As mulheres divinas
por A-24, em 15.08.13
Isoladas em uma floresta no Nepal, as Hana Tharu criaram uma sociedade que já dura 400 anos
Com um bebê no colo e as criancas maiores já dormindo, Ram Putti senta-se à fogueira noturna com membros de sua família ampliada, que inclui várias mulheres que dividem as tarefas domésticas. Algumas fumam e, num canto, dois homens remendam redes de pesca. Logo elas começam a discutir sobre um casamento arranjado que não deu certo.
Quando se trata de questões amorosas, o sorriso das mulheres vira uma acirrada troca de opiniões que se intensifica com a fumaça. Diz uma lenda que foi um assunto do coração que levou o povo tharu à isolada região em que vive no sul do Nepal.
Lal Bahadur, um ancião desse subgrupo conhecido por rana tharu, contou-me que, após a invasão da Índia pelos mongóis no século 16, os rajputs, então membros de uma casta superior do Rajastão, entraram em conflito com um rei muçulmano que queria se casar com uma jovem rajput. As mulheres e as crianças fugiram para o leste, através da Índia, enquanto os homens ficaram para lutar.
Os tharus, como os refugiados ficaram conhecidos, estabeleceram-se numa região de florestas chamada tarai, que se estende por 885 quilômetros no sopé do Himalaia, ao longo da atual fronteira entre o Nepal e a Índia. Quando souberam que todos os homens rajputs estavam mortos, as mulheres começaram a casar-se com os escravos que as acompanharam ao tarai. Os tharus continuaram isolados do mundo externo – protegidos, ironicamente, pelos mosquitos transmissores da malária, que afastou da região os forasteiros.
Embora não sejam imunes, os tharus desenvolveram certa resistência a essa doença letal. Construíram suas casas com materiais da própria floresta e passaram a cultivar a terra e a pescar nas corredeiras dos rios locais.
A vida dos tharus permaneceu simples por quatro séculos. Pouco do que vejo ao redor não foi feito por suas mãos. Rebocadas por dentro e por fora com lama e esterco de vaca, as paredes de suas casas são tão macias que parecem ser de pele.
Os recipientes de argila, os trajes bordados, as redes de pesca que tecem – tudo o que tocam, enfim – são obras de arte.
Contudo, o que vem de fora do tarai – mesmo que seja em nome do progresso – é menos benigno. Estrangeiros introduziram o inseticida DDT durante a década de 50.
A malária foi erradicada, mas com ela desapareceu também a barreira natural contra a intrusão do exterior. Ao contrair empréstimos para pagar as mercadorias que os forasteiros lhes traziam, muitos tharus assinaram documentos que não entendiam – e isso os tornou arrendatários da própria terra. A excessiva derrubada de árvores e um mau gerenciamento das florestas também ameaçam o futuro desse povo.
Mas os dias vão passando. Sempre chove à noite. Ao acordar, deparo com manhãs úmidas e cinzentas. No crepúsculo, retorno à minha tenda. Em uma dessas noites, Chanda, uma mulher idosa, convida-me à sua casa. Ela quer me agradecer por tê-la ajudado a conseguir remédios. Chanda desaparece em seu jardim. Ouço os sons de um pequeno tumulto e, em seguida, ela aparece com uma galinha gorda na mão, os pés da ave amarrados por uma corda. Aqueles que menos têm são os mais generosos. Eu não preciso da galinha, mas Chanda não dá atenção a meu protesto e empurra a ave na direção de minha barriga, querendo dizer que é para ser comida. Por alguns minutos empurramos para lá e para cá a galinha dependurada – até que esta pára de resistir e fecha os olhos.
Preciso aceitar alguma coisa e aponto para uma cabaça pendurada no teto. Chanda ergue as sobrancelhas, perguntando-se o motivo de eu escolher um objeto sem valor em vez de uma refeição quente. Enquanto desamarra o pote, sua filha Kurowa sai da casa e me diz para levar o pote e a galinha. Estou feliz com o pote. Aperto as mãos de Chanda e deixo mãe e filha com a galinha.
As mulheres rana tharus nunca perguntam quando partirei e sim quando estarei de volta. Elas não consideram seu mundo pequeno. Tampouco vêem a floresta como uma camada de proteção contra o resto do planeta.
Mas, quando se forem sua floresta e a cultura que ela sustenta, a perda será incalculável. No dia da minha partida olho para trás através do vidro empoeirado do meu jipe e vejo as mulheres acenando.
Elas são como flores fechadas em uma cápsula de tempo, como a própria divindade.
Veja EDIÇÃO 05/SETEMBRO DE 2000