Argentina: Histórias de desaparecidos 30 anos depois
por A-24, em 22.07.10
Laura F., Eduardo, Sergio, Bettina, Hugo, Blanca, Laura D.
Alfredo Astiz, torturador da Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), conhecido como “anjo da morte”
Laura Feldman tinha 18 anos quando foi sequestrada em Buenos Aires, a 18 de Fevereiro de 1978. Tinha acabado de regressar de uma semana de férias com o pai e os raptores estavam à sua espera na pensão onde vivia. Laura ainda andava no liceu, mas pertencia ao grupo Montoneros (guerrilha da esquerda peronista) e, desde 1976, tinha deixado o seu liceu do centro da cidade para frequentar uma escola secundária num bairro pobre (os militantes podiam escolher entre essa opção e ir trabalhar para uma fábrica)
Na Argentina, o verbo “desaparecer” conjuga-se de uma maneira diferente desde que, nos anos da chamada “guerra suja”, durante a segunda metade dos anos 1970, as forças “anti-subversivas” dos sucessivos governos militares fizeram “desaparecer” entre dez mil e 30 mil pessoas, conforme as fontes. Laura “foi desaparecida” num sábado; na segunda-feira seguinte, um rapaz apresentou-se em casa do tio de Laura (irmão do pai), alegando que ela estava em sarilhos e que precisava de dinheiro e do passaporte.
O tio respondeu que só daria o dinheiro se a sobrinha lho viesse pedir em pessoa. Isso não aconteceu – e já toda a família suspeitava de que algo de muito mau tinha acontecido. Poucas horas mais tarde, alguém entrou em contacto com o pai de Laura (o cineasta argentino Simón Feldman) e marcou um encontro com ele para terça-feira, dizendo-lhe que Laura tinha de fugir do país e que ele devia trazer todo o dinheiro que conseguisse juntar. Simón vendeu tudo o que tinha de valor – quadros e outros objectos. Ao encontro acudiram dois homens, que lhe tiraram o dinheiro, lhe disseram para esquecer a filha e o abandonaram num descampado.
“Entraram em contacto comigo através de um jovem (…) que marcou um encontro comigo num café [dos arredores de Buenos Aires]“, testemunhou Simón, em Setembro de 2001, perante a Comissão Israelita pelos Desaparecidos Judeus na Argentina. “Quando cheguei, estava lá um homem (…) que me levou até a um carro onde havia um outro homem (…). Disseram-me para baixar a cabeça e fechar os olhos e levaram-me para um descampado onde já pude olhar. E aí disseram-me exactamente: “Perdeste.” Eu comecei a perguntar por Laura, eles responderam que não sabiam nada e pediram-me o dinheiro, revistaram-me os bolsos (…) e tiraram-me tudo o que tinha. Lembro que, nessa altura, apareciam cadáveres crivados de balas em muitos descampados, portanto agradeço ter tido a sorte de me deixarem ir (…).”
“Os delinquentes eram obviamente do grupo dos sequestradores”, diz-nos ao telefone a partir de Buenos Aires Ana Nora Feldman, a irmã de Laura, um ano mais velha do que ela, enquanto vai desfiando a sinistra história de há mais de três décadas.
Quando Laura foi raptada, Ana vivia com a mãe em Roma, para onde tinha ido em Agosto do ano anterior. O pai tinha conseguido convencê-la a abandonar a Argentina. “Eu era militante, estava clandestina, o meu companheiro tinha morrido, não tinha dinheiro, nem documentos – o meu pai convenceu-me a sair e acompanhou-me até ao Brasil”, recorda Ana.
O medo da família tinha ido em crescendo a partir de Janeiro de 1977, quando as casas do pai e da mãe de Laura e Ana – a mãe, Mabel Itzcovich, era jornalista – foram objecto de uma rusga (allanadas), bem como a casa de férias da família à beira-mar. A mãe saíra logo de casa, mas “seguiam-na a toda parte”, diz Ana. Estavam obviamente à espera de que ela as conduzisse até às filhas. Dois meses depois, em Março, Mabel emigrou para Itália – e Ana acabou por lhe seguir os passos poucos meses depois.
Mabel viria a saber mais tarde que, quando a sua casa fora assaltada, em Janeiro de 1977, Laura se tinha cruzado com os assaltantes na escada e lhes tinha dito que ia visitar uma amiga no terceiro andar. Quando os homens arrombaram a porta, depararam-se com uma foto de Ana e Laura e perceberam que aquela rapariga vivia lá e lhes tinha mentido para conseguir fugir. Foram ao terceiro andar e raptaram a mãe e uma das filhas da família. A filha nunca mais reapareceu.
Simón também tentara convencer Laura a sair do país, mas ela nunca quis sequer discutir a questão. Achava que o seu lugar era na Argentina e o seu dever combater a ditadura. “Quando lhe disse que me ia embora”, diz Ana, “zangou-se muito comigo.” Partir era uma traição. Laura era, conta a irmã, “alegre, estudiosa, teimosa, uma romântica total (adorava telenovelas)” e tinha um certo mau feitio. E, quando começou a militar, levou isso muito a sério. “A partir de 1976-77, não havia nenhuma possibilidade de oposição política fora de uma estrutura armada”, frisa Ana. E Laura, que tinha começado por participar nas lutas dos estudantes secundários, abraçou então totalmente a causa dos Montoneros. Mas a situação degradou-se rapidamente. “As pessoas [militantes] que ficaram a seguir a 1977 andavam muito perdidas”, acrescenta Ana. “Já não havia estrutura de apoio, nem dinheiro, nem nada.”
Quando Simón regressou a casa naquela terça-feira, depois de ter sido atacado e roubado, telefonou para Roma e, em “linguagem de código”, contou à ex-mulher e à filha mais velha o que se passava. E começou a procurar Laura – nos hospitais, nas esquadras de polícia, nos hospitais psiquiátricos, para descartar a possibilidade de que ela tivesse sofrido algum acidente, ou sido detida, ou alguma coisa do género. Mas em vão.
Um coração na parede
Ao longo dos dois a três anos que se seguiram, Simón apresentou nove pedidos de habeas corpus (inventando de cada vez novos factos, explica Ana, uma vez que só assim era permitido apresentar mais do que um). Todos foram rejeitados. “Ele teve sempre a esperança de que a iria encontrar”, diz Ana, “de que ela seria libertada.
Seguiu-se um longo período durante o qual a família não soube nada de Laura, embora os pais tenham continuado, durante esse tempo todo, a tentar mobilizar diversas autoridades internacionais. Mabel, em particular, conseguiu através do conhecido escritor italiano Primo Levi uma entrevista com o embaixador de Israel em Roma – e também escreveu cartas ao Vaticano e aos políticos italianos.
“Em Itália, um escritor amigo da minha família, Primo Levi, conseguiu obter-me uma entrevista com o embaixador de Israel. Isso foi em Março de 1978″, contou por seu lado Mabel, perante a mesma comissão israelita, em Setembro de 2001. “O embaixador recebeu-me com muita amabilidade, ouviu o meu relato e as minhas preocupações e prometeu averiguar o assunto. Durante uns tempos não obtive resposta, um dia telefonei para perguntar e respondeu-me um dos secretários, que me disse que se tinham informado e que [Laura] estava em lugar incerto, não me sabia dizer onde – acrescentando, como justificação, que não poderiam continuar a investigar porque a minha filha era montonera.”
“Trataram muito mal a minha mãe na embaixada de Israel”, recorda Ana. Basicamente, disseram-lhe que, como Laura era montonera, o que lhe tinha acontecido era de esperar.
Só anos mais tarde é que Ana começaria a receber algumas informações quanto ao destino da irmã: “Em 1979-80, chegou-me da Suécia a informação de que a minha irmã tinha sido vista num campo [de concentração]. E, quando regressei à Argentina em 1987, conheci uma rapariga que tinha estado desaparecida cinco anos e que me contou que tinha estado presa no centro clandestino de detenção El Vesubio (na província de Buenos Aires) e que aí tinha visto numa parede um coração com a inscrição “Penny e Ángel”.” Penny era o nome clandestino de Laura e Ángel o do namorado, Eduardo “Angelito” Garuti, desaparecido no mesmo dia e em condições semelhantes às de Laura. “Porém, quando essa rapariga chegou ao campo, em Abril [ou seja mês e meio depois do rapto de Laura], disseram-lhe que Laura já tinha sido levada para outro sítio.” Mais recentemente, em 2005-2006, Ana soube que uma outra rapariga tinha visto Laura, ainda viva, no El Vesubio.
Antropologia forense
Foi em 1995, quando Ana regressou definitivamente à Argentina, já instaurada a democracia, que a mãe Mabel, que já tinha regressado há uns anos, lhe falou do trabalho da Equipa Argentina de Antropologia Forense (EAAF), uma ONG (organização não governamental) fundada em 1984 que andava a tentar localizar e escavar valas comuns pelos cemitérios do país todo, à procura dos restos mortais de desaparecidos. “A equipa foi criada para dar resposta à necessidade de investigar o desaparecimento de cerca de 9000 pessoas como consequência das acções do regime militar que governou a Argentina de 1976 a 1983″, explica-nos por email Cecilia Ayerdi, do EAAF. “Actualmente”, acrescenta, “temos à nossa guarda cerca de 800 restos, dos quais falta identificar 700.”
Ana entrou em contacto com eles: “Forneci-lhes o registo dentário da minha irmã, que fui buscar ao nosso dentista de infância, uma foto de Laura a sorrir (para se verem os dentes), fotos dela com o braço partido da altura em que vivemos em Paris, quando Laura tinha 10 anos”, explica Ana. No ano 2000, quando as análises ao ADN começaram a tornar-se mais correntes, Ana foi uma das primeiras a fornecer também uma amostra do seu sangue para uma eventual identificação genética (hoje cerca de 6500 familiares de desaparecidos já fizeram o mesmo). Em 2003, Mabel também deu sangue. Mas Simón não: “O meu pai teria ficado muito perturbado, foi quem mais sofreu com tudo isto, e como me disseram que não era preciso, não lhe pedi para o fazer.” Simón nunca quis sair do país desde 1978, sempre à espera de um hipotético e cada vez mais improvável regresso de Laura.
No dia 24 de Agosto de 2004, o EAAF desenterrou as ossadas de cinco pessoas num cemitério em Lomas de Zamora, nos arredores de Buenos Aires. “O que sabíamos”, explica Cecilia Ayerdi, “é que a 14 de Março de 1978 tinham sido encontrados cinco NN (ningún nombre, pessoas sem nome), duas mulheres e três homens, no cruzamento das ruas Virgílio e Urunduy da localidade de Lomas de Zamora. A polícia (…) foi chamada e, nesse mesmo dia, os cinco cadáveres NN deram entrada no cemitério de Lomas de Zamora, sendo inumados na mesma vala, situada na secção 31, letra K, sepultura 110.”
Em Outubro do mesmo ano, começaram os estudos periciais para tentar identificar as ossadas. A acta policial conservada pelo cemitério referia tratar-se dos restos de quatro pessoas com 17 a 19 anos de idade e uma com 26.
O facto de o local não se situar muito longe de El Vesubio levou os peritos do EAAF a pensar que se pudesse tratar dos restos de presos daquele campo de concentração. Para mais, no ano 1978 os sequestros de jovens já eram muito menos frequentes. Por isso, pensaram logo em Laura.
“Numa primeira fase, porém”, explica Ana, “descartaram essa hipótese porque não encontraram o namorado de Laura nessa mesma campa.” Ángel tinha 21 anos quando desapareceu, idade que não correspondia à de nenhuma das ossadas.
Testes de ADN
Mais tarde, em meados de 2008, acabaram por realizar um teste genético e conseguiram determinar que havia 90 por cento de probabilidades de que o ADN de Ana e o ADN de uma amostra de osso ali encontrado proviessem de duas pessoas da mesma família. “Mas isso não chega para uma identificação formal”, diz Ana; “a probabilidade tem de ser de 99,99 por cento.” Por isso, o EAAF enviou as amostras para um laboratório nos EUA com quem tem um acordo desde 2008 – e aí a identificação foi finalmente feita com 99,99 por cento de certeza. “Avisaram-me em Novembro de 2008″, diz Ana. A certidão de óbito da irmã foi-lhe entregue no dia a seguir à nossa conversa telefónica.
“Só quando enviámos as amostras para os laboratórios Bode [líder mundial da análise forense de ADN], nos EUA, em Julho de 2008, é que conseguimos obter ADN nuclear do osso. Até aí, o laboratório com o qual trabalhamos na Argentina não tinha conseguido”, diz Cecilia Ayerdi. “Já foram identificados dois homens e a outra mulher [que estavam nessa vala]; falta identificar um homem”, acrescenta.
Foi, diz-nos Ana, a equipa forense quem acabou por reconstituir o que tinha acontecido a Laura – e contá-lo a Ana (a mãe, Mabel, faleceu pouco antes da descoberta da campa).
“O trabalho da EAAF é de facto incrível”, diz Ana. “Têm uma enorme base de dados onde o nome de cada desaparecido está associado a uma série de informações, tais como a data do sequestro, local do sequestro, se alguém viu a pessoa e onde, em que grupo militava, etc.” Desta forma, quando encontram ossadas, conseguem cruzar os dados forenses com dados históricos e antropológicos para fazer a identificação
Laura foi sequestrada a 18 de Fevereiro de 1978, no âmbito de uma operação onde caiu toda a coluna montonera da zona sul de Buenos Aires, disseram-lhe. Isso aconteceu na sequência da queda de um outro grupo, que trabalhava numa fábrica, porque alguém desse grupo falou sob a tortura. “Consegue-se reconstituir a cronologia dos sequestros sucessivos”, diz Ana.
Laura foi levada para o campo de El Vesubio, disseram-lhe ainda, onde permaneceu até 14 de Março, o dia em que ela e mais quatro companheiros foram assassinados com uma bala na cabeça – tal como o atestam os crânios encontrados no cemitério de Lomas de Zamora.
Julgamento no início do ano
Desde o passado mês de Setembro, os restos de Laura encontram-se num nicho, num cemitério de Buenos Aires. “Não os vou cremar”, diz-nos Ana, “porque pode ser preciso tornar a exumá-los, nunca se sabe com a justiça…” Foram lá colocados a seguir a uma cerimónia na escola que Laura frequentou até 1976. Simón não foi ao acto nem ao cemitério. Não o conseguiria suportar.
“Há muita gente que prefere não saber”, diz Ana. “Por exemplo, a mãe de Ángel, o namorado de Laura, que é uma das Mães da Plaza de Mayo [organização criada durante a ditadura pelas mães dos jovens desaparecidos], recusa-se a dar sangue para tentar encontrar os restos mortais do seu filho.”
A próxima etapa é o julgamento dos responsáveis pelo campo de El Vesubio, onde Laura esteve presa durante cerca de um mês, antes de ser morta. O início do julgamento, inicialmente previsto para dia 15 de Dezembro, foi adiado para Fevereiro de 2010. “Não é o julgamento dos que a sequestraram e a mataram”, diz Ana. Esses, ninguém sabe quem são – e provavelmente nunca se saberá. “Mas o que interessa é que haja um julgamento. O que quero é que os responsáveis sejam condenados. Para mim, a cerimónia pela minha irmã foi mais um acto político e público do que privado. Com os julgamentos é a mesma coisa.” Mesmo assim, o que se vai julgar são casos reais e comprovados – para que haja condenações e pessoas que vão para a cadeia.
“Os processos são exclusivamente contra pessoas individuais”, explica-nos por email Pablo Llonto, um dos advogados da acusação; “98 por cento são militares e polícias, mas há também civis (embora muito poucos): empresários, sindicalistas, agentes civis dos serviços de informações, donos de meios de comunicação, raptores de bebés.” As acusações são várias: homicídio, roubo, privação ilegal de liberdade (sequestros), tortura, assaltos a domicílios, violações, associações ilícitas. No caso de Laura, diz-nos o advogado, a acusação é de homicídio – e o que se requer contra os acusados é a prisão perpétua. Ao longo desta primeira fase do processo dos responsáveis do El Vesubio, que vai durar “seis a sete meses” e que conta com oito arguidos, deverão testemunhar 200 pessoas. Entre os acusados, figura o então major do exército Pedro Durán Sáenz, que foi comandante do campo.
O que é que o desfecho desta tragédia, que começou há 31 anos, significa para Ana? “Sei o que aconteceu e quando aconteceu, o que é muito importante para eu conseguir pensar para a frente.” Quanto ao tempo – quase um mês – que durou a detenção de Laura, Ana confessa que “teria gostado que a matassem no mesmo dia em que lá chegou”. Os centros clandestinos de detenção eram locais de tortura impiedosa.
“O que também é muito importante para mim é que agora posso falar de Laura no passado. Posso dizer “morreu”, “mataram-na”. Até aqui, falava dela no presente; dizia: “Está desaparecida.” Tive muitíssima sorte! Há imensos desaparecidos que ainda não foram identificados.”
A família Tarnopolsky
Nem todos os familiares de desaparecidos poderão um dia saber ao certo o que aconteceu aos seus entes queridos. Há também os que desapareceram sem deixar rasto – porque os seus cadáveres foram destruídos e porque nenhum sobrevivente se cruzou alguma vez com eles. O caso da família de Daniel Tarnopolsky é, nesse sentido, emblemático, para além de ser o primeiro caso registado na Argentina de desaparecimento de uma família inteira – pai, mãe, irmãos, cunhada. De Buenos Aires, onde hoje reside, Daniel conta a sua história.
Daniel tinha uma prima, Patricia Chait, que era montonera e foi sequestrada em inícios de Junho de 1976. A polícia foi a casa da prima, levou-a, ela esteve uns dias presa oficialmente numa esquadra e depois desapareceu. Disseram que tinha sido libertada, mas não foi. “Nunca mais soubemos nada dela, nunca foi vista por ninguém”, diz Daniel.
Na altura com 18 anos, Daniel tinha um irmão, Sergio, de 21 anos, e uma irmã, Bettina, de 15 anos. Sergio, estudante de Psicologia, era casado com Laura del Duca, que estava a fazer o curso de Letras; ambos viviam em casa da mãe dela. Ambos militavam – respectivamente na Juventude Peronista (JP) e na Juventude Universitária Peronista. E Sérgio estava nessa altura a fazer o serviço militar na Escola de Mecânica da Armada (ESMA) – situada em pleno centro de Buenos Aires, numa avenida elegante da capital e que era na altura um dos mais sinistros centros de detenção e tortura do regime militar – ainda que então pouca gente o soubesse.
Como os três irmãos eram muito próximos da sua prima Patrícia, Hugo e Blanca, os pais de Daniel, Sergio e Bettina, ficaram assustadíssimos. O pai tinha medo de que viessem buscar Sergio e raptassem os outros dois filhos. “Nessa altura, sequestravam sobretudo jovens”, diz-nos Daniel, “e o meu pai pensou, ingenuamente, que se fossem buscar o meu irmão e nenhum de nós lá estivesse, ir-se-iam embora e pronto.”
Pais aterrorizados
O pai pediu a Daniel para sair de casa até que as coisas se acalmassem e instalou a filha mais nova em casa da avó materna. Durante umas semanas, até meados de Julho, não aconteceu mais nada, embora se soubesse que os sequestros eram cada vez mais frequentes. Mas aconteceu uma outra coisa: “Por essa altura, o meu irmão começou a contar-nos os horrores que se passavam na ESMA.” Sergio é, nem mais nem menos do que uma espécie de secretário pessoal de um dos responsáveis da ESMA: Jorge “el Tigre” Acosta. Os pais ficam cada vez mais assustados e querem que Sergio fuja do país. Mas, para isso, ele teria de desertar – uma opção que recusa liminarmente. Os pais também tentam convencer Bettina. “Eu insistia, dizia que tínhamos de abandonar o país”, conta Daniel, “que tínhamos de tirar de lá a minha irmã, que militava na União de Estudantes Secundários, dependente da JP.” Mas Bettina também se nega a sair do país – e Daniel decide ficar, uma vez que, não sendo militante, pensa que não corre perigo.
Tudo se precipita na noite de 14 para 15 de Julho de 1976, mas Daniel, que vive em casa de amigos (“nem os meus pais sabiam onde eu estava, ninguém sabia”), só tomará conhecimento dos acontecimentos horas mais tarde.
Na manhã de dia 14, Daniel fala ao telefone com os pais e combina encontrarem-se na noite de dia 15 para jantar em casa da avó. “No dia 15, fiz tudo como de costume: fui trabalhar, fui à universidade.” Antes do jantar, telefona para casa dos pais mas ninguém atende. “Pensei que já estavam a caminho da casa da minha avó e decidi telefonar-lhe. Ela respondeu-me como se eu fosse um fantasma: “Quem fala? Vem cá ter, preciso de falar contigo”.” Daniel percebe que qualquer coisa aconteceu e, “muito imprudentemente”, vai a casa da avó.
Ela conta-lhe então que, por volta das três da madrugada, o pai de Daniel, vestindo um roupão e acompanhado por um grupo de homens que disseram ser polícias, apareceu em casa dela e levou Bettina. Conta-lhe ainda que, como na manhã no dia 15 ninguém atendia o telefone em casa de Hugo e Blanca, ela telefonou ao tio de Daniel (o irmão de Blanca, o outro filho dela) e que os dois foram até a casa dos pais de Daniel. Aí, encontraram a porta do apartamento completamente destruída, assim como a porta do outro apartamento do rés-do-chão e a porta da rua. Dentro de casa, tudo fora destroçado.
Sequestro orquestrado
Falam com o porteiro, que, aterrado, lhes conta como, por volta da meia-noite do dia 14 para 15, foi acordado por um grupo de militares que o tiraram da cama e lhe perguntaram onde viviam os Tarnopolsky. Rebentaram a porta com uma bomba (o que explica que as outras portas também tenham voado pelos ares). Entraram, torturaram os pais de Daniel (o porteiro diz-lhes que ouviu gritos terríveis) e foram-se embora levando-os a ambos e a um monte de coisas.
A avó conta ainda a Daniel que, quando regressou à sua casa, nessa manhã de dia 15, recebeu um telefonema de Raquel, a mãe de Laura (a mulher de Sergio), desesperada, a dizer que precisava de falar com Hugo e Blanca, mas que eles não atendiam o telefone. A avó conta-lhe o que aconteceu e Raquel, por seu lado, revela que, pelas seis da manhã de dia 15, um grupo de militares vestidos à civil levou Laura e teria levado também a sua filha mais nova, não fosse Raquel ter puxado do BI da filha e provado que ela tinha apenas 13 anos. Sergio não tinha regressado a casa essa noite, mas isso pareceu normal na altura, uma vez que era suposto estar de plantão na ESMA. “Ele foi sequestrado nessa noite na própria ESMA”, explica-nos Daniel.
Daniel soube também que, pelas seis da manhã, Bettina foi a casa de uns amigos da família; tinham dois filhos, mas nessa altura eles estavam no estrangeiro. “Não sei se já sabiam que eram amigos nossos ou se Bettina terá dado o nome deles porque ela sabia que não iam estar lá”, pondera Daniel. “Roubaram coisas, mas não levaram ninguém.” O pai dessa família viu, pela janela, vários carros estacionados na rua – e, num deles, o pai e a mãe de Daniel.
“A mim não me procuraram nem no meu trabalho, nem nas casas onde poderia estar, nem na universidade.” Daniel mergulhou na clandestinidade total durante um mês, antes de partir rumo ao Chile e a Israel, onde ficaria quase um ano. Em Julho de 1977 instalou-se em Paris, onde permaneceu até 1984, quando voltou ao seu país, para regressar a França em 1988, já casado. Em 2002, instalou-se definitivamente em Buenos Aires.
Até inícios de 1979, Daniel não soube mais nada da família. Foi nessa altura que conheceu, em Genebra, as três primeiras pessoas a ser libertadas da ESMA, três mulheres que estavam em Suíça para denunciar o que se passava naquele campo de detenção. “Foram libertadas pelo próprio Massera”, conta Daniel.
Emilio Massera, na altura almirante, foi um dos três elementos da junta militar que governou o país entre 1976 e 1978. “Massera queria chegar a um acordo com os montoneros para se tornar o novo Perón”, explica Daniel. “Por isso, manteve vivos uma série de dirigentes montoneros que eram utilizados como mão-de-obra escrava.” As três mulheres tinham sido libertadas porque tinham prometido fazer propaganda para Massera, mas mal chegaram a Genebra contaram tudo, como tinham combinado fazer com os seus companheiros que ficaram presos na ESMA.
A vingança do “Tigre”
Elas contaram-me que sabiam que os meus pais e a minha irmã tinham lá estado detidos”, continua Daniel, “e que o meu irmão tinha sido sequestrado dentro da própria ESMA.” Estiveram todos presos na ESMA, incluindo Laura, a mulher de Sérgio. As mulheres libertadas também lhe explicaram que tudo isto tinha acontecido porque Sergio, o irmão de Daniel, tinha tentado colocar uma bomba no centro de detenção. “A história nunca me pareceu muito clara”, diz Daniel. Mas a questão é que Sergio foi apanhado antes de ter conseguido executar o seu plano – e os militares sequestraram todos os possíveis responsáveis. A bomba tinha sido descoberta num pátio interno [do edifício onde funcionava o centro], onde havia pouca passagem, e portanto os suspeitos não eram muitos. Sergio acabou por confessar ter sido ele o autor do atentado falhado para permitir que os outros suspeitos fossem libertados. “E, como ele era o adjunto de Acosta, Acosta vingou-se da traição raptando-o a ele e a toda a sua família”, conclui Daniel.
“Acosta gabava-se constantemente disso”, disseram a Daniel as três mulheres em Genebra. E a história da família Tarnopolsky passou a ser utilizada pelos torcionários da ESMA para assustar os torturados, ameaçando-os com represálias do mesmo tipo se não colaborassem. “Como as pessoas sabiam que a história era mesmo verdade, acabavam por colaborar…”
Ao longo dos anos, Daniel pôde reconstruir em traços largos, através de diversos testemunhos, o que aconteceu à sua família – e percebeu que só por acaso é que não o tinham “desaparecido” também a ele. “[Os militares da ESMA] andavam loucos de raiva porque sabiam que havia um que lhes tinha escapado, mas, como ninguém sabia onde eu estava, não me procuraram.”
Voos da morte
Daniel soube também como morreu a família, após 15 dias de cativeiro e, provavelmente, de torturas. “Lá dentro, [a ESMA] era uma máquina de torturar, sequestrar e matar”, diz. “Depois levavam-nos não se sabia para onde, dizia-se que para Sul, para campos de reabilitação. Mas com o tempo, já nos anos 1980, os sobreviventes acabaram por saber dos voos da morte. As pessoas eram metidas em aviões militares e lançadas ao mar drogadas, acorrentadas a pesos de cimento.” Das informações que foi juntando, também deduz que os pais e os irmãos não terão estado mais de 15 dias presos na ESMA. Também soube, em 1985, através do testemunho de uma ex-detida, durante o chamado “julgamento das Juntas”, que essa mulher – que era a filha de um comissário e graças a isso tinha sido libertada – tinha dormido ao pé de uma rapariga muito jovem que “não parava de chorar”. E que tinha sabido, por um militar com quem tinha falado, que toda a família dessa rapariga também estava na ESMA. Quando a mulher foi libertada, em finais de Julho de 1976, a rapariga já lá não estava
“As “transferências” aconteciam às quartas e quintas-feiras, os militares eram muito organizados”, diz Daniel. “E como os meus pais foram sequestrados numa quarta-feira à noite, ficaram lá 15 dias.” De meados a finais de Julho de 1976. Uma outra mulher, que lá trabalhava naquela altura como mão-de-obra escrava, também contou que esteve com eles e garante que foram levados todos juntos. No fim de Julho, confirma, já lá não estavam.
“Não foram para sítio nenhum”, diz Daniel. Terão sido atirados ao mar.
Em 1985 começou, por ordem do presidente Raúl Alfonsín (1927-2009), democraticamente eleito em 1983, o “julgamento das Juntas” – o processo contra os nove membros dos sucessivos governos militares responsáveis pela ditadura argentina de 1976 até à Guerra das Malvinas, em 1982. Foi por essa ocasião que o general Jorge Videla (presidente das sucessivas juntas de 1976 a 1981) e o almirante Massera foram condenados à prisão perpétua – este último, entre outros, pelo caso da família Tarnopolsky.
Mas a seguir, as leis ditas do “Ponto Final” e da “Obediência Devida” vieram impedir respectivamente que se processassem quer os responsáveis quer qualquer subalterno pelos crimes cometidos durante a ditadura. Foi o próprio Alfonsín que promulgou estas leis – a segunda, em 1987, numa tentativa de acalmar os ânimos dos oficiais, que tinham organizado várias insurreições para acabar com os processos a partir da Páscoa de 1987.
“A única coisa que não foi amnistiada nessa altura”, diz Daniel, “foi o rapto de bebés.” E, como essas leis também não abrangiam os processos cíveis por danos e prejuízos morais e financeiros, Daniel decidiu processar novamente Massera em 1987 e o Estado argentino. “Eu já tinha todas as provas contra Massera desde 1985″, explica.
“O processo durou 14 anos. Ganhei em primeira instância, em segunda instância e no Supremo. Acabou em 2001, mas só recebi a indemnização em 2004.” Foram um milhão de dólares do Estado e 125 mil vindos de Massera pessoalmente (que acabaria por pagar apenas 70 mil). “O dinheiro de Massera dei-o às Avós da Praça de Maio”, diz Daniel. Trata-se do grupo de mulheres que luta há anos para encontrar os seus netos desaparecidos, os bebés nascidos durante o cativeiro da mãe (que a seguir era “desaparecida”) e que foram em geral adoptados por famílias de militares. “O dinheiro do Estado, considerei-o como uma indemnização pessoal.”
Em 2005, ambas essas leis foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo argentino e os processos penais – por sequestro, homicídio, crimes contra a humanidade – puderam retomar o seu curso. E foi agora, precisamente a 11 de Dezembro, que começou o “megaprocesso” da ESMA. Mas provavelmente só “a partir de Agosto de 2010″ é que se deverá julgar “a tranche 1976″, diz-nos Daniel, que aí irá, mais uma vez, testemunhar – no seu caso contra “O Tigre” Acosta. “Contra o homem que ordenou o rapto e a morte da minha família, a cabeça da pandilha”, solta. Entretanto Acosta, hoje com 65 anos de idade, encontra-se preso pelo rapto de bebés.
“Acho que fiz tudo o que podia para fazer justiça”, diz-nos Daniel. “Mas a verdade é que continuo sem saber exactamente o que aconteceu aos meus, quem os sequestrou, o que lhes fizeram, qual foi a data da sua morte. E os verdadeiros responsáveis continuam em liberdade.”
E continua: “Vou sempre ficar na dúvida, porque eles [os militares] negam a existência dos voos da morte. Fizeram um pacto de silêncio e nunca vão falar.” No entanto, há provas de que os voos da morte existiram mesmo. Os testes de ADN feitos a cinco corpos que deram à costa argentina em 1978 – e foram enterrados como NN – mostraram tratar-se dos restos mortais de uma freira francesa, Leónie Duquet, e de quatro mães de desaparecidos que tinham sido sequestradas, em Dezembro de 1977, numa operação realizada graças ao ex-capitão da marinha argentina, Alfredo Astiz, que conseguira infiltrar-se nas organizações de defesa dos direitos humanos. Astiz, conhecido como “o anjo loiro” ou “o anjo da morte”, tinha como base a ESMA e é um dos acusados no processo que agora começou.
“Não ter a data de morte marca-nos para sempre, não ter os cadáveres”, diz-nos Daniel. “Os militares cometeram um erro, porque não há ninguém mais virulento do que quem não tem informação. Quando nos matam alguém, mas o corpo aparece, acabamos por nos acalmar, mas os familiares de desaparecidos vão continuar a lutar apesar do tempo que passa. Somos continuamente confrontados com a ausência, sabendo que há alguém, algures, que sabe o que aconteceu. Muitos de nós acabamos por reconstruir a história, mas há também gente que não sabe nada dos seus desaparecidos, nem quando nem de onde os levaram.”
(A autora deste artigo, que nasceu na Argentina, é amiga de longa data de ambos os entrevistados Ana Nora Feldman e Daniel Tarnopolsky)