General D e o "racismo"
por A-24, em 01.07.14
Considerado o "pai do hip hop português", General D esteve ausente de Portugal nos últimos 15 anos, período durante o qual pouco ou nada se soube de si. Regressa hoje para um concerto em Lisboa. Antes falou com o DN.
- Como é que está a ser este seu regresso a Portugal, depois de 15 anos de ausência?
General D. |
Estou cá há dois meses. Está a ser curativo, em reencontrar-me com a cultura, com as pessoas, ver as diferenças que há agora no País e as coisas que não mudaram, isso tem sido bastante importante. Tem sido um período de análise. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me como se estivesse a preparar-me para um combate de boxe. Estes meses estão a ser isso, física, espiritual e psicologicamente.
- Mudou alguma coisa no País que agora encontra ou as mudanças foram só à superfície?
Mudou a cara, mas os problemas estão lá e acho que ainda maiores do que antigamente, porque agora as coisas parecem estar melhor, o que faz com que seja ainda mais difícil combatê-las. Se se quiser fazer uma luta dá a impressão que se está a lutar contra fantasmas. É como o Dom Quixote, que luta contra moinhos que não existem, mas os moinhos estão lá, existem, estão é bem escondidos.
- Que problemas considera mais flagrantes?
A primeira coisa em que me foco, desde sempre, é a situação do africano em Portugal. Sempre foi essa a minha luta. Nesse aspecto não se deu melhoria nenhuma, piorou até. Piorou porque as pessoas dizem que agora os brancos até vão a discotecas africanas, gostam de música africana, de hip hop, e isso pode dar uma impressão de uma sociedade integrada, mas, em termos de igualdade de oportunidades em termos económicos, sociais e políticos, isso não acontece. A prova disso é que existem situações como a Quinta do Mocho. Em lado nenhum da Europa vi uma Quinta do Mocho. Mas um dos maiores problemas é que as pessoas, tanto as que vivem lá como as de fora e as entidades governamentais, encaram isso com normalidade.
- Encara-se com normalidade o facto das pessoas estarem tão 'guetizadas'?
As oportunidades são negadas a uma determinada parte da população e isto não é só uma questão social, mas racial. É uma questão de racismo institucional que empurra a população negra para essas posições. Isso leva a que se cria uma subcultura com uma série de problemas sociais e, a partir daí, torna-se muito difícil querer ou esperar que as pessoas que vivem nessa realidade tenham uma participação mais positiva e ativa na sociedade. E já nem estamos a falar de emigrantes, mas de portugueses. Existem problemas específicos que têm de ser resolvidos de forma específica. Mas põe-nos todos no saco da emigração, quando não somos todos emigrantes. Juntam os novos emigrantes e tratam todos da mesma forma, esquecendo que os problemas dos primeiros emigrantes nunca foram resolvidos.
- Depois de 15 anos afastado de Portugal esperava que algo tivesse melhorado?
Não. Não tinha esperança que tivesse mudado porque os problemas não são enfrentados. Esse já era o problema da altura. As pessoas não gostam de falar das coisas frontalmente. inventam sempre palavras como "multiculturalismo" e isso esconde os problemas. Com esta atitude a situação vai manter-se por mais mil anos. Até as pessoas que são responsáveis pelo estado de coisas alimentam a apatia e assim mantém-se o desequilíbrio. Cabe-nos agora a nós organizarmo-nos e prepararmo-nos para um verdadeiro debate político. Mas para haver um verdadeiro debate político precisamos de criar estruturas e antes de se criarem as estruturas tem de ser feito um raio-X do verdadeiro problema. Desde que cheguei cá que tenho andado à procura de estatísticas, que não existem. Qual o número da comunidade africana, qual é o número de africanos nas cadeias, qual o número de africanos nas faculdades, qual é a percentagem do aproveitamento escolar dos africanos, porque o aproveitamento escolar está diretamente ligado ao número de pessoas nas cadeias.
- A falta dessas estatísticas é o resultado da tal apatia a que se referia?
Claro. Mas não podemos estar muitos mais anos há espera. Desafio, por isso, a comunidade africana, os historiadores, os sociólogos, os estudantes, os políticos (ainda que não estejam representados no parlamentos, mas eles existem), desafio a nós próprios a encontrar formas de procurar esses estudos e exigi-los, porque eles existem, mas estão camuflados, escondidos. Temos agora de reclamar esses estudos porque eles são importantes para podermos dar uma melhor contribuição à sociedade e para curar as nossas lesões. É do interesse de todos que estas estatísticas sejam tornadas públicas e sejam de fácil acesso para que saibamos qual é o real problema. A mudança da nossa situação social e da nossa situação política passar por nos organizarmos e criarmos um plano. Tenho ando em debates e discussões e existe sempre a tendência de que qualquer movimento negro tem de ser, obrigatoriamente, universalista. Eu sou da opinião que antes de entrarmos nesse universalismo temos de saber, entre nós, o que somos, como vamos contar a nossa história. Temos de criar a nossa estrutura, sarar as nossas feridas internamente, porque nunca ficaram saradas, desde os tempos da colonização. Temos de delinear o nosso projeto e ter um programa de socialização do africano desde a escola primária até ao ponto em que está pronto para contribuir de forma mais ativa para a sociedade. Esse plano não pode ser feito sem ter em consideração as pessoas que são o objeto. Sem estarmos no poder de decisão é muito complicado. Depois de termos esse plano elaborado, que pode demorar anos, estaremos em condições de participar com quem quer que seja.
- Como há pouco afrimou, hoje em dia tem-se a impressão de se estar a lutar contra fantasmas. Isso torna o processo mais frustrante?
Torna-se frustrante porque uma pessoa sente-se ilhado, isolado. Os poderes estabelecidos têm uma máquina perfeita para fazerem das pessoas uma ilha. Ao isolarem uma pessoa economicamente, isso basta para tudo se quebrar à sua volta. Antes de se aperceber, a pessoa está completamente isolada e, a partir daí, qualquer ação cai no vazio.
- Foi por tudo isto de decidiu sair de Portugal ou estes problemas são apenas a ponta do iceberg?
isto é a ponta do iceberg. O que me fez sair daqui foram também problemas ligados especificamente à música. Ainda que esteja tudo relacionado. Mas, no meu caso específico, afetava-me na música porque não me conseguia expressar da maneira que queria. Era barrado não só pelas instituições físicas, mas pela mentalidade das pessoas, em geral. Combater essas mentalidades era extremamente difícil e chegou uma altura em que se tornou quase impossível. Por isso necessitava de me afastar, de olhar para as coisas de forma distanciada para também me reinventar. Essa foi uma das razões porque saí, para me reinventar.
- Na altura o hip hop, em Portugal, não estava tão massificado como hoje em dia. Isso contribuiu para que tenham surjido mais problemas?
Tinha problemas a todos os níveis, de público, com editoras. A própria indústria era muito virgem, não soube lidar com este novo estilo. O que aconteceu noutros países, desde o início, é que os rappers criaram pequenas estruturas e a indústria maior participava com essas pequenas empresas como parceria. E as pessoas que faziam parte dessas pequenas estruturas também integravam o contexto social e cultural que fez nascer a matriz, neste caso o hip hop. Em Portugal se tens alguém que passou a vida a lidar com a Amália e os Madredeus e, de repente, tem de lidar comigo, dia a dia, e tem de se deparar com todos os problemas sociais, culturais que eu trazia, essa pessoa fica confusa porque nunca lidou com essa realidade. Acaba por escolher vertentes que podem não dar resultado. No hip hop não se trata só de música, é o entendimento da raíz, da matriz, qual o estado lógico que criou este movimento. A cultura é melhor explicada não por quem estuda, mas por quem a vive.
- Uma vez mais o facto de não se tratar casos específicos de forma específica, como já tinha salientado.
É o problema deste País. Não lidar especificamente e não oferecer condições para que as pessoas atuem. Muitas vezes quando nos queremos reinvidicar e queremos ter a capacidade de contar a nossa história chamam-nos de racistas, exclusivistas. Nós queremos contar a nossa história para que o nosso contributo seja melhor e o mundo conheça a raíz, que absorva mais sumo da história. Os outros podem ajudar e participar, mas deixem-nos ser os elementos fulcrais, os protagonistas da nossa história. Mas temos ainda de amadurecer o nosso discurso político. Não podemos continuar a falar só em termos se se é ou não racista. Temos de avançar esta discussão para um nível político e científico. Este é um problema que tem de ser resolvido cientificamente, sociologicamente, psicologicamente, historicamente. Esta análise faz-se em qualquer situação social. Porque é que quando se trata do nosso caso não há vontade de se abordar da mesma forma científica? Isto não é uma conversa de esquina, isto é um problema político e social, que afeta a economia do País . O problema dos africanos é o problema de todos os portugueses.
- Quando há 20 anos trouxe este discurso para a música esperava as reações que se seguiram?
Não estava preparado para o ódio. Achava que o que estava a fazer era natural. Vivo nesta sociedade, vejo uma coisa errada, tenho de falar sobre ela, mesmo que seja com aquela ingenuidade dos 18 anos, mas é o processo natural de qualquer cidadão. Quando, um dia, uma amiga minha me disse que tinha um colega que me odiava, mesmo eu não o conhecendo, aí comecei a reconhecer que o que eu dizia e fazia, esse ato, que eu considero um ato de amor, tinha repercussões que não esperava. Não esperava que esse ato de amor voltasse para mim com ódio.
- Como é que recorda desses primeiros anos ligados ao hip hop?
É estranho mas não tenho a sensação que foi há 20 anos. Tenho a sensação que foi há dez dias. Mas o que me fez continuar, acima de tudo, foi um percurso pessoal. Nunca achei que era o rei ou o pai. Claro que estava disposto a fazer o quer que fossee para me encontrar a mim próprio, para ir buscar a minha felicidade. Nesse processo fui encontrando pessoas e situações e fui caminhando pelo hip hop. O hip hop foi a arma que encontrei para me reencontrar enquanto africano e africano a viver fora de África, com todos os problemas que isso traz. Mas fui lendo e ouvindo outras fontes, que falam com o mesmo discurso, de rappers a escritores, políticos, sociólogos, e fui-me encontrando. Mas foi difícil porque até no campo do hip hop não gostavam do hip hop que eu trazia. Primeiro porque era em português e porque eu trazia um rap africano. Era uma revolução dentro de uma revolução. Eu estava à procura das minhas raízes e as minhas raízes estão em África. E, analisando a coisa de forma fria e pragmática, parece-me o processo mais natural. Foi difícil na altura mas, a meu ver, tornou-me, a longo prazo, mais viável, daí hoje estar aqui e as pessoas ainda se lembrarem. Depois deste tempo todo ainda há espaço para mim e o que fiz ainda faz sentido e isso dá-me oportunidade de criar mais.
- Nunca se sentiu desconfortável no papel de "pai do hip hop português"?
Eu sou pai dos meus filhos. Tudo o resto é trabalho. Aceito que, na altura, era mais visível em termos de comunicação, mas isso não fazia de mim pior, melhor ou pai.
- Como analisa o o impacto do Rapública [primeira compilação de hip hop português, lançada em 1994]?
Teve um grande impacto e foi muito importante. Foi o primeiro disco que conseguiu aglomerar os nomes mais importantes que estavam, na altura, a fazer coisas. Eu não participei diretamente no disco, mas foi importante essa aglomeração de talentos e tenho muita pena de não se ter feito mais, devia ter continuado. A partir daí podiam-se ter feito mais concertos da Rapública, terem-se feito mais coisas juntos, mas ficou tudo disperso.
- Houve um sentido de comunidade que se perdeu?
Voltamos à mesma questão. Dispersaram-se porque pas pessoas da indústria que pegaram no que estava a acontecer não entendiam as questões sociais e culturais da matriz, então levaram cada um de nós para o seu meio. Na altura pensamos que aquele pode ser o meio onde posso singrar e isso leva a que se esqueçam os outros que estão à nossa volta. Mas, analisando as coisas com distanciamento, agora é a altura de voltar a pôr as coisas de volta. Não só eu, mas todos os protagonistas do início do hip hop, esses já têm condições financeiras e psicológicas, já vêem as coisas de outra forma e estão numa posição onde podem aglomerar as pessoas.
- Chegaste a fazer gravações para um terceiro disco, na Jamaica, com os Sly & Robbie, mas que nunca foram reveladas. Porquê?
Não encontrei grande recetividade para lançar. Tudo se estava a tornar cada vez mais difícil e, tenho de ser honesto, eu próprio estava a ficar psicologicamente, fisicamente, economicamente e familiarmente desgastado. Embora tivesse esse projeto, de que gostava muito, tive de largar tudo. A minha sanidade mental, psicológica era mais importante que qualquer outra coisa, do que um disco com Sly & Robbie. Mas hoje estou mais sábio e mais forte e em condições de retomar as coisas e criar situações que me beneficiam enquanto pessoa e beneficiam os que me rodeiam.
- Planeia voltar a viver em Portugal?
Onde vou viver é uma incógnita, se fico aqui, se na Inglaterra, porque tenho lá a minha vida, os meus negócios. Mas já decidi que vou voltar à música. Quero fazer mais um disco e mais uns concertos. Quero estar ligado ao movimento do hip hop em Portugal. Tenho consciência do papel que represento e do muito que tenho para dar. Assumo esse papel e essa responsabilidade. Posso não estar a viver aqui, mas há coisas em que é importante ter uma participação, como outros rappers. Não fujo a isso.
- Antes de se ter estabelecido em Londres por onde andou? Ouviram-se muitos rumores.
Havia muitos, dos mais bicudos. Quando estava no Brasil foi a altura em que ouvi mais rumores. Estava nas minhas calmas, a fazer a minha capoeira, a comer as minhas mangas, a curar-me a mim próprio. Mas sabia que não vali a pena responder. Nem havia Facebook para se responder de forma mais imediata, mas mesmo que existisse eu não o faria. Queria distanciar-me. A minha família sabia onde me encontrar e como me contactar, isso era o mais importante. mas além do Brasil estive algum tempo na Nigéria, Dubai, Gana, Estados Unidos.
- Como eram possíveis essas viagens?
Eu ia fazendo trabalhos aqui e ali. Tinha rendimentos. Nunca tive medo de trabalhar. Em Portugal o meu trabalho era a música e dedicava-me a ela 100%. Quando abandonei a música e o dinheiro acabou eu não sabia fazer mais nada, a música tinha sido a minha única forma de rendimento. Então tive de me reinventar, reaprender. Tive de criar um novo personagem, que é o Matsinhe [o rapper chama-se Sérgio Matsinhe], e, a partir daí, adaptei-me às novas circunstâncias e comecei a aprender novas coisas. Nunca tive medo de trabalhar, faço o que for preciso. Aprendi novas áreas e quando aprendia investia em mim próprio, nos meus filhos, na minha evolução enquanto pessoa.
- Em Londres acabou por assumir um trabalho que era o mesmo do seu pai, certo?
Sim, a gestão de propriedades. O meu pai fez isso sempre. Vi-o a fazer, ajudava um pouco, mas nunca pensei de vir a ter o trabalho do meu pai. Mas depois calhou. Fiz alguns cursos de gestão de propriedades. Primeiro comecei a vender e depois a ajudar outras pessoas a comprar e a vender. Na altura foi o boom financeiro e havia muita facilidade. Negociava com bancos, e como comprava as coisas em grandes quantidades, na empresa conseguíamos grandes descontos. Depois esse negócio quase que foi abaixo, com a crise financeira geral. Na altura perdi 80% da minha agenda de contactos, que foram à falência. Então pensei que as pessoam podem não poder comprar casas, mas têm de viver nalgum lado. Comecei então a fazer a gestão de casas, não só para mim mas para outras pessoas que estavam na Inglaterra e outras que estavam fora do País.
- Existe muita expetativa em relação a este concerto de regresso? Com quem estará em palco?
Existe muita expetativa e ansiedade, mas estou tranquilo e confiante. Tenho recebido muito carinho boas reações de pessoas que nem estava à espera. Ainda não houve quem não me tivesse dado força desde que cheguei. No concerto vou ter muitos convidados, como o Halloween, o Valete, Boss AC, Sam, os Family. Vou tocar músicas velhas com nova roupagem, porque os convidados trazem algo de novo. Acho que vai ser único. Para mim vai ser. Tenho feito algumas músicas novas, talvez apresente uma ou duas. Mas o conceito do próximo trabalho já está firmado.