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A-24

“E tu, onde estavas no 25 de Abril?”

por A-24, em 25.04.13

Eu estava dentro de um útero. Curiosamente, como viria a nascer em Outubro, teria à volta de 12 semanas no 25 de Abril, o que daria à minha mãe – houvesse Lei da interrupção voluntária da gravidez – o poder de decidir se eu era ou não era; portanto, se estava ou não em algum sítio. É muito confuso: quem sabe, nessas circunstâncias legais, se eu chegaria alguma vez a ser? E se não chegasse, teria alguma vez sequer ter sido? Não vou perguntar à minha mãe: correria o risco de desenvolver mais um estigma, a acrescer aos que já tenho, como o de ser caracterizado como “um direitolas”.

“Um direitolas” é um ser, como se sabe, e por definição dos inventores do termo, uma coisa que repudia o 25 de Abril – o que é muito aborrecido porque não é o meu caso. Torna-se enfadonho tentar explicar aos que afirmam desejar derrubar preconceitos, que muito frequentemente eles próprios me preconceitizam(*). Por outro lado, quem sou eu para repudiar etiquetas que me colocam? Tatuem-me lá a coisa no pulso e siga-se para bingo: é que também tenho a desfaçatez de considerar que um dos importantes intervenientes para o fim do Estado Novo é deliberadamente omitido na discussão sobre o 25 de Abril – emigrantes de meios rurais.
Prosperidade. Muitos, nos anos 60 e 70 do século passado, rumaram com valises, da napa ao cartão, para as Franças, Bélgicas, Alemanhas, Luxemburgos, Suíças e outros, em busca de prosperidade. Sem Ryanairs ou Schengans, sem apoios fora do núcleo familiar ou da sua comunidade. Acreditem que não existia um “Gabinete de Apoio Estatal à Pessoa Humana em Busca de Uma Saída Profissional Institucionalizada”, era mesmo graças ao que alguns poderiam chamar de caridadezinha. O que lá encontraram, nessas Franças e afins, exportaram de forma inconsciente para a psique de uma nação: oportunidade de trabalho e pertença a um mundo além fronteiras, não isolado, não orgulhosamente sós, muito mais orgânico, mais livre, mais próspero. Um mundo com problemas, problemas enfrentáveis, problemas ultrapassáveis com esforço e determinação pessoal para a conceptualização de sucesso individual. Sobretudo, e sem pensarem no assunto, sem desenharem uma estratégia ou recorrerem a uma política ministerial ou agenda, iniciaram uma revolução: povão a viajar por esta Europa fora.
O 25 de Abril ocorreria em qualquer data, com ou sem tanques, com ou sem cravos. Era uma questão de tempo. Muitos falarão – e bem – do papel essencial da Guerra Colonial. Leiam e ouçam-os com atenção: muitos explicarão isso melhor que eu. Eu falo hoje para os pequeninos, já que uma característica do “direitolas”, pelo que percebo, é o populismo rural; não quero desapontar já no primeiro post.

Os emigrantes desempenharam um papel passivo, mas de grande importância. Todos conhecemos ou temos familiares que foram (ou são) emigrantes dos anos 60 e 70. Todos recordamos a época áurea dos meses de Agosto, os melodramáticos anos 80, cravejados de emigrantes divididos entre a ingénua ostentação de carros “bomba” e uma imagem do mundo que parecia tardar a Portugal, mesmo anos após o 25 de Novembro. Arraiais, mais ou menos proto-pimba, com odor a fritos e a promessa de regresso num dia longínquo, isto enquanto depositavam poupanças na Caixa Geral de Depósitos.
Os humanos – termo não “direitolas” seria “a pessoa humana” – buscam a prosperidade, anseiam-a. O 25 de Abril representou uma promessa, a de liberdade e prosperidade sucessivamente adiada. Adiada no singular: as duas estão demasiado interligadas, não podem ser separadas. Prosperidade implica liberdade; liberdade é o único caminho para a prosperidade. Por tudo isto, o 25 de Abril foi apetecível para a trupe revolucionária de filiações mais ou menos sino-soviéticas, mais ou menos dispostas a tornarem-se os depositários dessa liberdade. Muitos ainda aí andam, agora institucionalizados, conformados ao darwinismo político.
Para mim e para muitos portugueses nascidos em 1974, o 25 de Abril celebra um folclore libertador, a génese anunciada da mitologia democrática de um novo regime. Inversamente, o 25 de Novembro não é romântico: é a promessa de liberdade propriamente dita, a concretização mais ou menos conseguida da mitologia, a sua materialização pragmática. Pode festejar-se o 25 de Abril. Aliás, deve festejar-se: no dia 25 ainda não explodiam bombas nos sítios dos inconvenientes, ainda não se expropriava propriedade privada, ainda não se desenhava o país a régua, ainda não havia reforma agrária, ainda não se invertera o insulto “facholas“. O dia 25 foi a festa. A mitologia não pertence à esquerda ou à direita; por definição, pertence a todos. Rejubilemos, pois!
É dia de cravos, dois ou três foguetes, um discurso e umas cervejas com os “pás” do bairro. Podemos usar a data para recordarmos o que é uma revolução: a substituição de sangue, suor e lágrimas por mais sangue, suor e lágrimas. Devemos celebrar o emigrante: o português que não esteve com tretas e criou um pouco de Portugal onde ele não existia, sem cravos nem tanques, sem discursos enfadonhos ou indultos a bombistas. Depois de toda esta festa, devemos festejar o 25 de Novembro. Esta sim, festa com toda a pompa e circunstância, com cantigas de louvor ou até com os palavrões que quisermos; com blasfémias ou reverências; com salamaleques ou bonecos; com crítica e contestação fundamentada ou com “troika fora daqui, qu’eu é que tenho razão“. Porque graças a esse dia, ali, no taciturno Outono de 1975, conquistaram-nos verdadeiramente o direito de fazermos o que nos apetece, para o bem e para o mal. Este texto foi mesmo escrito ao abrigo do 25 de Novembro.
Já repararam, hoje em dia, que não faltam vozes do regime sugerindo saída do euro, exigindo o fim da austeridade, culpando líderes e povos estrangeiros, ansiando a hiper-inflação que os sustentará, como agentes regimentados supra-povo que são; este irónico deslize ao situacionismo do antigo regime, exigindo encarceramento ao “orgulhosamente sós” materializado nos “nós não somos a Alemanha” e “que se lixe a Troika”, é o ADN fascista que se refugia nos bradares aos “princípios de Abril”. Não emigrem. Não produzam. Não lutem, não olhem o espelho. Não “batam punho” – “eles” têm que nos resolver isto. Sempre o “eles” e sempre o “nós” passivo, inocente; sempre o “o mundo está a oprimir-me”; sempre o “dêem-nos as nossas vidas”. A terminologia imperialista, bélica, orgulhosa, nacionalista, socializante, desesperadamente oca. A inverdade. O newspeak orwelliano, a narrativa.
Afinal devo ser mesmo um “direitolas”: aceitei com muita honra o amável convite deste grupo de pessoas que escrevem num espaço de liberdade e estou agradecido pela oportunidade. Um não-”direitolas” nunca agradece: tira e usufrui o que considera seu por direito. Pior ainda, escrevi um texto que vos convida a celebrarem a mitologia do 25 de Abril, que como mitologia, se assemelha à festa nada laica da Natividade regimental, o quasi-milagre do caminho socializante em preâmbulo constitutivo.
Hoje, em dia de celebração, os meus foguetes são atirados para que se avance com a verdadeira (r)evolução, aquela que consiste em terminar a revolução que dura há exactamente 39 anos. Estou pronto, como qualquer “direitolas”, para o 26 de Abril.

Vitor Cunha no Blasfémias