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A-24

Eleven

por A-24, em 12.09.13
Todos os voyeurs serão castigados: esta parece ser a moral a extrair de um extraordinário conto de Patricia Highsmith, um dos mais memoráveis que li até hoje de qualquer autor. Intitula-se O Observador de Caracóis e, como tantos outros desta escritora, foi publicado originalmente numa revista de ficção científica, denominada Gamma, tornando-se universalmente conhecido só a partir de 1970, quando a autora decidiu incluí-lo a abrir uma colectânea de 11 contos -- quase todos obras-primas do género -- a que deu o anódino e quase irónico título de Eleven.



O mundo de Patricia Highsmith (1921-1995), como justamente assinalou Graham Greene em prefácio destinado a esta edição, é «irracional e claustrofóbico». Entramos nele sempre «com uma sensação de perigo pessoal» e raramente adivinhamos o seu desfecho.

Os norte-americanos, que adoram etiquetas e rótulos, apressaram-se a catalogar esta sua compatriota que optou por morar os últimos 32 anos de vida na Europa entre os autores de "suspense e mistério". Puro logro: ela é muito mais que isso. Qualquer tentativa de definição precisa da sua obra dentro dos parâmetros clássicos está condenada ao fracasso.

Que o digam todos os seus leitores atentos - entre os quais me incluo, desde o final da década de 80. Que o digam até as suas personagens, enredadas em kafkianas teias de taras, fobias e complexos de toda a espécie, onde matar ou morrer se torna tantas vezes o dilema dominante.

Personagens como o banalíssimo Peter Knoppert, residente num respeitável subúrbio nova-iorquino, um citadino inveterado tomado de uma ancestral nostalgia pelo reino da natureza que jamais conheceu. Sócio de uma firma de corretagem, um impulso momentâneo levou-o certo dia a chegar a casa com uma mão-cheia de caracóis.

«Nunca na minha vida me preocupei com a natureza», foi a lacónica justificação que deu a Edna, sua esposa (recorro aqui à tradução de Paula Reis para a edição portuguesa, com chancela da Teorema, em 1987, sob o título O Observador de Caracóis e Outros Contos, precisamente os que foram reunidos 17 anos antes emEleven).

Nada mais insignificante do que um caracol. Mas a vida naquela casa nunca mais foi a mesma. Sobretudo desde a noite em que o seco e circunspecto Knoppert se dirigiu à cozinha e fixou os olhos fascinados num casal de caracóis: «Mais ou menos erectos sobre a cauda, moviam-se um diante do outro como que dançando e, para todos os efeitos, pareciam duas serpentes hipnotizadas por um tocador de flauta. Viu, momentos depois, os seus focinhos tocarem-se num beijo de intensa volúpia. (...) Algo acontecia: uma protuberância, tipo orelha, aparecia no lado direito da cabeça de ambos os animais. O seu instinto disse-lhe que estava a observar um certo tipo de actividade sexual.»

Possuído deste insólito fascínio, passou a gastar todas as horas disponíveis na contemplação dos caracóis, ignorando as compreensíveis expressões de censura da mulher. A nível profissional, o seu desempenho melhorou. E, como tantas vezes sucede nas perturbantes páginas de ficção de Patricia Highsmith, começou a registar-se nele uma dissimulada mas crescente degeneração moral: «Tornou-se mais ousado nas suas jogadas, mais brilhante nos seus cálculos, na verdade tornou-se mesmo um pouco corrupto nos seus esquemas, mas arranjou dinheiro para a empresa. Por votação unânime, aumentaram-lhe o ordenado base, de 40 mil para 60 mil dólares. Quando alguém dava os parabéns ao Sr. Knoppert pelas suas proezas, este atribuía tudo aos seus caracóis e à descontracção benéfica que obtinha da sua observação.»


Na última vez em que Knoppert se deu ao incómodo de os inventariar, havia cerca de mil e duzentos espalhados pelo estúdio da sua casa. Depois disso, desistiu de contá-los: reproduziam-se a uma incrível velocidade, desmentindo todos os mitos sobre a lentidão dos caracóis e apoderando-se de todo o espaço disponível naquela divisão, até que a dado passo as criaturas se apossaram do criador, a natureza venceu a civilização, a animalidade mais rasteira e viscosa conquistou o sofisticadohabitat do próspero corretor, numa espécie de darwinismo às avessas.

Não é nada bonito espreitar por buracos de fechadura -- em sentido próprio ou figurado. Eis uma sábia lição de vida que teria sido certamente muito proveitosa a Peter Knoppert se ele tivesse vivido o tempo suficiente para a assimilar.

Anteriores contos desta série: 

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw

Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio

Empresta-nos o Seu Marido?, de Graham Greene

Um Cântico de Natal, de Charles Dickens

in Delito de Opinião