Conquista de Abril: a libertação das mulheres (que começou antes de Abril)
por A-24, em 10.02.13
Henrique RaposoEste livro de ensaios de Helena Vasconcelos faz aquilo que um livro de ensaios deve fazer: provoca várias conversas, várias discussões, várias celebrações. Depois desta celebração , convoco agora um tema para discussão. Helena Vasconcelos diz que "a diferença entre as mulheres da minha geração e as que nasceram pós-25 de Abril é abissal". Ora, não tenho a menor dúvida em relação aos efeitos de Abril sobre a condição feminina. Aliás, quando surge a conversa das conquistas de Abril, a primeira coisa que me vem à cabeça é a emancipação feminina. Lá em casa, a minha mãe, ex-operária, ex-miss e precursora do uso da mini-saia, fazia questão de deixar isso bem claro.
Como diz a autora de Humilhação e Glória, "quando comparadas com as nossas 'irmãs' europeias" as mulheres portugueses podem sentir orgulho por terem "percorrido um caminho bem árduo num tempo mais curto". Mas quando é que começou esse "caminho bem árduo"? Depois de 74? Não, não me parece. Esse caminho começou a ser traçado pelas mulheres mais novas da geração da minha mãe. La mia mamma é a mais nova, e sempre existiu um abismo geracional entre ela e as irmãs. Aliás, a minha tia mais velha é como se fosse a minha terceira avó. A caçula, a minha mãe, era (e é) de outro planeta. E percebe-se porquê: saiu de casa cedo para trabalhar numa fábrica. As minhas tias só saíram de casa para "ir servir" em casas de malta rica ou para casar. Foram educadas para serem seres domésticos. Por oposição, a minha mãe foi a primeira mulher urbana da família. Com o crescimento brutal da economia registado nos anos 60 e com a consequente abertura à Europa, a sociedade portuguesa mudou para sempre, porque as raparigas começaram a trabalhar em fábricas e lojas. Estas raparigas dos anos 60 e inícios do 70 foram as grandes revolucionárias, porque desafiaram a autoridade do pai e do marido. Não queriam casar para sair de casa, queriam trabalhar para casarem em pé de igualdade com o maridinho.
Abril não iniciou o processo de emancipação das mulheres portuguesas. O pós-74 continuou esse processo e, acima de tudo, deu-lhe forma jurídica. A sociedade portuguesa tem mais continuidades do que aquelas que nós, crentes na democracia, estamos dispostos a ver. E, quando recusamos ver essas continuidades, acabamos por trair a geração que começou a fazer a mudança. Naqueles anos pré-74, usar mini-saia era um acto de rebeldia quase político , recusar a vidinha do "ir aprender a servir" era um acto de bravura, desafiar pai e marido era um acto de coragem. E eu não esqueço a coragem desta geração de mulheres, a geração da minha mãe e da Helena Vasconcelos.