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A-24

"As asas do desejo"

por A-24, em 12.04.10
A aspiração de liberdade, a ideia de uma revolução pacífica, a sensação tão difícil de descrever - mas que tantos da minha geração tiveram a felicidade de viver - de estarmos a testemunhar um dia histórico, um daqueles momentos em que se sente que tudo é possível. Mas há mais aspectos que aproximam as duas datas, a da Primavera portuguesa em 1974 e a do Outono de 1989 em Berlim. Por um lado, o carácter súbito e, em geral, inesperado como se pôs termo a regimes que em ambos os casos duravam há mais de 40 anos e que para muitos pareciam inamovíveis. Por outro, a aparente facilidade, quase miraculosa, como tudo se passou, praticamente sem recurso a qualquer tipo de violência.
No entanto, num plano pessoal, segui os dois acontecimentos de um modo bem diferente. Em 1974, tinha acabado de completar 18 anos e estava no primeiro ano da universidade. Em 1989, ocupava funções governativas, era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, e tive ocasião de acompanhar os movimentos de transformação que então emergiam na Europa Central e de Leste: em primeiro lugar, na Polónia, resultado directo da acção do movimento Solidariedade e da intervenção determinada do seu líder, Lech Walesa, assim como da influência não tão explícita mas não menos decisiva de João Paulo II; passando pela glasnost e perestroika de Gorbatchov; pelas transformações na Hungria, país que esteve no centro do êxodo de milhares de alemães de Leste num movimento que prenunciava já o fim do regime; não esquecendo o movimento de oposição Carta 77 na Checoslováquia que teve como ícone esse grande nome da resistência ao totalitarismo que foi e é Vaclav Havel.

Compreende-se pois que tenha sido com um grande sentimento de humildade que, no passado dia 3 de Outubro, no dia da reunificação alemã, recebi em Berlim, das mãos do primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, o prémio Quadriga, também atribuído nessa ocasião a Mikhail Gorbatchov e Vaclav Havel. Estes são indubitavelmente personalidades históricas que contribuíram de modo essencial para a mudança geopolítica do nosso continente e até do mundo. Mas, ao quererem distinguir o presidente da Comissão Europeia, os organizadores do prémio quiseram sublinhar a ligação entre as transformações de 1989 e o facto de esta Comissão Europeia ser a primeira da reconciliação europeia, a primeira de uma União com uma dimensão já continental. De facto, foi aquela revolução de 1989 que tornou possível a Europa reunificada do início deste século.
Nem sempre é devidamente sublinhado que, em muitos dos movimentos de oposição ao totalitarismo, uma das reivindicações centrais era precisamente a do "regresso à Europa". Os princípios programáticos do Fórum Cívico na ex-Checoslováquia afirmavam como objectivos gerais: 1) um Estado de direito, 2) eleições livres, 3) justiça social, 4) respeito pelo meio ambiente, 5) um povo educado, 6) prosperidade e 7) o regresso à Europa. Aspirações que me transportam, mais uma vez, ao 25 de Abril de 1974 e à transição democrática portuguesa. Para nós, naquela altura, a Europa também se confundia com democracia e prosperidade social. Por isso sinto-me sempre muito próximo desta geração que viu nascer a democracia na Europa Central e de Leste e foi com convicção que partilhei com eles a alegria de uma Alemanha reunificada. A este respeito, não posso deixar de lamentar a mediocridade de alguns políticos que quiseram adiar a reunificação da Alemanha, pretendendo sentenciar dessa forma à perpétua divisão a pátria de Kant, Goethe e Beethoven. Aprendi a nutrir admiração e simpatia pela Alemanha desde os tempos em que, antes ainda do 25 de Abril de 1974, frequentava o Instituto Alemão para poder ver alguns dos filmes proibidos pela censura de então. Não me parecia por isso correcto que, já no final da década de 80, as aspirações de milhões de pessoas à democracia e liberdade ficassem comprometidas por cálculos geopolíticos.
A queda do Muro de Berlim, para além de significar o derrube do totalitarismo, é também o símbolo mais expressivo da reunificação, não só da Alemanha, mas da própria Europa. A este respeito ocorre-me o que me contou um dia Wim Wenders acerca das dificuldades que teve de enfrentar para realizar As Asas do Desejo. Dizia-me o cineasta alemão que o seu objectivo era o de, numa determinada cena, os anjos do filme, Daniel e Cassiel, aparecerem sentados em cima da porta de Brandemburgo, então em Berlim oriental. Solicitou por isso um encontro com as autoridades da ex-RDA que até o receberam de forma cordial, dado que tinham considerado o seu anterior filme, Paris, Texas, uma crítica velada à sociedade americana. Todavia, quando Wim Wenders expôs ao então secretário de Estado da Cultura da Alemanha oriental o seu propósito de espalhar anjos pela cidade, inclusive na parte Leste, foi confrontado com um riso sarcástico, acompanhado de um rotundo não e da seguinte explicação: "Então o senhor julga que vamos permitir que utilize anjos no filme? Os anjos podem passar os muros, sabe?"
A verdade é que as asas do desejo de liberdade e democracia que sobrevoaram Portugal em 1974 acabaram mesmo por passar em Berlim em 1989 e visitarão outras paragens de cada vez que a vontade dos povos as continuarem a convocar.

Por José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europei