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A-24

Grécia. E se os deuses não voltam?

por A-24, em 03.06.12
Por Luís Raínha, para o Jornal I.

Chega-se à Grécia com muitas outras Grécias na bagagem. Levamos a ânsia de conhecer a raiz daquilo que somos, a esperança de ainda apanhar ecos dos gigantes que criaram epopeias, deuses, pedras ilustres e toneladas de mitos. Murmuramos nomes tremendos, clássicos que um dia ainda leremos, heróis que encarnam todas as virtudes que nunca teremos. Atenas vibra logo na toponímia: Acrópole, ágora, Areópago – quando descobrirmos por fim o “z” deste directório sem par, que assombros teremos já habitado?
Mas há mais tralha, menos feliz, a pesar--nos à chegada, além das recordações de mármores emigrados à força para as névoas de Londres, supostamente para evitar o seu uso como material de construção: os dias da queda. Desembarca-se hoje aqui à procura de um povo a quem os seus deuses viraram as costas, decadente ao ponto de se ver de cócoras, de gamela na mão, de rastos ante a caridade da Europa próspera e desdenhosa. Agora, com este país transladado para a aflição dos nossos noticiários, é de novo a Grécia fantástica, povoada de mitos assustadores, que se agiganta; o oráculo em que todos adivinham o futuro imediato do nosso Portugal. A tragédia que é deles em breve ocupará as vidas desta terra também de respiração suspensa.
George Lazarou, de 48 anos, é um vigilante florestal dedicado à prevenção de incêndios e à defesa da fauna da Macedónia Ocidental. Queixa-se da míngua de fundos, europeus e não só, que atasca cada vez mais projectos já em andamento; acima de tudo deplora a erosão que a crise tem vindo a causar à frágil herança natural grega. Votou no Laos, o partido de extrema-direita que fez parte do anterior governo e agora se viu excluído do parlamento. Mas não se imagina capaz de votar na Aurora Dourada, o partido dos skinheads, pois “a religião é importante para a política, para a noção de pátria”. Este grego macedónio vê o seu país de forma pouco caridosa: “A Grécia é como uma dona de casa que passa a vida a beber. Claro que os vizinhos pensam mal dela. O povo tem culpa, pois votou nos que alimentaram as suas clientelas, a promiscuidade de interesses, a corrupção.” E o futuro também não se lhe apresenta radioso: “Depois das próximas eleições ninguém vai conseguir formar governo. Até um golpe será possível; é pouco provável, mas também quem diria antes que o Syriza teria tantos votos? Esta chantagem, a propósito de reterem a ajuda e pedirem referendos, tem grupos por trás, gente que ganhará ao empurrar a Grécia para a miséria.”
Miséria. Eis o programa anunciado desta viagem. A visão de um país inteiro seguindo o exemplo ibérico de Jerez de la Frontera: o colapso do Estado, a caridade como último refúgio de multidões de desempregados, um pesadelo prestes a alastrar por todo o Sul europeu. Da Grécia não vem bom vento: notícias, relatos, boatos, tudo nos fala de um país em dissolução, na indigência mais abjecta, uma nação suicida que, depois de gastar o que tinha e o que não tinha, se prepara para se eximir à expiação esperada, votando em extremistas, em vez de continuar agarrada aos partidos que a levaram até ao abismo. Mas a Grécia também não é só isto.

Antes do mais, Salónica. Outras paragens míticas, como Hong Kong ou o Cairo, satisfazem-nos de imediato a sede de exótico, enchendo o olho do turista, que se quer arregalado: as feições, os sons invulgares, tudo é estrangeiro como convém. Mas pouca é a estranheza que nos recebe aqui. Estes homens e mulheres passariam bem por portugueses. Mesmo a sua fala nos sobressalta de quando em vez com sonoridades a modos que familiares. O aeroporto rústico, quase ascético, os profissionais pouco apressados, a sujidade que se vai acumulando pelos cantos... eis-nos em casa.
Na estrada é impossível não reparar nas construções inacabadas. Grandes, modestas, espampanantes ou recolhidas; todas de tijolo, todas a aguardar soalhos, vidro, tinta, habitantes – dinheiro, em suma. Em diferentes estágios de edificação, o grande bairro de esqueletos é uma imensa necrópole de sonhos interrompidos. No país das memórias pétreas, visitamos assim mais um parque arqueológico de ruínas; não oriundas do passado mas sim do futuro, dos dias prósperos que supostamente aguardavam a Grécia. Até que chegou a crise e o betão deixou de fluir nas veias da nação helénica.

Assinalando cada trecho perigoso das rodovias gregas estão outros monumentos à alma única do país: os auto-santuários. De metal ou de pedra, servem para que os sobreviventes de acidentes rodoviários agradeçam aos poderes superiores que os terão salvo. Muitos, talvez por se ter exaurido a gratidão dos miraculados (ou pela sua reincidência no acidente), vão caindo na entropia da ferrugem e do abandono. Mas lá permanecem, estações de uma paixão colectiva no altar da velocidade e do progresso. Devoções de um povo que continua a acreditar no poder das soluções ex-machina, mesmo enquanto se vai esvaindo num ranger de obras paradas e ferros de construção erguidos em vão para o céu, como raízes em busca de alimentos há muito esgotados.
Chegamos a Grevena, uma cidade do Noroeste grego com as dimensões físicas e humanas de Trancoso. Um pesadelo urbanístico: impulsionado por leis que facilitavam a construção, irrompeu aqui um caos de pequenos prédios revestidos de alumínios, tinta escamada e mau gosto generalizado. Na praça central, que rodeia um charco de fundo de cimento azul, quase coberto por uma maré de lixo, muitos adultos fazem companhia aos ranchos de crianças que aqui passam o dia; são o primeiro sinal óbvio do desemprego crescente. Mas Grevena não apresenta sintomas de depressão profunda: bares e restaurantes, nada baratos para os nossos padrões, têm clientela abundante todas as noites da semana.

Yorgos Iliopoulos é um biólogo de 42 anos que trabalha na conservação do urso e do lobo no Noroeste da Grécia. Inquirido sobre as notícias de ameaças de sequestro de fundos até à tomada de posse de um governo que se responsabilize pela continuação da austeridade, é peremptório: “Reter parte da ajuda como resposta à nossa crise política é chantagem. Estamos num momento histórico incrivelmente difícil. Não nos empurrem! Reconhecemos as nossas responsabilidades, mas não podem mudar uma situação que demorou dez anos a criar sem causar milhares de vítimas.” E as urnas parecem--lhe apenas fonte de mais dúvidas: “A maioria dos gregos não sabe o que decidir. Não têm a certeza das causas. Acham que é uma crise europeia. Ainda acham que não vai piorar, quando na realidade vão cair no abismo. Todos querem ficar no euro menos os extremistas. Mas com um novo contrato, sem tantos sacrifícios. O que é consensual é que assim não aguentarão mais.” Os gregos sabem-se escrutinados ao telescópio, vistos como exemplos deploráveis: “Portugal, Irlanda, Itália, Espanha, todos os PIIGS estão tão mal como nós, são é mais obedientes. Mas todos queremos mudar, só não sabemos como. Precisamos de impostos justos, de uma política de esquerda. E, claro, exigimos castigo para os políticos que nos deixaram neste estado.” Crime sem castigo?

Já em Atenas o panorama geral nas ruas será talvez chocante para um alemão, mas não para um lisboeta. Toxicodependentes armazenados às claras na Avenida 3 de Setembro; homens e mulheres que remexem em caixotes de lixo; refeições comunitárias a matar a fome de quem ainda há pouco a desconhecia; a louca ocasional que no metro protesta para o vazio, descalça mas ainda agarrada a uma bolsa de marca – de tudo isto os gregos se queixam com variações sobre uma só frase: “Antes não havia disto.” Mas um português que vagueie por esta capital cedo começa a suspeitar que afinal os gregos não estão muito à nossa frente na estrada para o Inferno; mesmo os suicídios quotidianos que não param de se acumular em estatísticas desesperadas parecem ecos de notícias que por cá também lemos.

Muito na Grécia, começando pelo estado geral das suas feias cidades, faz-nos rever o Portugal de há dez anos; a enxurrada de fundos que elevou o nível de vida dos gregos não deixou sedimentos visíveis, para lá do verniz mais superficial. Para onde terá ido o dinheiro? Todos já ouvimos o mantra dos seus gastos incomportáveis, do seu elevadíssimo salário mínimo, empurrando-nos para a crença na preguiça endémica do país e a inevitável urgência de mais e mais cortes, até que eles ganhem apenas o que merecem – mesmo que os dados do Employment Outlook da OCDE relativos a 2010 nos provem que os gregos trabalharam em média mais horas que os esforçados cidadãos de países de bom nome na praça, incluindo a Áustria, a Alemanha, o Reino Unido, a Islândia... e até Portugal.


Seja como for, em 2009 chegou o choque com a realidade de uma dívida tremenda, camuflada pelo governo de então, com a ajuda de técnicos da Goldman Sachs. Yorgos dá voz ao espanto consensual: “Ninguém sabia da situação grega; esconderam-nos a dívida. A troika veio sem aviso nem consulta. As pessoas querem pagar a dívida, mas não desta maneira.”
As imprecações contra muitos culpados ocultos vão da vox populi, certa de que ninguém paga impostos na Grécia, ao empresário hoteleiro de Kalambaka, que nos assevera que a fórmula fiscal mais em voga no seu país é o “2+4+4”: 20% para o Estado, 40% para o próprio e 40% para os inspectores das Finanças. Mas também o “International Herald Tribune” denunciou há dias as culpas dos oligarcas: os super-ricos (começando pelos armadores, tradicionalmente isentos de impostos) que se recusam sequer a financiar as instituições de solidariedade, quanto mais a ajudar o seu governo a lidar com a crise.
Sim, os gregos sabem que há milhões dos seus que não conhecem as angústias amargas da crise. Em zonas atenienses como Plaka, há ruas inteiras que se animam todas as noites com álcool a preços de extorsão e música estridente, numa recriação em grande do gosto duvidoso de uma qualquer marina algarvia. Anda por ali dinheiro e boa disposição a rodos. Junto ao bairro estudantil de Exarchia, epicentro de muitos distúrbios recentes, um silo de estacionamento guarda fileiras de Porsches e Mercedes, tesouros made in Germany que não convém deixar na rua – isto apesar de ser rara a motocicleta acautelada com a prevenção de um cadeado. O luxo desconfia e prefere o recato.

A insegurança parece omnipresente; pelo menos a abundância de polícias em toda a cidade pode fazer-nos acreditar nisso: de mota, automóvel, autocarro ou a pé, as forças policiais aglutinam-se em ominosos ajuntamentos sem razão aparente. Junto à famosa Praça Syntagma, nem sinal de concentrações sediciosas; alguns agentes em motorizadas japonesas reluzentes mantêm debaixo de olho uns poucos turistas que fotografam os passos de ganso da guarda de honra e nada mais.
Muita da popularidade da Aurora Dourada ficou a dever-se aos seus serviços de “segurança”, oferecidos como solução às vizinhanças onde os imigrantes são espantalho para todos os medos e bodes expiatórios sempre à mão. De resto, esta organização neonazi recebeu votos que representam castigos para os partidos estabelecidos; literalmente, como admitiu a ateniense Iliana Bousiaki, de 28 anos, licenciada em Ciências Políticas e profissional de comunicação: “Conheço quem tenha votado neles e agora apresente as desculpas mais estúpidas, como quererem que os seus deputados vão para o parlamento bater nos outros. Bater a sério, ao estilo do que vemos acontecer na Coreia.”

Exarchia. O enclave estudantil, anarquista, revolucionário. Em 1973, a revolta do Politécnico de Atenas começou aqui. Em 2008, o assassinato do activista adolescente Alexandros Grigoropoulos levou ondas de choque destas ruas a todo o país – os dois polícias responsáveis foram entretanto condenados a pesadas penas de prisão.
Hoje o bairro é vigiado 24 horas por dia; o governo decidiu mudar para perto do Museu de Arqueologia a sede do Ministério da Cultura, porque, segundo nos diz Andreas, um jovem que trabalha a poucos metros dali como recepcionista num hotel – e que até fala um excelente português, produto de um ano passado no Brasil –, queria uma desculpa para vigiar este bairro, em que os agentes policiais só entram à paisana, talvez receosos das nuvens de canabinóides que compõem 50% da atmosfera local.

Os polícias couraçados a montar guarda aos acessos da Praça Exarchia são muito jovens, como a generalidade dos agentes atenienses; basta imaginar o estudante anarquista médio bem escanhoado e lavado para termos o seu negativo: o odiado chui antimotins. “ACAB” — All Cops Are Bastards, eis o mote repetido por mil paredes das redondezas. Em plena rua Boumpoulinas, um destes operacionais de choque, decorado com armas e granadas de gás lacrimogéneo como uma árvore de Natal belicosa, garante-nos que não sabe por que motivo ali jaz de atalaia. Ele e os seus camaradas lá ficam, manhã, dia e noite; dir-se-iam sentinelas às portas de Tróia, aguardando hordas invasoras de bárbaros tatuados que talvez nunca apareçam. Algumas ruas acima, no Clube Da Da, todos parecem bastante mais embrenhados em jogos de gamão, copos de cerveja e conversas do que na organização do próximo motim. Os graffiti dão nas vistas como os militantes mais firmes, sempre de guarda às suas esquinas: das máscaras de gás de “Sidron” ao stencil do já famoso dentista Petros, que assina “Mapet”.
As parecenças com a situação portuguesa são mais do que seria conveniente para o nosso conforto. Maria Petridou, uma jovem engenheira agrónoma ateniense, aponta um curioso ângulo morto: “Não me lembro de anedotas sobre a crise. Há sempre anedotas sobre tudo, mas sobre isto não…” Um sentido de humor atordoado, incapaz de se rir da sua própria desgraça, bem à imagem do que se ouve em Portugal: quem replica chistes sobre a crise que nos pode enterrar vivos a todos?

Mas os gregos parecem dotados de um optimismo inquebrantável, pelo menos os que mantêm os seus empregos e não são funcionários públicos nem pensionistas; Andreas assevera-nos que a maioria ainda não viu os seus rendimentos afectados pela austeridade. O paralelo com a conhecida fábula do grego Esopo, do miúdo que tantas vezes gritou avisos sobre a presença do lobo que a páginas tantas ninguém acreditava nele, é evidente. Anuncia-se para breve, de novo, a bancarrota do Estado grego, sem dinheiro para mandar cantar o proverbial cego. Parece que desta feita o executivo até já lançou mão dos fundos para reconstrução em caso de catástrofe natural; mas o alarme de catástrofe iminente não basta para assustar a população. A ideia de que “mais uma vez o dinheiro vai aparecer a tempo” impera na rua.

Andreas desistiu de ver noticiários na TV. “Parecemos todos envolvidos por uma nuvem de más notícias, de números pessimistas e previsões apocalípticas. Saio de casa todos os dias a perguntar-me: será que logo à noite ainda vou ter emprego?” Isto mesmo sabendo que o seu sector será, pelo menos de acordo com Paul Krugman, uma das bóias de salvação da economia grega uma vez fora do euro, a par da marinha mercante.
Yorgos sente a mesma neblina de mau agouro a pairar sobre o seu país: “Sair do euro? Não sei, mas acho que não ia ser bom para a Europa. Para a Grécia talvez não fosse má ideia, mas nunca no meio de uma crise assim. O Syriza não vai querer sair do euro. Mas estas condições são insuportáveis. É preciso mudar.”

A Grécia é assim um país dilacerado entre o desejo e o medo da mudança. Entre a busca de redenção e as orações para que afinal o pior não chegue. Entre o negrume dos bas-fonds de Atenas e a electricidade dionisíaca ali mesmo ao lado. Talvez sejam parecidos connosco. Mas muito nos separa dos gregos, pelo menos por enquanto. Em Portugal vamo-nos encolhendo e esperando que o pior aconteça ao vizinho do lado mas não a nós; deixamos a maçada das manifestações para os comunistas e continuamos a compensar com o nosso voto quem nos trouxe até ao precipício. Há gregos convencidos de que somos “mais obedientes”; talvez por educação, ninguém usou o epíteto que Franco nos lançou há umas décadas: “Cobardes.”

Em breve teremos ocasião de ver se eles levam o seu desafio até ao fim; e se nós continuamos de cabeça baixa na rota do matadouro, “custe o que custar”. Pois não consta que os deuses estejam na iminência de regressar ao Olimpo e ao desvelo com os seus filhos caídos.