O senhor Joaquim, dono da banca de tacacá e de um quiosque de jornais e livros, costuma projectar DVD de música ao vivo numa pequena tela, para animar os clientes: normalmente passa música brasileira (vimos Chico e Caetano, por exemplo), mas Joaquim Melo também tem Madredeus e Carlos Paredes na colecção.
A tarde/noite é também o momento ideal para fazer um périplo pelos bares e gelatarias. O Bar do Armando, que era de um português, tem mesas no passeio. Serve cervejas bem geladas (inteligentemente geladas, como diria Miguel Esteves Cardoso) e petiscos, incluindo os bolinhos de bacalhau que provam como a influência portuguesa se nota muito por aqui. É habitual haver música ao vivo. Na esquina, há uma gelataria, a Glacial, também fundada por portugueses, onde é possível experimentar sabores de que nunca se ouviu falar: cupuaçu, açaí, tucumã, pupunha ou taperebá.
Herança europeia
A praça também pode ser o ponto de partida de um passeio em direcção ao porto. É neste trajecto que Milton Hatoum mais sente a passagem do tempo, como se lê em Cinzas do Norte. “Em poucos anos Manaus crescera tanto que Mundo não reconheceria certos bairros. Ele só presenciara o começo da destruição; não chegara a ver a ‘reforma urbana’ do coronel Zanda, as praças do centro, como a Nove de Novembro, serem rasgadas por avenidas e terem todos os seus monumentos saqueados. Não viu sua casa ser demolida, nem o hotel gigantesco erguido no mesmo lugar.”
Ainda assim vale a pena caminhar, embora preparado para enfrentar o calor e a humidade. A praça da Polícia, também conhecida como Praça Heliodoro Balbi, diz muito a Milton Hatoum. Aqui fica o colégio onde estudou e, também por isso, foi usada como cenário do romance Dois Irmãos, um bom livro para ler antes de ir a Manaus. A praça foi renovada em 2009. É uma reminiscência da Manaus que tinha harmonia com a natureza. As árvores dão sombra, os bancos de madeira dão descanso e em frente aprecia-se o Palacete Provincial, mais um desses edifícios que, de repente, nos faz pensar que estamos em Paris ou Viena.
Outro edifício que nos faz viajar no tempo é o Palácio Rio Negro, construído por um antigo magnata da borracha e hoje transformado em centro cultural. Os jardins foram renovados e têm pequenos canais, que dão uma ideia de como era a cidade no tempo dos igarapés.
Percorrendo as ruas, percebe-se facilmente que Manaus é uma cidade de múltiplas influências. A herança europeia está presente na arquitectura, a cultura indígena é omnipresente e, em certos momentos, a cidade parece africana. O comércio de rua é um desses traços africanistas. Costuma haver “camelôs” nas principais avenidas (algo que o Governo está a tentar mudar, criando lojas para os vendedores ambulantes). E descendo até ao porto encontramos outra das imagens de marca de Manaus: o mercado, ou melhor, os mercados.
Existe o Mercado Municipal Adolpho Lisboa, um conjunto de edifícios de 1893, renovados em 2013. É um espaço inspirado nos mercados de Grenelle e Les Halles, em França, e com uma fachada influenciada pela galeria Vittorio Emanuelle, de Milão. “Um belo exemplo da arquitetura de ferro”, diz Milton Hatoum sobre esse mercado, que é outro dos postais ilustrados de Manaus.
Algumas dezenas de metros ao lado fica o outro mercadão, chamado Manaus Moderna, um espaço bem menos organizado e bonito, mas onde a população faz habitualmente as compras. Pela manhã, tem mais gente do que o Adolpho Lisboa, à procura do peixe fresco e das frutas amazónicas. Passear pelos mercados é a oportunidade para ver de perto os famosos peixes da Amazónia, do tambaqui ao tucunaré, passando pelo pirarucu ou o bodó, um peixe que é vendido vivo, porque liberta enzimas que o tornam impróprio para consumo se for abatido antes de ser cozinhado.
Do outro lado da rua, fica o porto de Manaus, que está a precisar de uma renovação profunda. Dezenas de barcos acumulam-se no cais. Chegam vegetais e partem arcas frigoríficas, carregadas com alimentos. Muitas comunidades ribeirinhas ficam a quatro e cinco horas de viagem de barco. Outras a mais ainda. A rede de descanso é um apetrecho obrigatório para ter algum conforto na viagem e, por isso, nos barcos vazios já há dezenas de redes estendidas, a reservar lugar.
Bosque da ciência, o oásis
Assim que desafiámos Milton Hatoum a fazer um roteiro de Manaus, o escritor falou imediatamente de um sítio especial: o bosque da ciência, onde fica a sede do INPA - Instituto Nacional de Pesquisa Amazónica. É um parque, “o lugar mais aprazível de Manaus”, segundo Hatoum. “A cidade deveria ser toda assim, mas a barbárie e a ignorância não permitiram isso. É arborizado, um oásis no meio da loucura calorenta, porque a natureza foi burramente expulsa da cidade.”
Situado na zona leste e inaugurado em 1995, o parque tem 13 hectares e foi projectado por Severiano Porto, o mesmo arquitecto que desenhou o estádio Vivaldo Lima, demolido para dar lugar à nova arena para o Mundial de futebol deste ano — outras das revoltas de Milton: “Destruir um património da arquitectura amazónica é um lance de extrema crueldade e ignorância. O que há por trás dessa crueldade e incultura? A ganância, a grana às pencas, o ouro sem mineração, sem esforço”, escreveu na crónica “Estádios Novos, Miséria Antiga”. Ainda assim, é justo reconhecer que a Arena Amazónia, onde Portugal disputará o seu segundo jogo no Mundial, é um dos estádios mais bonitos do Brasil.
Fomos ao bosque num domingo à tarde. É uma boa opção para sentir um pouco da Amazónia, especialmente para quem não tiver tempo ou dinheiro para ir à selva. A vegetação é vasta e podemos ver vários animais. Aliás, é mais fácil vê-los aqui do que na selva. Logo à entrada, estão os tanques com os famosos peixes-boi, uma mamífero que pode chegar aos 450 kg e quase três metros de comprimento. Duas curiosidades: não tem unhas e nunca fica banguela (desdentado), porque troca continuamente de dentes.
Também vemos ariranhas, uma espécie de lontra com cauda comprida, que tem uma característica peculiar: as manchas no peito e pescoço funcionam como uma impressão digital, permitindo a identificação individual dos animais. Há também tartarugas da Amazónia, que podem atingir os 82cm, e três espécies de jacarés (tinga, açú e pedra), aliás, bem mais fáceis de ver nestes tanques do que no meio da selva, onde são fugidios e só saem à noite para caçar.
No passeio pelo bosque, bem mais fresco do que a cidade, é também possível ver algumas árvores típicas da Amazónia, como o cupuaçu (um parente do cacau, óptimo no gelado) e Tanimbuca — no bosque, existe um exemplar com 600 anos e 35 metros de altura.
O rio, solidão absoluta
Outro dos grandes atractivos de Manaus é ser banhado pelo rio Negro, que mesmo ao largo da cidade se junta com o Solimões, dando origem ao rio Amazonas. O fenómeno chama-se Encontro das Águas e é fácil de ver — é uma curta viagem de 15 minutos de barco.
As águas dos dois rios não se misturam imediatamente, porque há grandes diferenças de temperatura e de velocidade entre os dois. O rio Negro, que nasce no hemisfério Norte, na Colômbia, é mais quente (24º a 28º, consoante as fontes) do que o Solimões, que vem do hemisfério Sul, do Peru (18º a 24º). A cor escura do Negro deve-se às matérias orgânicas e a cor barrenta do Solimões é dada pelas argilas que a água transporta. É muito curioso meter a mão nas águas dos dois rios e sentir as diferenças de temperatura.
O Encontro das Águas é apenas o começo dos encantos do rio. Se nos afastarmos de Manaus, percorrendo um dos rios de barco, mergulha-se num outro mundo. “O rio Negro é um lugar único no mundo pela vastidão. É um dos pouco lugares do mundo em que há uma solidão absoluta. Não há ninguém. Quando se sobe o rio, navega-se quatro, cinco, sete dias de barco e não se vê ninguém. Isso só existe em algumas regiões da África e da Ásia”, diz Milton Hatoum.
Na visita da Fugas não houve tempo para viajar tantos dias pelo rio Negro acima, mas uma visita ao Museu do Seringal, a meia hora de Manaus, dá para sentir a beleza da paisagem e a sensação de isolamento. O Museu do Seringal, aliás, é outros dos sítios a não perder nos arredores de Manaus. Foi construído para as filmagens do filme A Selva, de Leonel Vieira, e transformado em museu para lembrar como eram os tempos da borracha, que trouxe riqueza a Manaus mas causou a morte a milhares de seringueiros (ver Fugas de 12/04/2014).
Ironicamente, o crescimento económico que descaracterizou a cidade de Manaus foi o mesmo que permitiu a preservação da floresta. “Ao contrário do Pará, a floresta foi muito preservada em Manaus”, diz Milton Hatoum, para quem o ecoturismo realmente funciona. “Você sai de Manaus e parece que está noutro mundo.”
O que Milton Hatoum diz sobre o rio Negro vale igualmente para o Solimões. A Fugas foi dormir a um hotel de selva, o Juma Lodge, a três horas de Manaus (ver Fugas de 08/03/2014). A experiência é única. Realmente única. Os telemóveis não funcionam e é realmente possível fugir à civilização. Passear na selva, ver jacarés, nadar no rio, pescar e ver o nascer do sol são algumas das actividades possíveis, sendo que nenhuma iguala o prazer de deslizar numa canoa pelos igarapés, vendo e ouvindo os pássaros que sobrevoam o rio.