Equívocos a respeito do liberalismo
por A-24, em 21.03.12
A simpatia e a admiração que nutro pelo Miguel Castelo-Branco e pelos seus escritos levam-me a esboçar uma breve réplica a um texto que, confesso, não esperava ver no Combustões, e que se visse em qualquer outro blog de que não seja leitor regular não me levaria a escrever este post. Faço-o não só pela estima que tenho pelo Miguel como também por saber que provavelmente poderá surgir daqui um interessante debate, se achar por bem. Aqui fica, por pontos:
1 - Que os homens são naturalmente desiguais não é, nem precisa de ser, uma prova de fé. É uma constatação derivada da mera observação empírica. Biológica, fisionómica e psicologicamente somos todos desiguais (ou diferentes, como alguns advogados do politicamente correcto preferem dizer).
2 - A que liberalismo se refere o Miguel? É que, como o Miguel bem sabe, não há um liberalismo mas vários. E o liberalismo clássico, brilhantemente refundado no século XX por Hayek e Popper (entre outros) não cai nas lógicas redutoras do anarco-capitalismo, essas sim as criticadas pelo Miguel e muito bem, até chegar ao último parágrafo e confundir isso com o liberalismo em geral. Tomar o todo pela parte, como se o liberalismo fosse uma única doutrina ou ideologia, é, parece-me, contribuir para uma confusão generalizada pelas mais do que banais e patéticas críticas ao neo-liberalismo, quando os seus vociferadores geralmente nem sabem do que falam (sabem lá eles distinguir entre liberalismo clássico, liberalismo continental, libertarianismo ou anarco-capitalismo) - trata-se do processo de externalização daquilo que não sabemos explicar para um mito, desta forma procurando confortar-nos a nós próprios e evitar confrontar a realidade e tentar percebê-la.
3 - Como o liberalismo em que me filio é o clássico, e como hayekiano, permita-me o Miguel o atrevimento de repudiar a confusão em que incorre, clarificando que Hayek insere-se numa linha de pensamento que perspectiva a democracia como um método que se preocupa essencialmente em limitar o poder de quem governa, o que é uma concepção característica da teoria e prática da democracia de origem anglo-saxónica, por oposição à concepção de origem francesa e continental que vê a democracia assente em princípios como o bem comum e a vontade geral. Para Hayek, embora o estado liberal não possa senão basear-se no governo limitado, tal não significa, contudo, que o estado tenha que ser necessariamente um estado mínimo[1], que alguns autores, como Robert Nozick, defendem. Hayek vê no estado um mal necessário que tem duas funções essenciais: a primeira, assegurar a manutenção das regras da ordem espontânea; a segunda, providenciar bens e serviços que a ordem espontânea não produz ou não pode produzir adequadamente.[2] Hayek limita a actuação do governo à observância de determinados princípios, e não sendo partidário do não intervencionismo ou laissez-faire admite, conforme nota André Azevedo Alves, “que um vasto conjunto de actividades governamentais pode ser compatível com uma sociedade livre.”[3] Aliás, mesmo na sua obra mais conhecida, Hayek afirma que nas sociedades industriais contemporâneas não há razão, dados os níveis de riqueza alcançados, para não garantir um mínimo de segurança económica a todos os cidadãos, sem que tal coloque em causa a liberdade individual.[4]
4 - Uma vigilância constante sobre o Estado é mais do que recomendável, na medida em que, devido ao perverso conceito de justiça social - cuja emergência permitiu novas reivindicações por parte dos cidadãos em relação ao governo, mas que permitiu a este um alargar discricionário dos seus poderes, conquanto que as suas acções sejam legitimadas em nome da justiça social[5] -, o estado de direito, ou seja, a lei enquanto princípio geral e abstracto, deixou de ser um limite à acção governativa, que passou a ser explorada pelos grupos de interesses, que assim puderam prosseguir os seus objectivos particulares à custa de terceiros, muitas vezes prejudicando a sociedade como um todo, mesmo que os indivíduos não o percebam ou até apoiem estes grupos de interesses, simplesmente porque estes recorrem à camuflagem dos seus intentos sob a capa da justiça social.[6] Que o Estado forneça os bens a que o Miguel alude, não é desculpa alguma para deixarmos de ser cépticos em relação ao exercício do poder, até porque teríamos que ser muito optimistas (ingénuos mesmo) em relação à natureza humana para tal. É por isto que o liberalismo tem uma concepção anti-estatista e anti-construtivista da vida e do mundo. Conforme Richard Bellamy aponta, a única forma de evitar que o governo se torne presa dos interesses particulares e adopte políticas que pretendem dirigir a ordem social para os fins daqueles, é limitar o raio de acção em que o governo pode utilizar os seus poderes coercivos para aumentar os seus recursos e organizar os indivíduos, retirando-lhe a capacidade de conceder benefícios a grupos de interesses. Isto pressupõe não só a separação de poderes como a obediência da acção governamental ao estado de direito.[7] Não há em nada disto uma diabolização do Estado ou a intenção de o abolir, muito pelo contrário.
5 - É muito discutível que, entre os vários bens/serviços que o Miguel aponta, a educação, o funcionamento regular do mercado ou as leis emanem do Estado: a educação, em Portugal pelo menos, era em larga medida providenciada pela Igreja; o verdadeiro mercado livre surge da acção humana, mas não é produto de qualquer desenho consciente, apenas necessitando da manutenção de regras de conduta gerais e abstractas (premissas kantianas) que, estas sim, podem ser impostas pelo Estado - o problema está em as regulamentações raramente obedecerem a estas premissas, sendo na verdade comandos específicos apropriados a ordens de organização e não a ordens espontâneas, acabando por perverter o funcionamento do mercado livre; as leis, se partirmos do jusnaturalismo, não emanam no Estado, e no sistema de direito anglo-saxónico são descobertas através de um processo análogo ao do mercado, por tentativa e erro. A apropriação destes e outros sectores pelo Estado é feita a posteriori e é largamente responsável pelos tempos de crise que vamos vivendo, em que a sustentabilidade financeira do Estado foi completamente descurada, colocando a soberania interna e externa em causa. Como assinalou Adam Smith em A Riqueza das Nações, "É a maior impertinência e presunção, portanto, em reis e ministros, pretender vigiar a economia de pessoas privadas, e restringir a sua despesa quer por leis sumptuárias, ou através da proibição da importação de luxos estrangeiros. Eles próprios são sempre, e sem qualquer excepção, os maiores gastadores na sociedade. Eles que olhem bem pela sua própria despesa, e poderão confiar seguramente a das pessoas privadas a estas. Se a sua própria extravagância não arruinar o Estado, a dos seus súbditos nunca o fará."[8]
[1] John Gray, Liberalism, 2.ª ed., Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. 70.
[2] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 1: Rules and Order, Londres, Routledge, 1998, pp. 47-48; Vol. 3: The Political Order of a Free People, p 41.
[3] André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 112.
[4] F. A. Hayek, The Road to Serfdom, Chicago, The University of Chicago Press, 2007, pp. 147-148.
[5] Mark S. Peacock, "On Political Competition: Democracy, Opinion and Responsibility", in Constitutional Political Economy, Vol. 15, N.º 2, 2004, p. 198.
[6] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 2: The Mirage of Social Justice, op. cit., p. 96.
[7] Richard Bellamy, "Dethroning Politics’: Liberalism, Constitutionalism and Democracy in the Thought of F. A. Hayek", in British Journal of Political Science, Vol. 24, N.º 4, p. 425.
[8] Adam Smith, The Wealth of Nations. Disponível em http://oll.libertyfund.org/index.php?opt ion=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ft itle=220&layout=html