e África do Sul conseguiram aumentar as taxas de electrificação para 99, 98 e 75%, respectivamente, até 2009, comparando com os 65% da Índia. O Prayas calcula que a Índia precisaria de aumentar a sua capacidade total de gerar electricidade apenas mais 15% para fornecer o mínimo de energia às casas que ainda continuam às escuras.
O exemplo do Bangladesh
O vizinho Bangladesh é um bom exemplo de como as fontes de energia renovável, como a energia solar, o biocombustível e micro-centrais hidroeléctricas podem ser utilizadas para fornecer energia a aldeias sem ter de as ligar à rede nacional.Os rendimentos, bem como o número de horas que as crianças passam a estudar e os anos em que frequentam a escola, têm aumentado significativamente no Bangladesh, como resultado do sucesso destes programas. As companhias de energia solar estão a antecipar uma revolução semelhante na Índia nos próximos anos.Mas na Índia, dos mais de seis mil milhões de dólares gastos em electrificação rural desde 2005, menos de dez milhões foram gastos neste tipo de fornecimento descentralizado de energia, diz Ashish Khana, do Banco Mundial, descrevendo a situação como a "grande peça que falta no acesso à electricidade".Na aldeia de Kenwasia, Raja Ram, de 66 anos, diz que está farto de ver as crianças "a brincarem na lama e a perderem o seu tempo" porque não têm luz para estudar. "A minha vida foi passada na escuridão", queixa-se. "Pelo menos as vidas dos meus netos deveriam ter todas as coisas boas que a electricidade dá."
Público