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A-24

Ensaio para uma reabilitação da raça

por A-24, em 08.08.10
As palavras têm vida própria. Surgem da necessidade de definir uma coisa ou de expressar uma ideia ou sentimento. Podem constituir-se de sons que têm foneticamente a ver com a coisa expressa (como o c’ÃO, que lembra o seu ladrar), ou podem ser construídas de forma mais lógica e racional. Uma coisa é certa, quando a palavra se forma parece ser esse o seu momento mais representativo da realidade que pretende ilustrar. E a partir daí, a palavra entra numa espiral descendente e sem retorno, em que não mais pára de se corromper, até ficar tão distante do objecto que é pelas gentes abandonada e cai em desuso. Se não morre, a expressão fica no mínimo moribunda, aguardando que alguém dela se recorde e a recupere.
Uma das velhinhas palavras que parece estar pela hora da morte é “raça”. Pudemos diagnosticar um sintoma dessa fatalidade no ano passado, no dia de Portugal e de São Camões. No seu discurso, o Presidente da República tentou reabilitar o termo e invocou o “dia da Raça”, como outrora havia sido chamado. Todavia, ao invés de “raça” ter voltado à ribalta, todos caíram em cima do Primeiro-Damo por fruição tão reaccionária e imprópria da linguagem, tendo a expressão saído desta peripécia ainda mais escavacada.
Por culpa de uma memória colectiva acerca da História do Racismo, da dominação e subjugação de raças por outras raças, por culpa do medo e da culpa que as gerações actuais receberam de herança pelos erros de alguns antepassados (a. de sangue ou meramente culturais), por culpa do desejo de igualdade cada vez mais impregnado no ADN das gentes modernas, por culpa de todos estes factores e mais alguns, pouca gente quer falar de “raça”. Se tiverem mesmo de falar de alguma coisa, preferem usar o termo “etnia”, que é mais virgem e não está ainda tão contaminado pela História e pelas pessoas.
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O racismo acontece porque há uma diferença de pele. Mas fará sentido falarmos de raças, se está cientificamente provado que a diferença do ADN entre dois brancos pode ser maior que a diferença entre o ADN de um branco e um preto? A cor significa pouco, à-dê-énicamente falando. E a nível de estética, há cores de pele tão belas e que não são as nossas...
O racismo acontece também porque há uma diferença de cheiro. Mas fará sentido ter o próximo em menor conta por causa do seu odor diferente? Uma das coisas que os nórdicos notam de diferente em relação a nós, mediterrânicos, é precisamente o nosso cheiro peculiar. Os chineses também o notam, tal como notamos em relação a eles. O suor ucraniano, moldavo ou romeno, quem não estranhou a sua intensidade? E a tão conhecida catinga? E o cheiro de caril? Nós, porque somos nós, pensamos que não temos cheiro distintivo, e temos. É uma questão de educação aprendermos a conviver e a gostar destes e outros cheiros de pessoas. Amar a diferença. É o mesmo que eles fazem connosco...
O racismo acontece por razões culturais. Mas, em Portugal? Nós, que por vocação somos um povo aberto ao mundo? Não, essa não pega. A nossa cultura existe porque nos globalizámos, mais, fomos os mentores da primeira grande globalização, e se assim não tivesse sido, a nossa cultura seria muito mais moura, inglesa, espanhola, ou americana do que é hoje. É neste espírito de abertura que podemos continuar a sobreviver como cultura.
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O racismo acontece ainda por causa de traumas históricos herdados dos nossos antepassados, tenham eles sido os dominadores, os dominados, ou simplesmente conformistas e cooperantes. Mas fará sentido guardar esta herança como barreira que nos impede de nos darmos mais e melhor uns aos outros? Ou não valerá mais a pena tê-la apenas como uma infelicidade que devemos recordar na exacta medida em que nos salvar de cometer novamente semelhantes erros?
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Os portugueses são historicamente um povo de generosidade e aventura, de qualidades humanas que nos permitiram encontrar a amizade e o amor noutras raças e culturas. Deus criou o homem, e o português criou o mulato e o mestiço – diz a anedota, como que nos caracterizando, e bem. Os portugueses têm o jeito que Eminem ou Michael Jackson não tiveram para se integrarem e para se meterem na pele do próximo. O branco Eminem, que canta, fala, veste, tudo faz para ser preto, ou Jackson que aclara a pele que tinha para tentar ser branco, nem um nem outro têm sido bem acolhidos pela sociedade. Porquê? Espera-se de um branco que saiba nascer branco e de um preto que saiba nascer preto. Se o branco se quer aproximar de preto (ou vice-versa), que o faça por amor ao próximo e ao seu modo de estar na vida, mas sem negar as suas origens.
Há um ensinamento cristão que o português compreendeu bem ao longo da História, e que é muito valioso para este caso: “Ama o próximo como a ti mesmo”. Não sou sincero no amor ao próximo se renego as minhas origens, de onde venho. Não vou ser bem sucedido naquilo que quero ser enquanto rejeitar aquilo que fui e sou. Penso que é isto que Jackson e Eminem ainda não perceberam, e que podiam aprender connosco.
Afinal, parece que Cavaco estava certo: precisamos de um dia da raça. Contudo, tal só faz sentido se reconhecermos que a Raça Portuguesa não tem cor de pele, mas cor na alma... a cor do amor a Deus, ou pelo menos do amor ao próximo como a nós mesmos! 
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