A angústia do guarda-redes no momento do penálti não é nada comparada com a do jogador depois de falhar o remate.
por A-24, em 28.06.13
Ganhou sete campeonatos, seis taças de Portugal, duas Supertaças, esteve em três finais europeias, mas esta sucessão de troféus e proezas nada pode contra a minha recordação de António Veloso naquela noite de Maio de 1988, em Estugarda, quando a voz de um fantasma húngaro lhe sussurrou que chutasse para o lado esquerdo, devagarinho. Naquela noite, tinha eu dez anos, lembro-me de ver o meu vizinho sapateiro todo vestido à Benfica, enrolado numa bandeira do clube e com um boné da águia. Nitidamente embriagado, chorava. Morreu poucos meses depois. Ao contrário de outros benfiquistas mais sanguíneos, não odeio António Veloso. Sinto uma compaixão amarga por um homem condenado a reviver aqueles breves e fatídicos segundos que deveriam ser apenas uma nota-de-rodapé de uma carreira de anos.
A quarta final pós-Béla Gutmann do Benfica foi disputada no Neckarstadion, contra os holandeses do PSV Eindhoven. O jogo foi tão mau que os únicos momentos de emoção foram proporcionados pela fraca aderência das chuteiras benfiquistas à relva alemã. Do onze inicial do Benfica constavam nomes como Chiquinho e Magnusson. Não se pode dizer que fosse uma equipa de sonho. Os noventa minutos chegaram com zero a zero e já se sabia que a única forma de haver um vencedor no final do prolongamento seria se uma das equipas caísse para o lado de tédio.
Penáltis! Elzo, Dito, Pacheco, Mozer e Hajry converteram os seus, respondendo à eficácia dos holandeses. Guilhaus marcou o sexto para o PSV. Veloso tinha a responsabilidade de manter o Benfica vivo. Arrancou timidamente para a bola, a gaguejar das pernas, e atirou para o lado direito de Van Breukelen, que já lá estava quando a bola chegou. Veloso falhou e os benfiquistas nunca mais se esqueceram.
Sou um adepto de futebol e de penáltis, mas mesmo quem não gosta muito de futebol, gosta de penáltis. A mecânica é irresistível de tão simples. Há uns anos, a FIFA, organização tentacular, quis acabar com essa forma de desempate em nome da justiça e do mérito. A ideia era substituir os penáltis pela invenção sinistra da “morte súbita”. Uma ideia lamentável que, felizmente, não durou muito. Há quem, para de alguma forma retirar o peso de cima dos ombros dos jogadores, lhes chame lotaria, como se o processo mecânico de retirar bolas de uma tômbola fosse comparável ao drama humano, à vibração um tanto masoquista que antecede a marcação de penáltis. Para mim, é o momento em que o futebol mais se aproxima do ritual, de uma encenação dramática, toureio imóvel entre avançado e guarda-redes.
Tomba-gigantes
Nem todos os jogadores resistem à tensão acumulada. Stuart Pearce, um daqueles jogadores ingleses com cara de delegado sindical dos estivadores falhou um penálti nas meias-finais do Mundial de 1990 e depois comparou o caminho do meio-campo até à grande área como uma tortura inventada por uma mente sádica. Em 2006, nos quartos-de-final do mundial, contra a selecção portuguesa, Steven Gerrard – aquilo a que se chama um exímio marcador de penáltis - também não conseguiu gerir as emoções. Diz ele que estava tudo preparado mas que o árbitro nunca mais apitava. Se virem as imagens, a espera é de poucos segundos. A Gerrard pareceram séculos. Essa ansiedade traiu-o e falhou.
Pearce e Gerrard são dois exemplos de uma tendência que só à falta de um Guttman-profeta não se chama de maldição. A Inglaterra é uma vítima crónica dos penáltis. Desde 1990, foi eliminada assim seis vezes em grandes competições internacionais, duas das quais contra Portugal.
De um ponto de vista literário eu preferia que as coisas ficassem por aqui, nos limites das tragédias pessoais, como a de Roberto Baggio no dia 17 de Julho de 1994, em Los Angeles. Depois de ter carregado com o seu talento uma Itália que, como sempre, parecia simultaneamente inofensiva e invencível, Baggio teve a oportunidade, à distância de 9,15m da linha de golo, de concluir de forma perfeita a sua história americana. Talvez o melhor jogador italiano da sua geração, Baggio falhou quando estava proibido de falhar.
Já se sabe que as capacidades técnicas, a habilidade, não são decisivas na altura de se marcar um penálti. Grandes jogadores falham e, talvez pelo seu estatuto, os seus falhanços ganham foros de lenda.
No momento em que pousam a bola na marca, não há Maradonas, nem Ronaldos, nem Messis. São todos potenciais Antónios Velosos a caminho do patíbulo.
Nesse aspecto, a história de José Carlos Nepomuceno Mozer, antigo central do Flamengo, Benfica, Marselha e da selecção brasileira, é elucidativa. Mozer nunca foi um tecnicista. Aliás, era mais uma espécie de carrasco dos tecnicistas, um “zagueiro” tão duro que, só de olharem para ele, os avançados deviam ter pesadelos com a sala de operações. Apesar dessa justa reputação, Mozer é digno de misericórdia. Perdeu duas finais da Taça dos Campeões nos penáltis, uma pelo Benfica (a de Estugarda) e a outra pelo Marselha, e das duas vezes concretizou a grande penalidade.
A ciência tenta explicar
Mas se um olhar literário se recusa a ver para além do lado dramático dos penáltis, a ciência faz questão de observar desapaixonadamente os factos. Será apenas sorte? Haverá alguma explicação lógica para a incrivelmente desastrada série de derrotas da Inglaterra nos penáltis? E por que é que a Alemanha vence habitualmente este tipo de desempates? Terá a ver com mentalidade, treino específico, capacidade de lidar com a pressão? Quais são os factores que influem decisivamente na marcação de penáltis?
Num estudo em que foram analisados todos os desempates por grandes penalidades em campeonatos do Mundo e da Europa desde 1978, o investigador Geir Jordet concluiu que factores como a pressão e o estatuto público da equipa (as expectativas dos adeptos) influenciam o estado dos jogadores. Aqueles que sofrem mais com a pressão tendem a marcar os penáltis duas vezes mais rápido (em relação ao apito do árbitro) do que os outros e essa “rapidez” é inimiga da eficácia, visto que os precoces tendem a falhar mais do que aqueles que sabem esperar. Os ingleses, de acordo com o estudo de Jordet, não sabem esperar. Ele aponta factores culturais relacionados com uma cultura individualista e que tanto precisa de heróis como de bodes expiatórios.
Stuart Pearce e Gareth Southgate, que falharam os respectivos penáltis no mundial de 1990 e no europeu (jogado em casa) de 1996, sentiram na pele o peso de ser o bode expiatório de uma nação que se orgulha de ser a pátria do futebol mas que não ganha uma grande competição nem sequer chega a uma final desde 1966. Não são apenas os falhanços nos penáltis que justificam essa longa travessia do deserto, mas talvez essa longa travessia do deserto, e o facto de a cada infeliz paragem ser necessário apontar o dedo a alguém, ajude a explicar a razão de a Inglaterra só ter ganhado 17% dos desempates por penáltis.
O medo de falhar é tão determinante que os jogadores raramente arriscam marcar para o local onde é quase impossível o guarda-redes chegar. E se não o fazem é porque é mais confortável chutar rasteiro para um dos lados (enviar a bola para o topo da baliza é tecnicamente mais complicado). Nesses casos, se falhar, a sua culpa é diluída no mérito do guarda-redes. Estes seguem uma lógica idêntica. Se ficassem parados no meio da baliza teriam mais hipóteses de defender o penálti (33%), mas quase sempre escolhem um lado para se lançarem, diminuindo as possibilidades de defesa. Atiram-se para darem a ideia de que tentaram tudo. Um guarda-redes estático talvez desmoralizasse os próprios companheiros.
Estes dados levam alguns a acreditar que é possível melhorar o desempenho dos jogadores neste tipo de situações. Como o confronto é sobretudo emocional é essa dimensão, e não a técnica, que deve ser trabalhada. Os guarda-redes, muito menos pressionados que os avançados, tentam desconcentrá-los ou fazer como o português Ricardo, que tirou as luvas para defender os remates dos pobres ingleses no Euro’04.
Ricardo nunca há-de esquecer esta defesa. O inglês Vassell muito menos. Foto: D.R.
Convém não menosprezar o efeito psicológico destas pequenas acções num contexto em que todos os envolvidos estão com a sensibilidade em alerta máximo, vulneráveis à mínima vibração. Não é esoterismo. Eis um exemplo: o ano passado, no Euro’12, após marcar um fantástico penálti à Panenka (é o único tipo de penálti que merece o adjectivo), o médio Andrea Pirlo explicou que ao ver que o guarda-redes inglês estava muito confiante quis rebentar com essa confiança. E rebentou. Inspirou os seus companheiros e infligiu severos danos na já debilitada constituição psicológica dos ingleses.
No entanto, ainda que os investigadores possam analisar comportamentos, calcular probabilidades, prever desfechos, subsiste nos penáltis uma teimosa imprevisibilidade. Insisto tanto em cultivar o meu fascínio primitivo que vejo os voluntariosos esforços da ciência como algo apenas ligeiramente menos nocivo que os já esquecidos planos da FIFA para acabar com os penáltis. O lado da tensão humana é tão determinante que qualquer tentativa de “melhorar” o desempenho dos jogadores me parece vã.
Stuart Pearce tem razão. Aquele autêntico corredor da morte que vai do meio-campo à grande área é o terreno de uma última caminhada sádica. A pressão no interior da cabeça do jogador deve ser tão grande e as suas reacções tão imponderáveis que o espírito se torna impermeável a ensinamentos prévios, imune ao incentivo das estatísticas. Naquele momento, para o jogador que avança para a marca da grande penalidade, não há nada a acontecer no exterior. Sabe que, o que quer que aconteça, daqui a pouco tudo será irrevogável, definitivo, o mesmo desfecho a repetir-se eternamente.
Revejo as imagens de António Veloso naquela noite de Maio. Prepara-se para marcar o penálti. Os olhos no chão. Sei que é inútil, que a história não se vai alterar, mas páro a imagem. Daqui a uns segundos, uma vez mais, aquele homem irá ficar preso no instante decisivo da sua carreira. De repente, a expressão “castigo máximo” nem sequer parece uma hipérbole.