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A-24

Blasfémias

por A-24, em 05.09.11
A fábrica do mundo é a China, o centro de serviços é a Índia, os Estados Unidos são o centro comercial, e a Europa é um museu. Ouvi esta definição há meia dúzia de anos e ela parece-me cada vez mais pertinente. Com uma nuance: na altura ainda podia parecer agradável viver num museu, hoje está a revelar-se insuportável. Como tem resultado evidente durante esta crise das dívidas dos países periféricos.
Pelo menos desde que Oswald Spengler publicou, em 1917, A Decadência do Ocidente, que se discute o fim da hegemonia europeia ou, se preferirmos, da hegemonia atlântica para podermos incluir os Estado Unidos. Ainda ontem o historiador britânico Timothy Garton Ash voltou ao tema no Guardian, Lembrando Spengler, num texto sintomaticamente intitulado “Os Estados Unidos e a Europa empenhados numa competição pela decadência”. Nessa crónica punha o dedo na ferida: “De ambos os lados do Atlântico temos vivido acima das nossas possibilidades”.
Até à crise de 2008 as formiguinhas do mundo – na alegoria com que abri esta peça, os chineses e os indianos – iam trabalhando o suficiente para sustentar o desvario consumista dos americanos e o conforto adormecente dos estados de bem-estar europeus. Agora esse tempo acabou, e não deixa de ser significativo que Europa e Estados Unidos tenham chegado, ao mesmo tempo, à beira do precipício. Ou que os dilemas que enfrentam sejam, sobretudo na Europa, dilemas que desafiam não só modos de vida a que nos habituámos, como instituições que levámos décadas, ou mesmo séculos, a construir. Vale pois a pena perceber o que está a acontecer para vermos como é fácil, em nome da economia e de construções utópicas, minar hábitos democráticos e equilíbrios institucionais.
Quem quer que tenha folheado os jornais ou ouvido televisão por estes dias não conseguiu fugir à explicação autorizada da origem de todas as dores europeias. Primeiro que tudo, faltariam líderes à Europa, pois ninguém no Velho Continente se ergueria à altura dos “deuses” da construção europeia. Depois disseram-se que, na Alemanha, mora uma bruxa má que, parece, quer destruir o legado dos seus antepassados visionários. Por fim, repetiu-se por todo o lado que a única solução para a crise passaria por uns famosos eurobonds ou algo equivalente, ou seja, por um mecanismo que levaria as economias sólidas do centro da Europa a garantir as dívidas dos mal-comportados da periferia. Explicaram-nos até por que razão a Alemanha está condenada a ter de voltar a assinar o cheque, pois fá-lo-á “em nome do seu próprio interesse”.
Não deixa de ser curiosa a forma como, neste mantra repetido a toda a hora, se invertem os valores morais: a culpa da crise das dívidas, por exemplo, deixa de ser de quem se endividou para passar a ser de quem cumpriu as regras. Pior: ao mesmo tempo que, em abstracto, se protesta contra “os bancos”, em concreto entra-se em alvoroço quando os bem-comportados solicitam, com absoluta legitimidade, que se divida com esses mesmos bancos alguns dos ónus associados à operação de resgate de quem gastou irresponsavelmente o que não tinha nem podia gastar.


O mais grave nestes raciocínios é a forma perversa como continuam a olhar para o processo de construção europeu, mantendo-se fiéis ao que podemos designar como a “agenda oculta” dos pais fundadores: manietar a Alemanha mantendo “a bicicleta em movimento”, isto é, aproveitando todas as crises para aprofundar a integração e a federalização da Europa. A moeda única, recorde-se, foi uma concessão arrancada por Miterrand à Alemanha para aceitar a sua reunificação. Agora, em nome da “não desintegração” dessa moeda única, quer-se impor à Alemanha a aceitação de um laxismo que esta tentou impedir com o Tratado de Maastricht. Mas não só. Apesar de os povos europeus se terem sempre oposto – sempre que foram consultados – a novas transferências de poder para o centro da União Europeia, não falta quem, em nome da crise, queira impor uma subversão dos tratados que passará pela existência de mais poder federal e por novos mecanismos de transferência de recursos financeiros entre Estados.
Robert Schumann e Jean Monnet, dois dos pais-fundadores da Europa unida, imaginaram que, em cada crise, forçando o caminho para mais integração se iria também forçando a própria realidade, e a verdade é que esse mecanismo funcionou até agora, como recordava John Kay esta semana no Financial Times. No entanto o processo implicou sempre riscos e, desta vez, chegámos a um ponto que foi bem sintetizado por Jeremy Warner no Daily Telegraph, pois o “economicamente insustentável” – o euro na sua forma actual – entrou em choque com o “politicamente inaceitável” – a união fiscal necessária para o salvar. Velhos discípulos dos pais fundadores, como o grupo de europeístas encabeçado por Jacques Delors que assinou um texto no Le Monde, mantêm-se na linha de forçar a realidade: “a necessidade fez a lei”, escreveram para saudar o que vêem como novos instrumentos de “governação económica”.

Desta vez, porém, a Alemanha tem resistido o mais que pode, e compreende-se porquê. Primeiro porque, como lembrava Geoffrey T. Smith no Wall Street Journal, “todos os governos alemães desde 1991 prometeram aos contribuintes que estes nunca teriam de honrar dívidas contraídas por outros países”, razão por que os eleitores aceitaram uma década de austeridade. Depois porque um sistema em que as dívidas dos países incumpridores são garantidas pelas boas contas dos países cumpridores é um estímulo ao incumprimento. Logo uma receita para desastre futuros.

Durante mais de cinco décadas foi possível gerir este mecanismo da “bicicleta” – ou da fuga em frente face a cada crise – porque, apesar das previsões de Spengler, a Europa manteve-se não apenas como uma região de bem-estar, mas também como um dos motores da economia global. Hoje perdeu esse papel e o estrondoso fracasso da famosa “estratégia de Lisboa” não permite qualquer optimismo face ao futuro. Como se isso não fosse suficiente, a Europa é, a par com o Japão, uma região do mundo em processo de acelerado envelhecimento, tendo perdido o dinamismo demográfico e confrontando-se com a necessidade de ter de cuidar de cada vez mais idosos. A alegoria do museu é, neste domínio, especialmente certeira.

Ora uma região do mundo que enfrenta este tipo de problemas não pode pensar que, face ao precipício, basta tomar balanço e saltar para o outro lado. Pelo contrário. Necessita de rever não só o seu modo de vida – e não de pedir aos alemães para consumirem mais, como estava na moda fazer há apenas um ano… – como de questionar as suas instituições. A austeridade não corresponderá a um período transitório após o qual se regressará à folia dos anos de boom, antes terá de permitir uma revisão em baixa dos padrões de vida, encontrando equilíbrios ao mesmo tempo mais justos e mais sustentáveis. A crise nas instituições europeias também não deve estimular mais integração, pois ela não corresponderia ao nível de integração das diferentes identidades europeias e não seria servida por instituições realmente democráticas (as instituições europeias não cumprem os mínimos em termos de requisitos democráticos, é bom reconhecer).

Talvez no curto prazo, para evitar males maiores nesta fase de turbulência financeira, seja necessário encontrar mecanismos europeus mais integrados do que os actuais. Será até inevitável. Porém gostaria de encontrar líderes europeus que, em vez de continuarem a sonhar com utopias federalistas e de falaram da “sua” Europa, equacionassem a melhor forma de fazer marcha-atrás em todas as áreas onde isso se revele necessário. Alguém capaz de dizer, com José Régio: “Sei que não vou por aí!”
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