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A-24

A pressa do PS

por A-24, em 30.09.14
Alexandre Homem de Cristo

Costa tem uma tremenda ambição de governar e montou um projecto que, sem ideias ou propostas, conseguiu ser apelativo aos socialistas só porque tresanda a poder.

António Costa ganhou categoricamente e, agora, os corações socialistas enchem-se de esperança por um recomeço. Goste-se ou não e diga-se o que se disser, este é um dos momentos-chave da legislatura. Tudo irá mudar daqui para a frente? Bem, alguma coisa mudará. Mas a grande mudança é só esta: a pressa.
Seguro, há tempos, chegou a perguntar qual era a pressa. Chegou mesmo a rejeitar um cenário negocial, proposto por Cavaco Silva, que lhe garantiria eleições legislativas antecipadas. Só que a pressa que Seguro teve a menos tem Costa a mais. Nada os distingue mais do que isso: enquanto Seguro tardou em convencer que pode chegar a primeiro-ministro, Costa tem uma tremenda ambição de governar e montou um projecto que, sem ideias ou propostas, conseguiu ser apelativo aos socialistas e simpatizantes só porque tresanda a poder.
Hoje, ficou claro que é mesmo isso que os militantes querem – poder. Resultado: a pressão sobre o Governo e os partidos da maioria irá aumentar muito com Costa na primeira linha. Até porque, nestas coisas, quanto mais depressa melhor – há que aproveitar o efeito mobilizador de uma vitória tão clara no partido para começar a guerra das legislativas.
Ora, sendo esta questão a grande diferença entre Seguro e Costa, a dúvida é se, agora que pretende ganhar o país, o lisboeta mudará o partido no essencial: na incapacidade do PS de propor uma alternativa realista. Sem querer estragar a festa socialista, tudo indica que não: é que foi precisamente pela ausência de ideias claras e de alternativas às (más) alternativas de Seguro que a campanha de António Costa se notabilizou.
Até pode ser interessante discutir as várias implicações práticas da vitória de António Costa – em termos de expectativas eleitorais, de potenciais coligações caso o PS vença as legislativas, de capacidade em unir o partido em torno de si ou da reacção dos partidos da actual maioria perante um novo adversário. Mas o que interessa realmente ao país é outra coisa: se António Costa quer mesmo ser primeiro-ministro, terá de responder às perguntas difíceis a que, habilmente, se foi esquivando nestes últimos meses. Qual é a sua posição em relação ao Tratado Orçamental e ao euro? E o que pensa sobre a reestruturação da dívida? Como pensa fazer baixar o défice sem recorrer à austeridade e que dados apoiam a exequibilidade da sua solução de pôr a economia a crescer mais? E, por fim, como pretende defender o Estado Social sem o reformar?
São perguntas difíceis, mas para as quais Costa precisará de resposta. Quer queira, quer não queira. É que qualquer debate com Passos Coelho ou Portas será travado no plano dos números, do concreto, dos tratados e da realidade. E por mais que os socialistas não gostem das soluções do Governo, elas têm uma lógica. Nem que seja uma lógica matemática: identificam-se os problemas, assume-se o custo das soluções e os números batem certo. Não gostar dessas contas não legitima alternativas irrealistas. O problema dos socialistas europeus, perante a necessidade de inverter as políticas de endividamento, foi esse. O problema de Seguro foi esse. E o problema de Costa será esse.
As ilusões trazem sempre desilusões. A ideia resume bem este percurso de 4 meses de Costa, desde que assumiu a candidatura à liderança do PS. Nos próximos tempos, o entusiasmo da vitória poderá fazer esquecer as desilusões, mas não é certo que deixem de surgir. Afinal, querer ganhar é importante, mas não é tudo.

A cidade pós-socialista

por A-24, em 30.09.14



Torres Gémeas, Almaty, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster


Há livros assim. Terríveis de tão bons. The Post-Socialist City. Continuity and change in urban space and imagery, organizado por Alfrun Kliems e Marina Dmitrieva. Uma obra colectiva, com vários artigos, em que cada um é melhor do que o outro. Leia-se de frente para trás ou de trás para a frente, cada texto é sempre mais interessante do que o anterior. Sem percorrer o índice de fio a pavio, e apenas num brevíssimo voo de pássaro, temos neste estabelecimento livreiro artigos de primeira qualidade sobre: monumentos e edifícios políticos da RDA após a reunificação da Alemanha; lugares de Praga depois da Revolução de Veludo; o majestoso Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia; a famosa Praça da Independência em Kiev; a «cidade socialista» por excelência da Hungria, Dunaújváros (antiga Sztálinváros), projectada por Tibor Wiener; um subúrbio de Bucareste e o novo urbanismo da Arménia.

O livro é sobre o mais político dos organismos concebidos pelo homens – o espaço urbano – e aborda as transformações sofridas por várias cidades após a queda do comunismo. Mas, em boa verdade,The Post-Socialist Citytrata da Europa (como, aliás, se anuncia na nota introdutória, na linha dos trabalhos grande Karl Schlögel). Por muito estranho que pareça, compreendemos melhor o que é a Europa, e sobretudo o que poderá vir a ser, numa obra que dedica um capítulo inteiro à nova arquitectura ultramoderna do Cazaquistão. A «Europa», na verdade, pode ser várias coisas: uma entidade geográfica de contornos difusos; uma identidade histórica e cultural; uma comunidade de interesses. A Europa geográfica pode estender-se dos Açores aos Urais, mas a Europa dos interesses está onde a Alemanha quiser. Facto curioso: a publicação deste livro foi patrocinada por duas instituições alemãs, um centro da Universidade de Leipzig e pelo Ministério das Obras Públicas da República Federal… 
A União Europeia – e é essa uma das suas tragédias – procura ser em simultâneo todas as Europas que atrás de definiram, agrupando-as numa idée fixe. Repetimo-la: uma comunidade de interesses situada num espaço geográfico onde se forjou, através dos séculos, uma identidade cultural precisa mas difusa. Acontece que nem sempre estas três dimensões se articulam e ajustam. Nem sempre os interesses coincidem com a geografia. Raramente os interesses – sobretudo económicos – estão em consonância com os melhores valores da identidade cultural europeia (daí a proliferação de negócios com parceiros que não primam pelo seu apego à liberdade ou à democracia, ao respeito pelos direitos humanos e à tolerância).
Os interesses da Alemanha, após a reunificação, deixaram de estar – ou deixaram de estar apenas – no espaço geográfico da Europa. Após a queda do Muro, a Alemanha passou a olhar para onde sempre quis, o ponto cardeal que sempre foi a sua vocação e destino: o Leste. Para os países da Europa do Sul, a reunificação foi uma tragédia – do ponto de vista dos interesses, não no dos valores ou princípios. 






Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster




Um país, dois sistemas




Palácio da Paz e da Reconciliação, Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster












Daí que, num certo sentido, o Cazaquistão seja muito mais «Europa» do que Portugal. Os grandes gabinetes de arquitectura, que têm o faro apuradíssimo para estas coisas, perceberam-no mais cedo do que quase todos nós, incluindo os académicos da geoestratégia ou os profissionais da diplomacia. Não é por acaso que Sir Norman Foster – ou, melhor dizendo, a firma Foster and Partners – projecta edifícios arrojadíssimos para o centro de Astana ou de Almaty. Não é por acaso que Rem Koolhaas, além da Casa da Música, no Porto, elaborou um projecto visionário – e, por certo, bastante dispendioso – para uma «Cidade da Ciência», nas imediações de Almaty. Ali corre o petróleo a jorros, abundam o gás natural e os metais preciosos. O Cazaquistão é um dos maiores exportadores de matérias-primas do mundo. Tem cerca de 15 milhões, um quarto da do Reino Unido, para um território de 2,7 milhões de quilómetros quadrados, onze vezes maior do que as Ilhas Britânicas. Desde 2000 que o Cazaquistão regista colossais taxas de crescimento de 9% ao ano. É considerado pela Transparency International um dos países mais corruptos do mundo (numa lista de 145 países, conquistou um desonroso 122º lugar). Mas nada disso impediu que fosse escolhido em 2010 para assumir a presidência da OCDE. Podemos ler muita coisa sobre o Cazaquistão, mas o artigo deste livro sobre a vertiginosa ascensão da arquitectura de vanguarda em cidades como Astana, Almaty e Aktau diz-nos mais do que vários tratados de geopolítica. Edifícios de vanguarda num país que só formalmente é uma democracia, onde o presidente Nazarbaev concentra em si quase todos os poderes. Desde 2007, o parlamento só tem deputados do seu partido, o Nur Otan(«Luz da Pátria»). Não admira que os parlamentares tenham aprovado legislação que exime o presidente Nazarbaev da regra constitucional que impõe a renovação do mandato do chefe do Estado. Durante vários anos, a televisão estatal foi dirigida pela filha mais velha do presidente, Dariga Nazarbaev, que tem a sua clique de fiéis à frente das principais companhias e empresas. Nazarbaev intervém e tem a palavra final nos grandes negócios do país. Certamente que muitas das empresas que aí operam tiveram que falar com ele, ou alguém muito próximo dele, para se instalarem nas terras do Cazaquistão. A companhia Tengizchevroil, por exemplo, é uma joint venture entre a Chevron, a ExxonMobil, a Lukarco e a empresa casaque KazMunayGaz. A italiana Agip está noutra parceria, a extrair gás na região de Uralsk. Fábricas de automóveis? Nissan. Quem faz o cimento e os materiais das unidades de extracção do petróleo? ThyssenKrupp, da Alemanha. Quem faz as comboios de transporte ferroviário? General Electric, dos EUA. Tudo isto se processa num país onde a população rural vive mal, muito, e continua a viver mal, muito. A esperança de vida situa-se nos 62 anos para os homens e 73 para as mulheres, sendo cada vez mais intenso o êxodo para as cidades. Estas, sobretudo as maiores, são adornadas por edifícios desconcertantes de tão risíveis, num estilo falsamente majestoso, mas que no fundo é uma metáfora do Cazaquistão contemporâneo, uma ditadura falsamente majestosa. 

Outro caso curioso, e revelador da cupidez humana, é o do «turbo-urbanismo» em Pristina, na ex-Jugoslávia. Por muito esotérico que o termo pareça ser, ele pretende ilustrar uma realidade que vale a pena ser conhecida: após a fragmentação da Jugoslávia, interesses vários obrigaram a construir rapidamente e em força. A presença inesperada de refugiados, o afluxo de repatriados e a chegada de inúmeros funcionários de organizações internacionais fizeram com que se tivesse de edificar a uma velocidade turbo, quase sempre sem olhar a regras elementares de urbanismo e, claro está, à estética dos edifícios. Predominou a construção em vidro espelhado azul, pretendendo-se dar um ar «international» a casas construídas da noite para o dia, no meio de ruas atravessadas por fios e cabos de todas as espécies, postes de iluminação periclitantes, trânsito caótico. O artigo publicado neste The Post-Socialist é excepcional porque retrata exemplarmente o impacto no espaço público de uma necessidade social imperiosa, à mistura com a especulação imobiliária e a corrupção pública – mas também privada. Tudo a acontecer num território com uma taxa de desemprego de 40% e diversas máfias a actuar, que de súbito se vê confrontado com a chegada de hordas de gente e capitais internacionais. O saldo final é kitsch a valer, dir-se-ia numa paráfrase de Dâmaso Salcede. Se as construções do Cazaquistão são fashion e ofuscantes, aqui predomina a mixordice e edificação atamancada. Quando Rexhep Lupi, o director de planeamento urbano de Pristina, tomou as primeiras e muito tímidas medidas para pôr termo à balbúrdia do turbo-urbanismo, o que aconteceu? Foi morto a tiro. 








Turbo-arquitectura, turbo-urbanismo

Local também a reter: Floreasca, arredores de Bucareste. Construído para albergar a elite da era Ceucescu (aí existia, por ex., uma escola experimental para ensino intensivo do inglês), encontra-se hoje a ser alvo de um processo de «gentrificação» e, mais ainda, de «embelização» (beautification), com arranjos florais que tentam esconder os arranhões do cimento em derrocada e coisas do género, todas lindas, muito lindas. O número de lojas diminuiu, do mesmo passo que se registaram infindos casos de apropriação do espaço público e cada qual tentou demarcar o seu território através de gradeamentos, muros, etc., interrompendo vias de passagem e até destruindo espaços verdes de fruição colectiva. A beautificationromena não anda muito longe daquilo que se faz em muitas cidades ou zonas de Portugal. Coloca-se uma «via pedonal», uma alameda de palmeiras e meia-dúzia de floreiras e pronto, já está – temos um «renovação urbana».



Floreasca, Bucareste, Roménia.


Leitura recomendável, sem dúvida, a deste livro The Post-Socialist City, que nos diz muito sobre o mundo em que vivemos, que é um lugar estranho. Dele extraiamos, e com razão, uma crítica à acção das grandes multinacionais e à venalidade de alguns nomes grandes da arquitectura contemporânea. Muito superior a outro livro que, na sua cegueira «militante», é acéfalo e superficial, Evil Paradises. Dreamworlds of Neoliberalism, editado por Mike Davis e Daniel Monk (o capítulo sobre o Brasil como «o país mais injusto do mundo» é de uma banalidade de bradar aos céus; do livro só se aproveita um belíssimo ensaio-reportagem sobre a voracidade latifundiária de Ted Turner, ex-patrão da CNN). Ainda que um pouco datado (é de 2010, creio), The Post-Socialist City traz-nos textos informados, estudos de caso que cobrem um amplo espaço geográfico. A Europa já não mora aqui. Agora, vive algures entre Berlim e o Cazaquistão. É tempo de percebermos isso.

Cinema: Queer Lisboa

por A-24, em 30.09.14
"Appropriate Behavior", de Desiree Akhavan: É difícil não pensar em "Girls" ao vermos esta primeira obra de uma realizadora que acumula também as funções de argumentista e actriz principal. Mas se o arranque parece oferecer apenas mais uma comédia new yorker e hipster - ambientada em Brooklyn, nem mais -, Desiree Akhava consegue ir deixando algumas singularidades ao longo de um filme sempre a crescer no nível de graça e interesse.
Shirin, protagonista inspirada nela própria, é uma jovem neurótica, desbocada e insegura cuja ascendência iraniana torna ainda mais complicado apresentar a sua namorada aos pais. O fim do relacionamento marca o início de um filme que alterna presente e passado e vai acrescentando camadas a uma personagem com um potencial para criar irritação ao primeiro embate. "Appropriate Behavior" diverte (às vezes, muito) pela forma como a vai atirando para situações constrangedoras, quase sempre motivadas pela sua atitude, mas tem o cuidado de não a espezinhar ou massacrar. Desiree Akhavan gosta demasiado de pessoas para isso, dá-lhes a possibilidade de redenção e sabe como conjugar sarcasmo e ternura. No final, acaba por ser difícil não ganharmos afeição por Shirin, aí já longe de uma sucedânea da série de Lena Dunham e muito mais a voz de uma autora a ter debaixo de olho.

Via Gonn  1000

Da politiquice Nacional

por A-24, em 29.09.14
In Blasfémias

"Em política ninguém governa sozinho. O percurso de um líder, desde a conquista do poder no seu grupo, até ao poder do estado, é sempre feito a dois, com um “braço direito” que o completa e que é, muitas vezes e em inúmeros assuntos, mais importante do que ele. Frequentemente, quando a parelha se desfaz, o líder passa a fraquejar e quase sempre revela as suas fragilidades e insuficiências. Querem exemplos? Freitas do Amaral e Amaro da Costa (o primeiro nunca se recompôs da morte do segundo), Cavaco Silva e Fernando Nogueira (Eurico de Melo, primeiro), António Guterres e Jorge Coelho, Paulo Portas e Luís Nobre Guedes (António Pires de Lima, depois), Durão Barroso e José Luís Arnaut, Mário Soares e Salgado Zenha (Almeida Santos, mais tarde), José Sócrates e Silva Pereira, Passos Coelho e Miguel Relvas. O número dois, para além do que foi já dito, tem uma outra enorme utilidade: permite compreender quem é verdadeiramente, o que pensa e como age o líder. Em relação a António Costa, antes de qualquer outra questão de relevo, é esta que importa esclarecer: quem será o seu braço direito no PS. Só isso nos permitirá compreender se ele é, ou não, refém do passado. E, curiosamente, Costa não tem ainda um número dois à vista…"


"António Costa parece ter ganho ontem eleições no país e não apenas no PS. A natureza do processo eleitoral escolhido para a escolha do líder socialista, a diferença substancial das votações entre os candidatos e a comunicação social fizeram destas eleições internas uma espécie de primeira volta das legislativas do próximo ano. O élan ontem ganho por Costa dificilmente será quebrado até às eleições, e tenderá mesmo a crescer em termos nacionais. A esperança sempre foi a principal força motriz das mudanças políticas, e Costa, que nada prometeu e nada garantiu, continuará a dizer apenas que fará melhor do que o governo PSD/PS. O fundamento é simples e há muito que tem vindo a ser difundido na opinião pública, até por gente do PSD: não era necessário ter ido tão longe nas políticas de austeridade, e o caminho seguido pelo governo deveu-se apenas à sua cegueira ideológica liberal e não às exigências dos credores e do memorando assinado com a troika.
Pelas hostes do governo, a imagem de Pedro Passos Coelho passou a ser, de há duas semanas para cá, a principal preocupação. Provavelmente continuará a sê-lo por muito tempo, o que fará vir ao de cima as clivagens no PSD, reprimidas nos últimos anos pelas exigências da governação e pela distância das eleições. O CDS fará também questão de se afastar o que for possível do governo em que esteve nestes três anos, sendo que Paulo Portas deu já o mote para o motim: a necessidade de baixar impostos no próximo orçamento, o que o PSD dificilmente, por razões objectivas, poderá aceitar. Passos será apresentado como um líder teimoso, que não escutou o parceiro de coligação nas decisões que mais afectaram os portugueses, única esperança para o CDS poder manter o seu eleitorado.
Neste panorama, o PSD de Pedro Passos Coelho irá fragilizado às legislativas, sendo natural que o seu baronato, para quem o instinto de sobrevivência fala sempre mais alto do que qualquer outro sentimento, procure soluções que lhe permitam manter-se na orla do poder. Nesse contexto, o nome de Rui Rio surgirá como inevitável, sendo que o próprio deu já inúmeros sinais de que, desta vez, poderá não enjeitar responsabilidades. Se o posicionamento eleitoral do PSD for o de avivar os fantasmas socialistas e socráticos do passado, a derrota arrisca-se a ser grande: a política não vive de memórias do que já foi, mas de esperança quanto ao que poderá vir a ser. O PSD terá de falar sobre o futuro, missão que, pela natureza das coisas, não lhe será fácil.
Assim, muito dificilmente deixaremos de ter, no segundo semestre de 2015, um governo liderado pelo PS. A emergência das finanças públicas e uma vitória relativa poderão impor um governo de coligação com o principal adversário, desde que este recomponha a sua liderança.
Quanto ao hoje incensado António Costa, só quando for chefe do governo os portugueses perceberão o que já tiveram oportunidade para perceber inúmeras vezes: que não existem homens providenciais, nem milagres. Perceberão, também, qual é a realidade do seu país. Mas, nessa altura, já de pouco lhes valerá."


Não estou certo que as primárias tenham vindo para ficar. Não acho a participação eleitoral assim tão extraordinária. E duvido que seja fácil voltar a unir o PS. Sem certezas, mas a contracorrente

1. Parece haver um consenso entre os comentadores e, também, entre os políticos do PS que se pronunciaram na noite das primárias: a de que este método de escolher o candidato a primeiro-ministro veio para ficar. É uma unanimidade quase igual à que existiu quando António José Seguro decidiu convocar estas primárias: a única diferença é que antes todos as criticaram e agora todos as aplaudem. A mim, que nunca me pareceu um mau método, também não me surge como mezinha para todos os males do nosso sistema partidário.
As razões porque não tenho a certeza que este método se generalize é que as condições destas primárias não são repetíveis. Far-se-ão primárias para “candidato a primeiro-ministro” no início de um ciclo eleitoral, isto é, quando um partido perde as eleições e escolhe um novo líder para quatro anos? Ou deixa-se isso para um ano antes das eleições? E quanto a candidatos presidenciais? E candidatos a presidentes de câmara? Desaparecem as directas? Sujeitar-se-á um primeiro-ministro em funções a “primárias”, como se sujeita o Presidente dos Estados Unidos?
Como veem, o caminho é tudo menos claro. Para além que não convém embandeirar em arco e esquecer, por artes mágicas, o tom lamentável desta campanha, um tom que facilmente se poderia repetir em exercícios semelhantes. Quantos partidos estarão dispostos a passar por este tipo de experiência?
2. Terão votado ontem 170 a 180 mil militantes e simpatizantes do PS. Esse número provocou enorme entusiasmo. É prudente colocar alguma água na fervura. Se compararmos estas eleições primárias com as que tiveram lugar em França e Itália na mesma área política, a participação em Portugal foi uma desilusão. Para, proporcionalmente, a participação ser semelhante deveriam ter votado cerca de 600 mil portugueses – votaram bem menos de 200 mil.
Esta questão não é menor. Porque é que os socialistas portugueses, principal partido da oposição no tempo de um Governo que foi obrigado a aplicar medidas duríssimas, não conseguiram mobilizar tanto a cidadania como os seus correligionários franceses ou italianos? Será a nossa crise de participação política ainda maior do que nesses dois países – dois países onde há movimentos anti-sistema muito fortes, a Frente Nacional em França e o movimento Beppe Grillo em Itália?
E, já agora, mais uma pergunta incómoda: porque é que cerca de 30% dos que podiam votar não o fizeram, sendo que muitos se tinham inscrito apenas algumas semanas antes? Há quem tenha dito que foi uma abstenção baixa – a mim pareceu-me algo elevada se pensarmos no carácter voluntário e muito próximo do acto de inscrição como simpatizante do PS.
3. Toda a gente jurou nesta curta noite eleitoral que o PS se vai voltar a unir rapidamente. De novo, tenho dúvidas. E as minhas dúvidas foram reforçadas pelo discurso de vitória de António Costa. Se era necessária uma prova de que a campanha deixou feridas duradouras, tivemo-las nesse discurso, pois o vencedor da noite não foi capaz de citar o nome do seu adversário e tratou de contornar o incómodo dizendo que quem tinha vencido era todo o PS, que não havia derrotados. Não foi elegante nem teve grandeza.
Numa das suas últimas entrevistas antes das primárias, ao DN, este sábado, Costa antecipou que só um pequeno número de irredutíveis de Seguro manterão a acrimónia. Um Seguro que ele trata nessa mesma entrevista com desprezo e altivez, ao afirmar que não lhe devia ter dado oportunidade de se afirmar. Mais uma vez julgo que aquilo que estas palavras revelam não se resolve apenas porque um lado conseguiu mais de dois terços dos votos.
Para que o PS se unisse rapidamente teria sido necessário que António Costa tivesse ontem mostrado, no seu discurso, uma grandeza para com os vencidos que não foi capaz de mostrar. Essa é que é essa.
Numa noite de tantas certezas, deixo aqui estas dúvidas. A contracorrente.

China, Hong Kong, Instagram e Liberdade

por A-24, em 29.09.14
Via Breitbart

China blocked the photo-sharing site Instagram over the weekend due to massive pro-democracy protests in Hong Kong. People posted pictures of police using tear gas on the demonstrators.
The photos used hash tags such as #OccupyCentral and #UmbrellaRevolution. The latter hash tag was developed after many protesters used umbrellas to defend themselves against the police. China blocked these hash tags on “Hong Kong Tear Gas” on Weibo, China’s version of Twitter, and Baidu, China’s largest search engine. However, the site is still allowed in Hong Kong.


China is well known for severe censorship laws. The Global Times, which is associated with state media People’s Daily, ran a column arguing that these protests ruin Hong Kong’s image, mainly in economics. Hong Kong, New York City, and London are the top three financial hubs in the world. The unnamed author offers excuses for China’s censorship and insists these moves help keep the peace. From the Global Times:
Radical activists in Hong Kong announced early Sunday the launch of the Occupy Central movement, raising the curtain on an illicit campaign earlier than expected. Photos of Hong Kong police being forced to disperse demonstrators with teargas have been widely circulated online across the world. These activists are jeopardizing the global image of Hong Kong, and presenting the world with the turbulent face of the city. 
....
China is no longer the same nation it was 25 years ago. We have accumulated experience and drawn lessons from others, which help strengthen our judgment when faced with social disorder.  
The country now has more feasible approaches to deal with varied disturbances.
Recent years have witnessed many severe mass incidents, but none had the ability to disturb the thinking of society. China has tackled these incidents smoothly.
Unsaid in the article is the vast differences in levels of freedom between Hong Kong and China. Hong Kong does not have censorship. The residents enjoy freedom of speech, free press, and free assembly. In a 1999 special, John Stossel demonstrated how easy it was to open a business in Hong Kong compared to America. Milton Friedman told Stossel that “Hong Kong showed us all a lesson on how to make everyone’s life better.”

Costa vence primárias

por A-24, em 29.09.14

Portugal, campeão europeu de Ténis de Mesa

por A-24, em 28.09.14


A selecção portuguesa venceu neste domingo na final do Campeonato da Europa de equipas de ténis de mesa a selecção germânica, por 3-1, e conquistou pela primeira vez o título.
Muitos adeptos e praticantes foram ao Meo Arena, em Lisboa, apoiar a selecção contra a Alemanha. Um deles era o primeiro-ministro — Pedro Passos Coelho deslocou-se ao ex-Pavilhão Atlântico e assistiu à final.
No primeiro jogo, Freitas defrontou Steffen Mengel, numa disputa em que se assistiu a bolas longas e duradoras, com os jogadores a serem obrigados a afastar-se bastante da mesa e a usar da força, num desempenho desgastante para os atletas, mas que empolgou a audiência.
Coube a João Monteiro o confronto com o n.º 2 da Europa, Timo Boll. A Alemanha venceu por 3-0. À excepção do segundo set, que correu bastante mal ao jogador da selecção portuguesa, João Monteiro disputou bem muitos dos pontos, nem sempre facilitando a vida ao opositor.
Seguiu-se Tiago Apolónia, que venceu Dimitrij Ovtcharov por 3-1, numa exemplar demonstração de autocontrolo e maturidade, tendo no segundo set obtido um memorável resultado de 11-2. Na memória ficará também o 10.º ponto do quarto set, em que a bola entrou pela parte lateral da mesa (ou seja, sem passar por cima da rede).
O atleta português conseguiu responder quase sempre com eficácia a um tipo de serviço que caracteriza o adversário, que flecte os joelhos de tal forma que quase desaparece do lado de lá da mesa, imprimindo à bola um efeito que parece contrariar as leis da física. Uma disputa em que se trocou de bola por três vezes, tal a intensidade de jogo.
O embate final, entre os dois esquerdinos e agressivos jogadores Marcos Freitas e Timo Boll, foi o mais espectacular e aquele em que os adeptos mais se fizeram ouvir. Não só pela dinâmica que imprimiram ao “duelo”, como pelo vislumbre da vitória portuguesa, que se confirmaria.
O pavilhão explodiu então de euforia, com a comitiva portuguesa a festejar abraçada no chão um inédito triunfo continental e logo perante uma selecção que é a número 1 do ranking europeu, campeã europeia ininterruptamente desde 2007 e vice-campeã do mundo.
Pedro Rufino, seleccionador nacional, lembrou que foi uma tarefa difícil: “Sofremos muito, mas encontrámos um caminho. Estes jogadores são fortes física e mentalmente. Merecem ser campeões da Europa.” E terminou acrescentando: “Se jogássemos contra eles [alemães] amanhã, seriam favoritos outra vez”, numa declaração que revela bem a qualidade do opositor.
A selecção nacional feminina também obteve o seu melhor resultado de sempre, 12.º lugar na I Divisão, e garantiu a presença no Europeu 2015, em Baku. Público

Aliança impossível de EUA com a Rússia no combate ao Estado Islâmico

por A-24, em 28.09.14
José Milhazes


É difícil esperar qualquer coordenação de acções entre a Rússia e a NATO face a um problema mundial, a não ser que a Terra seja invadida por extraterrestres. E mesmo assim...
Não obstante os terroristas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante terem também ameaçado a Rússia e o próprio Presidente Putin, este não se apressa a juntar-se à coligação internacional que luta contra o ISIS, pois parece recear que o objectivo dos Estados Unidos e seus aliados seja derrubar o regime sírio de Bashar Assad à sombra do combate aos jihadistas.
Numa conversa telefónica com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, o Presidente russo defende que, nas operações contra o ISIS na Síria, se “deve respeitar o Direito Internacional” e os bombardeamentos aéreos nesse país só deverão realizar-se com “o consentimento do governo sírio”.
Tendo em conta que Washington e os seus aliados deram ouvidos a Putin quando este evitou a invasão da Síria a troco da entrega das armas químicas por Damasco à comunidade internacional, poder-se-ia pensar que também desta vez será possível chegar a um acordo, mas tal não deverá acontecer. Isto porque, ao espezinhar o Direito Internacional na Ucrânia com a anexação da Crimeia e o apoio aos separatistas do leste do país, o Kremlin perdeu o direito de dar lições de moral aos outros, se é que já não tinha perdido esse direito quando da guerra na Tchechénia ou da invasão da Geórgia.
E, pelos vistos, os EUA e os seus aliados irão resolver os problemas da Síria e do ISIS à sua maneira, enquanto a Rússia irá continuar a sua política no país vizinho, embora com mais êxito. O conflito entre Kiev e os separatistas pró-russos está a caminho do congelamento, o que permitirá a consolidação dos poderes nas regiões separatistas e a criação de uma situação como a que existe na Transdnistria em relação à Moldávia. Isto se Putin não avançar ainda para a conquista de corredores para ligar a Rússia à Transdnístria e à Crimeia.
Face a esta situação é difícil esperar uma coordenação de acções entre a Rússia e a NATO face a qualquer problema mundial, a não ser que a Terra seja invadida por extraterrestres. E mesmo assim…

Deputados

por A-24, em 28.09.14
Via Estado Sentido

Não se entende toda esta resistência a uma necessária redução no número de deputados em S. Bento. Apenas para uma breve comparação com alguns países de dimensão idêntica à portuguesa - embora mais prósperos -, aqui ficam os números:

Reino dos Países Baixos, 16.856.000 habitantes, 150 deputados no Parlamento

Reino da Bélgica, 11.200.000 habitantes, 150 deputados no Parlamento

República da Áustria, 8.400.000 habitantes, 183 deputados no Parlamento

República da Hungria, 9.879.000 habitantes, 199 deputados no Parlamento

Reino da Dinamarca, 5.700.000 habitantes, 179 deputados no Parlamento

República da Irlanda, 6.400.000 habitantes 186 deputados no Parlamento

Reino da Noruega, 5.136.000 habitantes, 169 deputados no Parlamento

Em conclusão, os beneditinos "resistentes" ficam na desagradável posição de reconhecerem a "necessidade de mais gente para fazer o mesmo trabalho que os outros fazem" com menos cérebros disponíveis. Claro que isto é populismo, algo muito diferente de caciquismo, tachismo, jotinhismo, etc. Aguarda-se então mais uma avalanche de justificações esfarrapadas.

Uma nação encarcerada?

por A-24, em 27.09.14
Via Malomil


Em 2000, o número de reclusos nos Estados Unidos atingiu o impressionante valor de 2 milhões, o que é aproximadamente o quíntuplo do que ocorria em meados dos anos 70. Na América, a taxa de encarceramento per capita é a maior do planeta, sendo aproximadamente dez vezes superior à verificada na Europa ocidental [1] ou entre seis a dez vezes superior à de países congéneres[2]. Enquanto nos Estados Unidos existem 709 reclusos por 100.000 habitantes, esse número é de 129/100.000ha no Canadá, 110/100.000ha no México e 85/100.000ha em França[3]. Curiosamente, na Europa ocidental Portugal é o país com maior população prisional per capita – 145 por 100.000 –, seguindo-se a Grã-Bretanha (125/100.000ha) e a Espanha (110/100.000ha)[4].
Henri Cartier-Bresson, EUA, 1975

Os apelos feitos no início da década de 70 para uma reforma do modo de aplicação das penas, cristalizados no que já se designou por Sentencing Reform Movement, resultaram, de acordo com a opinião unânime de defensores e detractores, num endurecimento claríssimo das sanções aplicadas[5]. Tal fenómeno surgiu no contexto de uma cultura policial marcada por conceitos como zero tolerance, broken windows[6] ou life-style crimes[7] e de uma cultura judiciária caracterizada por uma severidade sem paralelo. A pena de prisão é, de longe, a sanção mais aplicada nos tribunais estaduais e federais. Apesar de se verificarem taxas de criminalidade estáveis ou mesmo mais reduzidas, o número de reclusos subiu de 329.821 em 1980 para 1.284.894 em 1999, um aumento de cerca de 400%, tanto mais vertiginoso quanto uma análise diacrónica ampla, que cobriu o período 1925-1975, revelou que a taxa de encarceramento se mantivera relativamente estável ao longo desses cinquenta anos. Na viragem para o século XXI, 6,3 milhões de pessoas (cerca de 3,1% dos residentes adultos nos Estados Unidos) encontravam-se na prisão ou em liberdade condicional. Há quem fale numunprecedent imprisionment binge nas últimas duas décadas[8], que se deve à confluência perversa do medo colectivo perante o crime e a droga e de uma cultura judiciária para a qual «só a prisão é verdadeira pena»[9]. A maioria das condenações – em percentagens que em algumas áreas se aproximam dos 90% – resultam de declarações de culpabilidade (guilty pleas) dos arguidos.

Para além disso, existem claros padrões de selectividade social que levam a que os arguidos com menos escolaridade, mais pobres ou desempregados sejam alvos de sanções mais pesadas[10], a par de padrões de discriminação racial ainda mais evidentes; na Geórgia, os acusados de matar um branco têm 4 vezes mais hipóteses de serem condenados à morte do que os acusados de matar um negro; nos Estados Unidos em geral, 86% dos negros que cometem crimes sexuais contra mulheres brancas são condenados a penas de prisão, ao passo que apenas 66% dos negros que agridem sexualmente mulheres negras são presos e, menos ainda, somente 54% dos brancos que praticam crimes de natureza sexual com mulheres brancas são encarcerados. Nos crimes sexuais, inúmeros estudos demonstram que a gravidade das penas depende de forma clara das características e do estilo de vida da vítima – idade, cor, profissão, nível de escolaridade, reputação, adopção de «comportamentos de risco» (andar à boleia, consumir bebidas ou estupefacientes) – bem como, nos crimes em que as vítimas são mulheres, do tipo de relacionamento entre o agressor e a vítima: os agressores que não têm qualquer relação com a vítima são mais severamente punidos, ainda que o tipo de crime seja o mesmo. Curiosamente, as juízas são mais severas do que os juízes: a possibilidade de uma juíza aplicar uma pena de prisão, controladas as demais variáveis, é 11 vezes superior à de um seu colega do sexo masculino.

No quadro deste endurecimento generalizado das penas não pode deixar de se referir ainda as leis three-strikes-and-you’re out, que impõem a prisão perpétua ao fim de três condenações e têm vindo a ser contestadas, mesmo pelos defensores da law and order, dada a sua natureza mais simbólica do que real, porquanto a generalidade dos Estados já possuía previsões legais muito severas para os casos de reincidência. 

É certo que a ideia da instauração contemporânea de uma «cultura de controlo» não pode ser absolutizada, havendo sinais de que, em alguns domínios, imperam ainda ideais de tolerância[11]. Assim, oito Estados americanos legalizaram o consumo de cannabis, do mesmo passo que outros estabeleceram programas de substituição para os toxicodependentes; lembre-se ainda que o Supremo Tribunal, atendendo aos «standards evolutivos de decência», considerou serem contrárias à 18ª Emenda à Constituição as execuções de deficientes mentais, o que levou 18 Estados a renunciarem a este tipo de execução. Mais recentemente, numa decisão por maioria tangencial – no caso Roper v. Simmons (2005) – o Supremo Tribunal considerou ser inconstitucional aplicar a pena de morte por crimes cometidos antes dos 18 anos (desde 1976, tinham sido executados 22 jovens nos Estados Unidos, 13 dos quais no Texas). E, noutras decisões igualmente recentes, como Lawrence v. Texas (2003) o Supremo tem vindo a aludir, com frequência crescente, à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, prática que merece a contestação de alguns juízes mais conservadores, como Antonin Scalia ou Clarence Thomas.

Porém, quase todos os elementos apontam claramente para uma transformação da abordagem da criminalidade que está longe de ser um fenómeno meramente conjuntural. É corrente apontar-se a hegemonia dos meios de comunicação de massas na «fabricação» de uma opinião pública emocionalmente motivada pela divulgação sensacionalista de casos de polícia. Aponta-se ainda a explosão do consumo de estupefacientes e da criminalidade a ele associada como uma das causas não apenas do aumento da criminalidade como da sua «expansividade indiscriminada» por todos os segmentos sociais e por todas as áreas das grandes cidades. Existem, todavia, outros dados menos visíveis mas nem por isso menos importantes: o aumento da esperança de vida fez crescer o peso de camadas mais idosas no seio da população, com uma maior vulnerabilidade do ponto de vista da vitimação e uma maior sensibilidade ao apelo de valores de law and order; o aumento da taxa de divórcios e fenómenos como a gravidez na adolescência produziram um crescimento da monoparentalidade (são monoparentais 70% das famílias afro-americanas dos Estados Unidos) o que, por seu turno, induziu novos problemas de pobreza ou quase-pobreza feminina e infantil; o aumento do nível de vida das classes médias proporcionou-lhes um acesso a bens de consumo apetecíveis para delinquentes, que até aí actuavam apenas junto dos estratos mais baixos ou marginais da sociedade, existindo, por assim dizer, uma «democratização da vitimização». Em resultado de tudo isto, verificou-se um aumento da criminalidade em todas as nações industrializadas desde meados dos anos 60 até à década de 80 do século XX. A circunstância de o aumento da criminalidade ter ocorrido numa fase em que os investimentos públicos em serviços sociais eram muito intensos – nunca tendo cessado de aumentar exponencialmente desde o pós-guerra – fez entrar em crise, pelo menos para algumas correntes, a ideia de que as causas da delinquência radicavam essencialmente na pobreza ou na precariedade das condições de vida. Ao desfazer-se a associação pobreza = crime facilitou-se o caminho a abordagens que orgulhosamente reclamavam um menor «paternalismo» no tratamento da delinquência, advogando em alternativa a adopção de soluções mais simples e directas baseadas num retributivismo puro e no encarceramento em massa em estabelecimentos penitenciários caracterizados pela «dureza» das suas condições. Em nenhuma prisão norte-americana é proibido aos guardas insultar os reclusos; é prática corrente o uso de uniformes e de castigos corporais (golpes de bastão) bem como o trabalho em comum de equipas de reclusos presas entre si por uma cadeia de ferro nos tornozelos (chain gangs). A regra básica é «fazer o prisioneiro sentir-se prisioneiro» (make prisionners smell like prisionners).

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