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A-24

Multiplicai-vos e crescei

por A-24, em 23.08.14
A Batalha


O Parlamento aprovou mais uma proibição. No Irão passou a ser proibido que os médicos pratiquem actos que impeçam os pacientes de ter descendência de forma permanente. A lei vai no mesmo sentido das indicações do líder supremo, o Ayatollah Ali Khamenei, que pretende duplicar a população do Irão. No princípio do ano, Ali Khamenei referiu mesmo que “o Irão deveria ser um país de 150 milhões de pessoas e não de 77″, como é na actualidade. A lei prevê uma excepção à regra: os médicos poderão levar a cabo este tipo de intervenções quando não efectuá-las resulte em colocar em risco a saúde do paciente. A lei prevê também outra proibição complementar: os meios de comunicação social ficam impedidos de publicarem artigos que possam pormover o controlo da natalidade. Em Junho, o Parlamento aprovou uma norma geral que estabelece penas de prisão para quem efectue procedimentos de controlo de natalidade. A justificação da lei foi dada pela “necessidade de incrementar a fertilidade no país e impedir que haja uma diminuição da população.” Antes das proibições, as vasectomias deixaram de ser financiadas, em prol da natalidade.
Dentro da maré de proibições, as autoridades iranianas não permitirão que a BBC volte a emitir do país. A promessa foi assegurada pelo Ministro da Cultura e Orientação Islâmica, Alí Yanati. “Não se deu nenhuma licença À BBC e a redacção de notícias daquele canal não irá reabrir. Está claro que os foram indiferentes ou que se opuseram à revolução islâmica e tomaram medidas nesse sentido, nunca gozarão do nosso apoio.” A decisão oficial é produzida alguns dias após se ter anunciado a reabertura para breve da Embaixada britância em Teerão, encerrada em 2011 como protesto político contra a violenta repressão das autoridades iranianas aos manifestantes iranianos que se seguiram à polémica reeleição do Presidente Mahmud Ahmadineyad.
Dois anos após os acontecimentos, os serviços secretos do Irão passaram a considerar que qualquer forma de colaboração com a BBC seria considerada como um acto de espionagem. De passagem, dezenas de pessoas foram acusadas de cooperar com a edição persa da BBC, à qual milhares de iranianos acedem através de satélites, também eles proibidos. A partir de 2013, a repressão aumentou e assumiu as formas de ameaças de morte a jornalistas e seus familiares, perfis falsos nas redes sociais, campanhas de intimidação e descrédito em meios de comunicação afectos ao regime iraniano e que incluíram informações falasas sobre hábitos sexuais, corrupção e tráfico de droga. Recentemente foram detidos e interrogados quatro jornalistas norte-americanos ao serviço do The Washington Post, dois deles fotógrafos. No passado dia quatro de Agosto, Hassan Rohani cumpriu o primeiro ano como Presidente do país mas têm sido moderados os avanços na economia e no capítulo da (falta de) liberdade.

Os emigrantes e a vergonha

por A-24, em 22.08.14
Alexandre Homem de Cristo

Há um lado negro na nossa relação com os emigrantes, com raiz no confronto com o Portugal de 1970. Somos um país que detesta olhar para o que foi e, quando tem de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

O homem do bigode, a mulher do buço, o pedreiro, a porteira, o peludo, o saloio, o burro, o devorador de bacalhau. Toda a gente, directa ou indirectamente, já se confrontou com os estereótipos que os estrangeiros têm dos portugueses, nomeadamente nos países que receberam imigração portuguesa nas décadas de 1970 e 1980 – França, Canadá, Luxemburgo, Suíça, entre outros. De certo modo, habituámo-nos a eles. Aprendemos a aceitá-los. Em muitos casos, já nem os achamos insultuosos; apenas castiços. Até porque, nessas décadas, essas caricaturas tinham uma ponta de verdade – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico. Foi, também, essa realidade que os nossos emigrantes levaram consigo. E foi esse o Portugal que deram a conhecer.

Mas, verdade seja dita, mesmo que levemos a coisa com alguma tolerância, já não gostamos de ser identificados com esses estereótipos. Afinal, parte dessa caricatura do povo português tem como efeito uma espécie de inferiorização social de nós, portugueses, face a eles, franceses, suíços ou ingleses. Uma inferiorização que, hoje, é particularmente injusta: em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus. E, consequentemente, as novas gerações de portugueses que se aventuram pelo mundo têm um perfil de qualificações muito superior ao da geração dos seus pais e avós. Portugal mudou. E os portugueses também.

Essa contradição, entre o que somos e como ainda nos reconhecem, sobressai na reportagem do Público, publicada há dias. Questionados os jovens portugueses que vivem no estrangeiro sobre esses estereótipos, os episódios vão todos no mesmo sentido: os portugueses que hoje emigram são cientistas ou engenheiros, mas continuam a ser vistos como trolhas. Ou seja, continuam a ser vistos como se fossem os seus pais.
Seria confortável acharmos que o preconceito que criticamos (e em que todos esses equívocos assentam) é exclusivo aos estrangeiros, que desconhecem a realidade portuguesa. Mas é um engano. A verdade é que esse preconceito está bem vivo entre nós e é aplicado a portugueses por portugueses. Esse é o lado negro da relação de Portugal com os seus emigrantes, que fingimos não existir e que não é mais do que o confronto entre dois países tão distantes como o Portugal de 1970 e o de hoje. Chocar de frente com o passado não é fácil. Sobretudo em Portugal: o país detesta olhar para o que foi e, quando tem mesmo de o fazer, fá-lo escondendo a vergonha.

É Agosto. Carros de matrícula estrangeira percorrem as estradas e invadem as aldeias e pequenas cidades do país. É o mês dos emigrantes. E eles regressam à pátria para matar saudades, mostrando aos filhos, muitos deles nascidos fora, o que os fez esperar um ano pelo Verão. Mas, em muitos casos, o que os espera a eles é o mesmo desprezo social com que lidam lá fora – piadas e anedotas sobre o seu português afrancesado, estranheza e alguma condescendência com os seus hábitos. Portugal olha para os seus emigrantes com a mesma superioridade que censura aos que os recebem lá fora.

Não é só um problema de ingratidão – os emigrantes contribuíram muito para o desenvolvimento do país com as suas remessas, numa relação apaixonada e incondicional com as suas raízes. É, sobretudo, um problema de memória. Enquanto eles cá estiverem, todos os anos em Agosto, seremos forçados a lembrarmo-nos de onde viemos – das dificuldades da geração dos nossos pais, do analfabetismo, do inconformismo face a um país com poucos horizontes que os fez arriscar tudo lá fora. Mas, quando eles deixarem de vir? Iremos, finalmente, esquecer tudo. E quem esquece o passado perde também a visão sobre o futuro.

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e um comentário pertinente:

Pedro Grangeiro

AHC, você é um rapaz novo e, portanto, não tem culpa de ser vítima de um sistema educativo preocupado em ocultar tudo o que diz respeito ao Estado Novo. Assim, deixe-me esclarecê-lo.
Deixemos de lado os 50 anos que você diz que teria durado o Estado Novo, pois isso quereria dizer que teria acabado em 1983. Quando você diz « – após 50 anos de Estado Novo, a sociedade portuguesa tinha baixos níveis de desenvolvimento social e económico.» parece-me que está a acusar o Estado Novo de ser responsável por esses baixos níveis, mas comete o mesmo erro da maior parte dos comentadores do Estado Novo: Esquece-se do ponto de partida. O ponto de partida foi a miséria total e absoluta deixada pela I República. Em 1926, Portugal tinha um PIB per capita equivalente a 28% do PIB per capita médio da Europa mais rica. No fim do Estado Novo esse número era já de 60 %. Curiosamente, 40 anos depois da revolução, continua na mesma, 60%.
Adiante você diz « em 40 anos de democracia, o país mudou muito e para melhor – por exemplo, os índices de escolarização dos nossos jovens estão de acordo com os padrões europeus.» O seu erro repete-se: O Estado Novo encontrou um país com 70% de analfabetismo e deixou-o com menos de 30%. Concordará comigo que foi uma questão de tempo. Se o Estado Novo tivesse continuado, os níveis de escolaridade seriam, pelo menos, iguais aos de hoje, embora eu ache que seriam seguramente superiores, considerando o grau de exigência de então.

Afinal somos todos Scarlett Johansson, ou Lucy

por A-24, em 21.08.14
O filme de Luc Besson parte do "mito urbano" que diz que o ser humano não usa 100% do cérebro. Mas ainda assim vale a pena ver este thriller de ação, protagonizado por Scarlett Johansson.

Scarlett Johansson, ou Lucy, só tinha de entregar uma mala misteriosa, mas acaba coagida para ser “mula” de uma droga revolucionária. Quando a droga sintética rebenta no seu estômago, estranhas reações fazem com que Lucy passe a usar 100% do cérebro, o que se traduz em poderes sobre-humanos. É esta a premissa do novo filme de Luc Besson, que estreia em Portugal esta quinta-feira. Mas Lucy somos já todos nós.

“Estima-se que a maioria dos seres humanos use apenas 10% da capacidade cerebral. Imagine se conseguissemos ter acesso a 100%. Aconteceriam coisas interessantes.” Uma deixa do professor Norman, interpretado por Morgan Freeman, no filme “Lucy”, mas que poderia ter sido proferida por qualquer pessoa na vida real. O mito persiste, mas é errado. A verdade é que o ser humano usa a quase totalidade do cérebro. Sem recurso a qualquer droga.
Tentando esquecer que a questão principal do filme é um “mito urbano”, o que temos em “Lucy” é um thriller de ficção científica e efeitos especiais, produzido por Virginie Besson-Silla da EuropaCorp. Luc Besson dirige Scarlett Johansson para que a sua metamorfose de estudante americana em Taiwan para implacável guerreira sobre-humana se torne no centro do filme. OBSERVADOR

Sobre a morte de James Foley

por A-24, em 21.08.14
José Manuel Fernandes

As imagens são terríveis e a generalidade dos órgãos de informação não as publicou. Um jornalista a ser decapitado. Outro a ser ameaçado, com uma faca na garganta. Depois a decisão acertada do Twitter de bloquear o vídeo chocante da morte de Foley. Tudo a revelar a brutalidade da acção dos radicais islâmicos do ISIS, cujos métodos levaram à denúncia de que “está em curso um genocídio medieval contra a população civil no Iraque”. E por fim a ideia de que há problemas para os quais só verdadeiramente despertamos quando tocam alguém que sentimos mais próximo – como um jornalista.


James Foley, o jornalista decapitado, e Steven Sotloff, o jornalista que o jihadistas ameaçam decapitar, estavam na Síria a fazer o seu trabalho – um trabalho que, num cenário de guerra, é sempre difícil e perigoso. Outros profissionais morreram naquele conflito, apanhados pelo fogo cruzado ou no meio de um bombardeamento, alguns deles veteranos de outros conflitos. Por regra todos estavam ali como voluntários e sabiam que corriam riscos. O que não torna menos horríveis as suas mortes, sobretudo este assassinato.

Todos os que estão no terreno sabem porém que não correm apenas risco de vida – podem também pôr em jogo a sua credibilidade. Costuma dizer-se que, quando se ininia uma guerra, a primeira vítima é a verdade. E todos sabemos que a guerra da propaganda é muitas vezes mais importante do que a guerra com balas reais. Para os jornalistas o desafio é especialmente complexo porque não enfrentam apenas a dificuldade de conseguirem chegar às boas fontes de informação – confrontam-se ao mesmo tempo com tremendos desafios à sua regra de imparcialidade.

Christiane Amanpour, talvez a mais famosa repórter de guerra da CNN, disse um dia, a propósito da guerra da Bósnia: 'There was no way that a human being or a professional should be neutral.'Verdade? Na altura o seu editor corrigiu-a: 'Any good reporter caught up in a big story will occasionally go a step too far. That is why everybody has an editor.'

As dificuldades dos repórteres aumentam quando as guerras envolvem paixões não apenas nos territórios onde os exércitos se enfrentam, mas também nas opiniões públicas dos diferentes países. E poucas guerras envolvem tantas paixões como as de Israel e da Palestina. Paixões que muitas vezes também tocam os jornalistas, que até tomam partido em apaixonadas discussões. Isso mesmo está a acontecer em Israel depois de a associação da imprensa estrangeira ter feito um comunicado em que condena as pressões exercidas pelo Hamas junto dos jornalistas que seguiam o conflito a partir do interior de Faixa de Gaza: “The Foreign Press Association protests in the strongest terms the blatant, incessant, forceful and unorthodox methods employed by the Hamas authorities and their representatives against visiting international journalists in Gaza over the past month”. 

A polémica estalou quando a chefe da delegação do New York Times, Jodi Rudoren, utilizou a sua conta no Twitter para considerar essa tomada de posição uma “tonteria” (“nonsense”). Mais tarde acrescentaria que era “perigosa”. A história vem contada no Haaretz: “Foreign press divided over Hamas harassment”.

Mas esta controvérsia não tem apenas por palco os círculos frequentados pela imprensa estrangeira em Israel: já transbordou para as páginas de muitos jornais em todo o mundo. O que se discute é o equilíbrio na cobertura do recente conflito, o facto de praticamente nenhum repórter destacado em Gaza ter relatado as operações militares do Hamas, sendo que muitos transmitiam as informações fornecidas pelas autoridades locais afectas a esse grupo radical sem as escrutinarem devidamente.

No britânico The Telegraph, Alan Johnson, um estudioso do Médio Oriente, recapitula alguns episódios que seriam sinais de falta de equilíbrio na cobertura jornalística do conflito. Eis um deles:
Israeli filmmaker Michael Grynszpan described on Facebookan exchange he had had with a Spanish journalist who had just left Gaza. "We talked about the situation there. He was very friendly. I asked him how come we never see on television channels reporting from Gaza any Hamas people, no gunmen, no rocket launcher, no policemen. We only see civilians on these reports, mostly women and children. He answered me frankly: 'It's very simple, we did see Hamas people there launching rockets, they were close to our hotel, but if ever we dare pointing our camera on them they would simply shoot at us and kill us.'"

Um dos pontos mais controversos da cobertura noticiosa foi o facto de poucos jornalistas referirem que o Hamas construiu um dos seus principais bunkers por baixo do mais importante hospital de Gaza e que os repórteres esperavam pelas suas conferências de imprensa no pátio desse mesmo hospital. Esse é um dos pontos focados na reportagem da New Republic, uma reportagem significativamente intitulada “Reporters Have Finally Found Hamas. What Took So Long?”. Eis uma das histórias que aí se conta:
“A Palestinian journalist wrote in France’s Liberation newspaper that he had been interrogated by Hamas and threatened with expulsion from the Strip. A colleague had even denied him shelter for the night, explaining, “You don’t mess with these people”—Hamas, that is—“during war.” Two days later, the story was pulled at the journalist’s request.”

Depois há o problema de como se reportam as vítimas, em especial as vítimas civis. Quantas são? Porque nunca foram dados números sobre as baixas militares do Hamas? E é mesmo verdade que morreram todos aqueles filhos a todas aquelas famílias? Lembro-me de, em 2002, pouco tempo depois da batalha de Jenin (um campo de refugiados na Cisjordânia) ter assistido em Bruges, num Congresso do Fórum Mundial de Directores, a uma discussão sobre uma família de nove palestinianos que a imprensa de todo o mundo tinha dado como morta e que, afinal, estava viva. Agora sucedeu o mesmo, mas com uma família de Gaza. Muitos órgãos de informação contaram a história da família de Mohammed Badran, mas raros corrigiram a informação. Um dos que o fez foi a revista da esquerda britânia New Statesman, numa nota de correcção a uma longa reportagem intitulada “Life among the ruins: ten days inside the Gaza Strip”.

Um conflito com as características do israelo-palestiniano, onde quase todos tomam partido, tende a extremar as exigências de rigor e a levar ao aparecimento de organizações da sociedade civil que se dedicam ao escrutínio dos jornalistas. Essas organizações fazem-no, por regra, a partir de um ponto de vista. Assim, para conhecer uma perspectiva pró-palestiniana, pode-se consultar o FAIR – Fairness and Accuracy in Reporting, e ver este exemplo. Já sites como CAMERA - Committee for Accuracy in Middle East Reporting in America e HonestReporting – Defending Israel from Media Bias colocam-se mais numa perspectiva pró-israelita. Mas todos contribuem para colocar pressão sobre o trabalho dos jornalistas e lembrar-lhes, como fazia o editor de Christiane Amanpour, que às vezes se deixam envolver demais e perdem equilíbrio na forma como relatam os factos.

Por hoje é tudo. Bom descanso, boas férias (se for o caso) e, claro, boas leituras.

Farc sem vergonha

por A-24, em 20.08.14
A Batalha

As negociações de paz trilham caminhos tão perigosos como promissores. Os negociadores do governo colombiano e dos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) a 22 de Agosto irão dar início a uma comissão cujo objectivo é tratar dos aspectos técnicos que conduzam ao fim do conflito. Aquele comité tratará dos assuntos relacionados com o cessar-fogo e o fim das hostilidades. Sabe-se que o grupo inicial será formado por 10 membros de cada delegação e a sua primeira tarefa passará por estabelecer já no próximo dia 12 de Agosto um cronograma de trabalho. Um dos pontos mais quentes a ser discutido na capital cubana, local onde estão a ser conduzidas as negociações, é o de escutar as vítimas do conflito.
No sentido de virar o rumo dos acontecimentos, o núcleo duro da comissão será composto por 12 especialistas tidos como independentes e por dois relatores que dentro de um prazo de quatro meses irá elaborar pareceres sobre as origens e causas do conflito, factores que contribuíram para a sua duração e as principais consequências sobre as populações. Estas iniciativas, asseguram as autoridades, “não substituem nem determinam nenhum elemento da futura comissão da verdade” que no futuro irá ajudar a colocar um ponto final no conflito armado que persiste há mais de 50 anos.
A guerrilha marxista e o governo da Colômbia reiteram a “importância de escutar as vítimas sem discriminação.” A primeira dificuldade surge quando as delegações que viajarem para Havana lhes ser impossível representar a totalidade das vítimas causada pelo conflito, apesar de terem recebido cerca de quatro mil propostas de várias associações ligadas às vítimas, incluindo de alguns daqueles que tiveram que fugir do país. O grande problema reside, no entanto, na insistência por parte das FARC em incluir na delegação os seus combatentes que se encontram presos e feridos. O pedido para que as autoridades colombianas acedam com garantias e permissões para que os terroristas se desloquem a Havana, já foi feito. As associações de vítimas da violência provocada pela guerra na Colômbia pediram aos negociadores que ampliem o universo das vítimas reconhecidas como tal, por forma a se alcançar a máxima reparação possível a quem ficou no meio da luta entre as FARC, paramilitares e exército. Trata-se de não deixar cair no esquecimento os 220 mil mortos, 25 mil desaparecidos, quase seis milhões de refugiados e 27 mil sequestrados.
O Presidente da Colômbia Juan Manuel Santos sossegou os militares ao afirmar que as negociações de paz não implicam a discussão do futuro das forças militares e da polícia nacional. “Quero reiterar uma vez mais aos membros das nossas forças militares e polícia que vocês não estão sequer na agenda (das negociações), não são motivo de discussão.” Juan Manuel Santos garantiu na cerimónia oficial da comemoração do 195º aniversário do exército que “qualquer modificação relacionada com as forças armadas e a polícia será resolvida aqui na Colômbia, entre os comandantes, o Presidente da República e o Ministro da Defesa. Não é verdade que estejamos a discutir a redução, o aumento, as mudanças com as FARC”, assegurou. Caso não se chegue a um acordo, Juan Manuel Santos afirma que a ofensiva militar é para continuar. “Continuaremos a combater porque essa é a forma de chegar ao final do conflito mais rapidamente, por isso não iremos ceder nem um único centímetro do nosso território a qualquer conversação que se faça no exterior.”

GUIA PRÁTICO DO COMPORTAMENTO PSEUDO-REVOLUCIONÁRIO

por A-24, em 19.08.14
Via Oficina Sociológica

1- Defenda com todas as suas forças os direitos de minorias.Diga que compreende o sofrimento e a luta delas como se realmente fosse um deles. Romantize a vida na favela e o sofrimento dos pobres como se de fato achasse isso legal, especialmente se você pertence a classe média e classe alta. Pois vai mostrar o quanto se preocupa com os menos favorecidos, que é politizado e não um menino mimado criado a base de leite de pêra.


2- Bata sem dó na Igreja Católica. Embora falar mal de Igreja seja a coisa mais comum desde os tempos imemoriais, isso por si só será o suficiente para te passarem atestado de inteligência E ,claro, mostrará para seus amigos que você não se deixa se submeter as imposições sociais ( seja lá o que isso signifique) e não é crédulo demais para acreditar em qualquer bobagem.

3- No ônibus, dê lugar ao velhinho mais próximo, depois escreva isso em seu blog ( a propaganda é a alma do negócio)

4- Jamais, nunca, never, forever diga palavras como " negro", "bicha", "viado" e "p*t* e repreenda todo aquele que dizer, pois demonstrará o quanto você é livre de preconceitos. Não ri do próximo. Respeita as diferenças e acredita que para liberdades de expressão há limites. Não importa se você é aquele cara escroto que tem nojo de pobre. Um arrivista social, mesquinho que faz mal juízo das pessoas. Só o fato de usar o português corretamente vai fazer as pessoas lhe respeitarem mais.

5- Diga sempre que não assiste a Globo ( isso seria suicídio intelectual), pois mesmo que você veja o campeonato brasileiro e as lutas do Anderson Silva por ela, isso mostrará o quanto você é um cidadão com senso crítico que entende a capacidade de manipulação dos meios de comunicação. Ah! e sempre compartilhe imagens no Facebook para enfatizar sua posição de "crítico do sistema"

6 -Seja pró-abroto, pró-maconha, pró-eutanásia e pró-qualquer-coisa- que-seja-contra-o-status-quo, isto mostra o quanto você é um árduo defensor das liberdades individuais e respeita a vontade do próximo, além de denotar claramente o quanto você é socialmente consciente, isto segundo a Escala Sakamoto, O Suprasumo da Consciência Social.

7- Mostre o quanto você é culto e instruído nas redes sociais e faça comentário no Facebook sobre as palestras do Programas da TV Cultura, pois embora todo mundo fale que assista, mas a gente sabe que é a audiência da Record que aumentou


8-Compartilhe os links da Eliane Brum mesmo que só tenha conseguido ler até o terceiro paragrafo, pois antes de chegar ao final você já tinha caído de sono.


9- Seja politicamente correto, isto é, mostre seus preconceito de forma que não venha sofrer qualquer repreensão por parte da sociedade. Use e abuse de palavras dificeis para xingar seus amigos, pois eles jamais entenderão e você não correrá o risco de pagar uma indenização milionária porque falou a mais absoluta verdade ao chamar aquela pirigueti de " vaca"


10- Leia e decore os principais trechos da Teoria Marxista. pois é recomendadíssimo que você esteja sempre pronto para cuspir nos outros as máximas esquerdolóides ultrapassados, inócuos e reducionistas de Marx e com isto deixar todo mundo impressionado com suas posições políticas tão progressistas. Também decore paginas, livros e citações de obras e autores clássicos da filosofia, história e literatura, estando sempre pronto para mostrar as pessoas o quanto é você é versado em teorias sociais especialmente se o Outro for de direita. Porque basta ser de Direita para não saber de nada.


11- Fale mal dos ricos, pois é sempre bem visto entre os "criticos do sistema". De preferência use e abuse de jargões e clichês esquerdistas como "contra burguês", " odeio burguês" e assim vai... pois esse povo adora fingir que não liga para dinheiro, quando na verdade jamais trocaria um fim de semana em Maragogi por um churrascão na Laje com pagode e funk da Valesca Popuzuda e aquele que disser o contrário considere-o um reacionário de direita


12 - Diga que odeia o consumismo, embora você acesse Internet pelo seu Macbook de 3,000 dilmas.

O castelo

por A-24, em 18.08.14
in Blasfémias

O Porto vive um extraordinário momento de reanimação e crescimento, suportado por um surto de turismo europeu que anima o comércio, a restauração e a hotelaria. Este crescimento de que todos beneficiamos é feito apesar de e contra o estado e os poderes públicos, que para além de se intrometerem na vida das empresas em busca de receitas fiscais extorsionárias, lhes impõem toda a sorte de exigências legais, burocráticas e formais na gestão dos seus negócios.
Um desses negócios é a recuperação urbanística dos velhos prédios em ruínas da baixa e arredores, com destino à construção de pequenos apartamentos de investimento essencialmente turístico. Quem se aventurar nessa empreitada conhecerá, ao invés do incentivo e do apoio das autoridades, que deveriam preocupar-se com as décadas de abandono imobiliário da cidade, os “rigores” de leis e portarias municipais cuja principal finalidade parece ser a de que ninguém faça coisa nenhuma. Num país decente, este esforço empreendedor de cidadãos e de empresas esmagados por uma fiscalidade de piratas devia ser estimulado, por exemplo, com isenções fiscais por prazo generoso para quem se dispusesse a gastar o seu tempo e dinheiro a recuperar um belíssimo património imobiliário que foi destruído por décadas e décadas de leis absurdas. Ao invés, em Portugal prefere-se lixar a vida a quem quer fazer alguma coisa, bastando, para tanto, aplicar uma dessas inúmeras leis que regulamentam tudo e mais alguma coisa, com excepção de nos explicarem como é que se transforma uma cidade em ruínas num lugar onde valha a pena viver.

Kokito

por A-24, em 17.08.14
Excelente artigo de António Araújo no Malomil


Numa das passagens mais comoventes de Errata: Revisões de uma Vida, George Steiner recorda que, quando fez seis anos, o pai lhe começou a ler trechos da Ilíada, principiando logo pelo Livro XXI. Steiner lembra a cruel passagem em que Aquiles, desvairado pela morte do seu amado Pátrocolo, massacra os troianos em fuga. «O meu pai leu o grego várias vezes. Fez-me soletrar as sílabas. O dicionário e a gramática escancararam-se diante dos meus olhos.»


O trecho que provocou tão funda impressão na criança precoce é aquele em que, sem piedade, Aquiles degola o desprezível Licáon, um dos filhos de Príamo.

Aquiles desferiu-lhe um golpe com a espada afiada

na clavícula, por baixo do pescoço; e a espada de dois gumes

penetrou. Prostrado no chão ficou Licáon, estatelado;

seu negro sangue jorrou da ferida e molhou a terra.


(Homero, Ilíada, Canto XXI, 116−119, trad. de Frederico Lourenço)

No ensaio que dedicou às decapitações na arte ocidental, Visions capitales, Arts et rituels de la décapitation, Julia Kristeva escreve, a dado passo, que «o horror destas decapitações e o impacto das suas reproduções inevitavelmente evocam em nós as reportagens fotográficas e televisivas de guerras civis recentes. No Biafra, no Vietname e de novo agora no Ruanda ou na Argélia, onde os fundamentalistas actualmente praticam massacres e cortam o pescoço das vítimas. Estas práticas são tão frequentes em certas regiões do mundo que a opinião pública global, inicialmente chocada, acaba por fechar os olhos e não ligar.» (Julia Kristeva,Severed Heads. Capital Visions, trad. norte-americana, 2012, p. 26). 


Isto leva-nos a Kokito. Mohamed Hachud tem 28 anos. Kokito, nome de guerra. Vivia em Castillejos, uma localidade marroquina junto à fronteira com a praia de El Tarajal, uma povoação costeira do município de Ceuta.Kokito é casado com uma espanhola, Asia Ahmed Mohamed, que viajou até à Síria para se encontrar com o noivo num acampamento do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou EIIL), a milícia jihadista que, além de matar soldados e perpetrar execuções públicas nas praças de Al Atarib, adoptou um novo costume: exibir-se com as cabeças decapitadas das suas vítimas. Na cerimónia do casamento, Mohamed ofereceu à noiva um cinto com explosivos, símbolo macabro de união eterna. Antes do casamento, Mohamed comerciava em Castillejos, durante o dia, e às noites reunia com salafistas radicais. Pensava já juntar-se ao ISIL, passando horas a fio na Internet. Kokito foi recrutado por Mustafá Maya Amaya, um paralítico de 51 anos, que, dando ordens através do seu portátil, enviou já dezenas de jihadistas para o Mali, para a Síria e para a Líbia.

A fotografia mostra Kokito com cinco cabeças a seus pés, uma faca ainda ensanguentada e o indicador erguido, em sinal de aviso. Não foi captada ao acaso. Destina-se a enviar uma mensagem: para os seus companheiros de armas, para as suas vítimas mais próximas e para todos nós, que também somos suas potenciais vítimas. A linguagem de Kokito é mais eloquente e directa do que a das pinturas medievais que Julia Kristeva analisou num ensaio denso e muito erudito. «Entram nas aldeias e arrasam-nas. Não há contemplações para com os inimigos. As cabeças degoladas são uma mensagem para que as pessoas vejam o que lhes pode acontecer se não aderirem ou obedecerem», disse há dias ao insuspeito El País um especialista em terrorismo, que acrescentou: «na Síria os jihadistas estão a cometer atrocidades num grau superior ao que vimos em todas as outras guerras.» Os guerreiros da Jihad global dominam as novas tecnologias que, note-se, foram criadas no mundo ocidental, tido por corrupto e satânico. Sempre que conquista uma localidade, o ISIL distribui pen drives com cânticos jihadistas que mostram as operações da milícia sanguinária e condeam a democracia. Mohamed Hachud, Kokito, tem uma conta noTwitter, onde escreveu há tempos: «Um dia voltarei à minha terra para fazer a jihad.»

Existe uma barreira entre nós e a lâmina ensanguentada da navalha deKokito. Essa fronteira não é a linha ténue e prosas que separa Ceuta de Marrocos; ou Marrocos da Península Ibérica, onde o ISIL aspira a reconstruir o Califado. Essa barreira está situada um pouco mais longe, não muito – e chama-se Israel. Considerem isto maniqueísmo, simplificação demagógica, afirmem que o Hamas e o ISIL são realidades diversas, digam o que bem entenderem: a Caixa de Comentários encontra-se ali em baixo, registando com plena liberdade todas as opiniões, por mais insultuosas que sejam.

Nada disto, sublinhe-se claramente e sem quaisquer subterfúgios, significa aprovação acrítica por tudo quanto Israel está a fazer na Palestina contra o Hamas e, já agora, tudo o que o Hamas está a fazer na Palestina contra Israel. Em Israel, um Estado democrático, com eleições limpas e alternância política, opinião livre e imprensa crítica, há muitos que discordam do rumo que a guerra ao Hamas está a tomar. Aliás, por todo o mundo há judeus horrorizados com a violência que alastra, sobretudo quando ela atinge populações civis indefesas. Em Israel pode discordar-se e criticar-se. No mundo de Kokito, não. Ainda há pouco, em Junho deste ano, em Mosul, o bando de Kokito chacinou 13 clérigos muçulmanos sunitas que, apesar de apoiarem as pretensões do ISIL, advogavam alguma moderação nesta barbárie sem fim. 



A indiscutível primazia política, ética e moral de Israel sobre todos os povos em seu redor não lhe confere, por si só, legitimidade para que possa fazer o que quiser, nem lhe dá carta branca para ultrapassar os limites do intolerável. Daquilo que temos por intolerável justamente à luz dos princípios, dos valores e das regras que, repete-se, distinguem Israel de todos os Estados seus vizinhos e das organizações que estes financiam e patrocinam. É imprescindível o diálogo entre todas as partes, na convicção de que com Kokito e a sua navalha não há «diálogo» possível. Estão a ser enviados às dezenas, de Espanha, Marrocos e até Portugal; todos prometem regressar em breve, de navalha em punho. 

E para aqueles que, por cegueira político-ideológica, conspurcam as paredes de Lisboa com grafitos que gritam Free Palestine!, importaria parar por momentos e pensar um pouco. Em Portugal e em Israel, pode dizer-se o que se pensa. Com Kokito, quem se arrisca a pensar pela própria cabeça, perde-a. Perde-a decapitada, no sentido mais literal do termo. Conviria pensar nisso. Se possível, pela própria cabeça. Sem dogmas nem preconceitos.

Apátrida, de Isabel Moreira

por A-24, em 15.08.14
Via Malomil

Apátrida – O que é a pátria de cada um?, de Isabel Moreira, é um livro que prolonga e aprofunda temáticas obsessivas, quase fetichistas, e tópicos discursivos que caracterizam desde há muito a obra desta autora. Além dos sucessos de vendas Correspondência Comercial e A Excelência no Atendimento, até agora Isabel Moreira publicara três livros: o solitárioPessoas só, seguido do palavroso Quando uma palavra não basta(«candidato ao prémio Saramago») e depois 160 páginas de Ansiedade. Este é o quarto.


Segundo a nota biográfica constante desta sua nova obra, Isabel Alves Moreira nasceu há já 37 anos e, de momento, possui o grau académico «admitida a doutoramento» na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É deputada e advogada por conta própria, tendo várias publicações técnicas na área do Direito Constitucional. A sua restante obra ficcional caracteriza-se pela «indefinição de género», refere a nota biográfica. 

Ao utilizar o conceito de apatridia como tema/mote deste novo livro, Isabel Moreira convoca a um tempo a sua formação de jusconstitucionalista de projecção nacional e a sua trajectória íntima também de projecção nacional. Apátrida, na verdade, é indissociável de um périplo de vida marcado pelo sofrimento da distância em face da pátria de origem. A autora nasceu no país-irmão (o Brasil), a 2 de Abril de 1976 e, de acordo com a sua biografia divulgada na página oficial do Parlamento, concluiu com aproveitamento o 1º, o 2º e o 3º ciclos, o ensino secundário, a licenciatura em Direito e o mestrado em Direito Constitucional, na vertente de Direitos Fundamentais. A experiência do exílio, ademais motivado pela marca de brasa de um regime tirânico, governado por elites opressoras e moralmente corruptas, adensa a carga − ou descarga − autobiográfica da obra, convertendo este livro, texto indefinível, também em testemunho cívico e grito de rebeldia contra todas as formas de ditadura. 

Isabel de Lima Mayer Alves Moreira transporta consigo a convicçãohippy chic de que ser escritor é escrever palavras, mesmo que com erros de ortografia. Articulando a literatura da abjecção e a tentativa frustrada de se configurar como escritora maldita, a autora explora as margens, levando esse absoluto desbordamento muito para lá de todas as fronteiras, sobretudo as do bom senso. Numa escrita de/em vertigem, em pulsão dilacerada e, acima de tudo, dilacerante (para os leitores), o livro insere-se muito bem, todo ele, no perímetro da imbecilidade literária e aí permanece quietinho, indecifrável e ofegante. Através de muitas palavras, agrupadas de forma deliberadamente desconexa, o projecto perturbante e petulante de Isabel Moreira, raiando o suicidário, fá-la mergulhar, com seus demónios privados e de estimação (por ex., «o demónio do asfalto» − pág. 27), nos abismos de uma insanidade que se suspeita teatralizada. Situa-se na margem, ou na encenação desta. Em todo o caso, é sempre a partir do centro, e do seu conforto, que a autora se projecta para a margem. Apátrida apresenta-se, pois, como uma convenção ficcionada em estilo abdominal, que a Wook entrega ao domicílio dos leitores por uns razoáveis € 10,98, mais portes de envio.  

O ponto de chegada deste vórtice vocabular é a margem, a periferia da sanidade, mas, insiste-se, a sua raiz é o centro, um lugar cómodo, bem servido de transportes de toda a espécie. Isabel Moreira procura-se e acha-se no centro, por razões familiares involuntárias (origens na alta burguesia lisboeta; pai ministro de Salazar), mas também por uma demanda que, de forma radicalmente certeira, intui sempre a melhor via da sua própria intervenção (carreira académica convencional, ainda que abruptamente terminada em 2009; grupo parlamentar do Partido Socialista). Há um sagaz oportunismo na escolha destes territórios significantes e é essa subtilíssima estratégia retórica, mas também imagética, que permite à autora direccionar-se e posicionar-se para as margens – e ultrapassá-las para lá do limiar da inteligibilidade (pág. 35: «o gajo não sabe um cu do que se passa»). O centro constitui assim o ponto ou orifício («um buraco diferente» − pág. 25) de irradiação de uma marginalidade que, na representação da narradora/poeta/constitucionalista, se configura como impositiva e compulsória, até traquina. Mais ou menos como as crianças que dizem «xixi» e «cocó» e julgam ter feito uma grande malandrice, sufocando o riso por temor à palmadita iminente. Em troca, recebem apenas um calduço ligeiro e condescendente, enquanto os adultos em seu redor sorriem com bonomia, sussurrando entre si que o petiz até já vocaliza bem os dissílabos. Em Apátrida, a pauta é escabrosa, mas conformista e previsível. A autora, coitadita, esbraceja alguns substantivos e mesmo advérbios, na vã tentativa de ser «profunda» e escrever «literatura». Porém, não alcança mais do que o confessionalismo típico de um diário íntimo de uma adolescente de Telheiras. Julga-se provocatória, mas, no fundo, cumpre à risca as injunções do tipo de escrita que artificialmente cultiva. Crê-se rebelde, quando, na realidade, é obediente e betinha, fazendo a trote ou a galope tudo aquilo que dela se espera. Aliás, daqui não se espera muito. Apátrida é tão original e surpreendente como uma marquise de alumínio. 

O campo semântico desta hemorragia emocional encontra-se logo definido na página 33, onde o autoritarismo é metonimicamente denunciado através da transnomição onomatopaica «chiiiiiiiiiiiiiiiiiiu» (pág. 33, prorrogado no «cala as minhas esplanadas» da pág. 51, e no ritmado «clique, clique, clique» da pág. 47). Apátrida assume-se como obra de continuidade, mas também de ruptura e em ruptura, numa incessante busca homicida, presente no projecto assassino de «matar o bailado dos qualificativos» (pág. 11). Melhor dizendo, Apátrida foi construída, por um empreiteiro de Alverca, em permanente disforia e completa transgressão de todos os cânones. No jornal Público/Ípsilon, de 30.05.2014, Maria da Conceição Caleiro caracterizou Apátrida como «um belo e doloroso livro, de recepção quase física», conferindo-lhe justissimamente a pontuação astrológica de quatro estrelas e um cometa («um livro surpreendente e dos mais interessantes que se publicaram em Portugal nos últimos tempos»). Na verdade, o texto é alvo de uma recepção física, a que de imediato se segue a regurgitação, também física e biliar («vou vomitar» − pág. 40; «o meu umbigo vomitado numa noite aterradora» − pág. 32; «talvez nesse dia ausente tenha / entrado em sua casa e amparasse / o vómito» − pág. 40; «esmurra o vomitado nas casas de banho» − pág. 34). Notamos, a espaços, o eco de uma certa pecuária do desalento.

Trata-se, inquestionavelmente, de uma obra de abordagem dorida, mesmo penosa, um cálculo renal literário. Maria da Conceição Caleiro concluiu a sua recensão interrogando-se sobre o ponto-chave, a questão crucial: «É quase indecidível se o não-alinhamento à direita do texto é intencional ou descuido editorial».

O problema do não-alinhamento à direita do texto afigura-se, de facto, absolutamente nuclear para compreendermos a economia narrativa desteApátrida, quer enquanto livro-objecto, quer na dimensão de objecto-livro. A teoria do descuido editorialista encontra-se refém dos seus próprios postulados. Ao invés, a tese intencionalista tem apoio no percurso público da autora, que vem confirmando uma postura política, mas sobretudo ética, de rejeição estridente do alinhamento à direita, em confronto furioso, mas nem sempre coerente, com o fascismo das consciências e dos afectos, outrora presente em instituições sinistras como a PIDE ou o campo de concentração do Chão Bom do Tarrafal (reaberto por portaria ministerial de 17 de Junho de 1961). 

É também nesse contexto transgressor da «ordem» que deve ser situada a existência de erros de ortografia, que Maria da Conceição Caleiro atribui a uma deficiência de revisão editorial («talvez se justificasse uma revisão que eliminasse os erros de ortografia»). É certo que o livro diz «externo» em lugar de «esterno» e «gim» em vez de «gin», mas tudo isto, entre pecadilhos do mesmo calibre, decorre da intenção de subverter a norma, instaurando, em seu lugar, uma gramática alternativa e caótica, mais próxima da autenticidade demencial da vida, de uma existência atravessada em cambiantes de tal forma sofridos e pavorosos que não se coadunam com as mais elementares regras de escrita. 

As razões dos erros ortográficos de Apátrida, ao invés de serem atribuídas a um desleixo do pobre revisor tipográfico, como sustenta Maria da Conceição Caleiro, deverão buscar-se, porventura, quer nas deficiências da formação básica da autora, processada em retrógrados colégios de freiras, quer à sua proposta transgressiva de desconstrução de todas as convenções burguesas. Já a indesculpável ausência, também apontada por Maria da Conceição Caleiro, de «uma folhinha final antes da capa», encontra explicação plausível no actual contexto de crise económico-financeira e do PAEFF mas também, ousamos dizê-lo, ao propósito implícito de assinalar que esta é uma obra sempre inacabada, eterna e internamente aberta a todas as recepções que, como se referiu, são dominantemente físicas e, nesse âmbito, eminentemente corpóreas. A abertura e a recepção, físicas e corpóreas, são totais e vorazmente carnívoras, ávidas da plenitude dos sentidos, num experimentalismo sucessivo, às vezes múltiplo, e sempre infindo. Enquanto houver portugueses…

Se, como assinala a ex-ministra e pianista Gabriela Canavilhas na contracapa do livro, «Isabel Moreira não pára de surpreender», é também um facto que existe uma linha de continuidade temática e estilística, substantiva e formal, numa obra vulcânica, sulfurosa, que surge caracterizada por uma cadência torrencial de palavras, aluvião semântico de frases despojadas de sentido que obrigam o leitor a reencontrar-se, mesmo que a muito esforço e sem sucesso algum, com uma textura linguística impermeável à compreensão. Nesse sentido, Apátrida é também uma obra de resistência (talvez melhor, de re-sistência ou mesmo de re-sis-tência), que apela à desistência (de-sistência) do leitor, impedindo, de forma militante e raivosa, a descoberta de um qualquer sentido no arrazoado de caracteres que Isabel Moreira despejou às noites sobre um écran em branco.

O corpo e as suas excrescências regulares são centrais neste universo efervescente de delírio condoído e moído, patente logo na página 8, e na referência dela constante a um «estrume de dor». Estrume de dor constitui-se como metáfora e síntese perfeitas destas 104 páginas, impressas na Bloco Gráfico, Lda. (à Maia). 

Menos apreensíveis, porque remetendo para um âmbito mais íntimo ainda que exposto sem pudores nem tabus, se afiguram alusões de tipo confessional, tais como: «estou peganhenta» (pág. 12), «fumei três ganzas e bebi uma garrafa de vinho tinto» (pág. 38), «fui a um bar e comi coisas verdes» (pág. 39), o assaz enigmático «e tal e tal e o caralho» (pág. 15) ou o nauseabundo «dói-me o útero / e de repente tudo cheira mal,» (pág. 19), e ainda «o meu útero, desde então, gentilmente destruído» (pág. 67), a que se poderiam acrescentar, em momentos mais dinâmicos e alvoroçados, «aquele entra e sai ritmado, gramatical,» (pág. 19), o «tirando três dedos femininos de dentro dela» (pág. 41) ou, numa aproximação mais esclarecida e penetrante, «metendo o que pode no que vai dar a umas trompas laqueadas» (pág. 41). Retenha-se ainda o trecho central da página 77, em torno do qual gravitam diversos eixos narrativos:

«tantos gajos, mães, eu tão bêbeda,
meticulosa, um a um, odor a odor, nos
pescoços, nas virilhas, nos cus, onde
fosse, respirar gajo a gajo à procura de
um cheiro familiar
familiar
nós»


Estas imagens, muito tributárias de uma herança democrata-cristã que combina bem a Rerum Novarum e o Moleskine, desaguam, enfim, «num charco, um charco de esperma a tapar a primeira marca de ter sido mãe» (pág. 33). No fim, a pestilência letal: «morro a procurar o teu cheiro em duas ancas» (pág. 74). Isabel Moreira transfere a mecânica de autoflagelação presente noutros momentos da sua obra (recorde-se o arrepiante «esfregar urtigas no sexo», do blogue «Consolação», texto de 2010) para uma pulsão castigadora da lucidez do seu público. A comunidade, já vasta, dos seus leitores e admiradores não gostará de ver que, em apenas duas páginas (pp. 42-43), esta «menina-lobo que uiva culpas» começa por se alimentar frugalmente («comeu uma colherada de batatas» − pág. 42) para, logo a seguir, ser alvo de uma bárbara agressão («a menina leva um estalo na cara» − pág. 43), agravada pela obrigatoriedade de proceder a serviços de limpeza doméstica numa posição desconfortável («eu de mãos atadas nas costas a lamber o chão.» − pág. 53). Note-se, em todo o caso, que este trabalho linguístico foi objecto da justa e devida remuneração pecuniária («o amigo que me enfiava uma nota no sexo» − pág. 53). Encontramo-nos, portanto, fora do âmbito da «unilateralidade sem dolo» que a autora denuncia na página 68. 

No corpus literário que agora celebra com desnudada e espumante exuberância, a autora debate-se entre «a gaveta mortuária das palavras» (pág. 11) e a «desistência das palavras» (pág. 23), optando por um acto de não-desistência, pelo que este livro, livro-em-devir (work in progress), é também promessa, ou ameaça, de que outras obras virão, assim haja vida e saúde e nós cá todos a ver.

A este propósito do ver/não-ver, sublinhe-se que a visualidade é patente nos constantes (des)encontros desta obra com a recusa de qualquer pragmatismo, num escrutínio minucioso, quase espeleológico, da ontologia do Ser (o Sein, à Morais Soares, nº 14, c/v). É dessa inquirição cruciante que Isabel Moreira extrai um dos tópicos mais densos e recorrentes do seu trabalho: deus, um gajo sempre grafado com minúscula. Em metafísico diálogo com um Criador implacável e severíssimo, de matriz conservadora e veterotestamentária, Apátrida imprime à abordagem do divino um sentido agreste de permanente impugnação e desafio, nas franjas da apostasia. Os dispositivos são vários: árvores «tão altas que esmurram deus» (pág. 22), «o choro inútil de deus» (pág. 27), «deus a dar cabo de tudo» (pág. 32), «a cegueira de um tiro de deus amarelo ao máximo ao nosso encontro» (pág. 28, bisando a pág. 102 com «a cegueira de um tiro de deus amarelo máximo ao nosso encontro»). O mais conseguido de todos ocorre sob condições meteorológicas algo adversas, com «deus a mijar-se de medo pelas pernas abaixo naquele temporal» (pág. 98).

Neste cruzamento improvável, quase choque frontal, entre a inspiração tutelar de Rui Nunes e o ferrete freudiano do doutor Alves Moreira, a autora adere plenamente ao cáustico, mas na versão Primavera/Verão 2014. Na página 41, aparece inopinadamente um cigano com uns trocos no bolso, que pergunta à plateia: «− posso levar um bacano?». Podes. 

Quase no final do livro, após conhecermos uma «manicura perdida no cabeleireiro de algés» (pág. 73), somos surpreendidos por aquilo que parece ser um acidente rodoviário, mas, vendo bem, talvez não seja. Ou talvez seja. O ponto é de todo em todo irrelevante e secundário para a percepção do sentido global de uma obra de várias espessuras e tessituras em que nada do que lá está é o que parece, pois nada se conjuga com nada, excepto a presunção de Isabel Moreira de que escreveu literatura e a convicção da Temas e Debates de que um livro de alguém que vai muito aoPrós e Contras sempre venderá alguma coisinha.

A metamorfose corpórea e a distorção anatómica são expedientes que transportam o leitor para um não-lugar (o não-lugar da ausência), em que a percepção do que se lê é severamente punida pela hegemonia, quase tirânica, da escanzelada sofreguidão de Isabel Moreira em colocar palavras atrás de palavras, limitando a isso o seu gesto criativo, ou seja, rasurando a intervenção dos códigos inibidores da pura dejecção verbal. Enquanto houver um teclado e um portátil com bateria, teremos golfadas de angústia. É sob esta perspectiva, a perspectiva baconiana da distorção anatómica, que devem ser compreendidas, por exemplo, as referências a «um intestino prolongado pela garganta», constante da página 44, e a um «útero invertido», da página 48. Ou, mais gastronomicamente, um dos muitos trechos Maddie MacCann de Apátrida: «− Onde está o meu pai? Eis a pergunta que lhe come a pálpebras enquanto mastiga lombo de vaca e lágrimas de desaparecimento do pai.» (pág. 46).

A insalubridade vivencial é exaltada de modo mais lateral do que noutras obras de Isabel Moreira, estando, ainda assim, presente de forma visível, apesar de fugaz. O exercício físico, por exemplo, encontra-se limitado ao encaixe carnal de exclusivo fito orgásmico, erradicando-se por via político-administrativa práticas como o badminton e o ténis de mesa, até porque, como bem sabeis, «quem faz muito desporto demora a vir-se» (pág. 49). Ainda que catártica, esta focalização do trabalho dos corpos na ginástica sexuada («morde-lhe as mamas» − pág. 52) é susceptível de gerar equívocos e até algumas frustrações, nomeadamente quando um dos interlocutores não se mostra à altura das viscerais exigências («− és uma puta velha que não faz um homem vir-se.» − pág. 49). No limite, «− assim dói» (pág. 48), tanto mais que, numa evocação críptica de Bertolucci, se confessa: «eu também não gosto de manteiga» (pág. 23; itálico no original).

A violência, extrema e arrebatada, é resultado, mas também reverso, da ausência de pátria, dessa a-patridia existencial personificada na presença tão ansiada quanto intermitente do pai/pau, tal como apreendemos o sentido do diálogo da página 70:

«− quem és tu, pai?
− disseste pai?
− não, disse pau.»

Jurista-constitucionalista, Isabel Moreira aprofunda em Apátridatemas presentes na sua já apreciável obra, produzindo um livro que se lê num fôlego sobretudo quando está fechado.

Últimas e assertivas "Blasfémias"

por A-24, em 15.08.14
in Blasfémias


Hoje assisti a vários noticiários televisivos. É uma experiência fantástica: indignam-se pq Passos não recebeu os manifestantes que protestavam à sua porta. Eram seis alminhas mais o bombo. Mas a pivot estava muito indignada com a desfaçatez do pm. Depois da fase da maior manifestação de sempre estamos a caminhos da manifestação mais pequena de sempre mas no tom da cobertura nada muda.
Depois tivemos a faixa de Gaza. A saber o exército israelita ataca, dispara e mata. Do lado palestiniano não há exército é a terra ela mesma, a faixa, quem dispara os rockets.
Pelo meio apanhei uma peça delirante sobre o acidente aéreo em Teerão cujo segundo ouvi se deve ao embargo levantado ao Irão após o sequestro dos diplomatas norte-americanos. Teerão ainda não conseguiu que lhe vendam peças pq os americanos lhes levantaram sanções nesse tempo. Enfim para lá da má fé da explicação o avião em causa era um Antonov
Por fim cheguei ao Rui Veloso. Os músicos em Portugal agora não deixam de cantar porque lhes apetece, pq não têm público ou mais frequentemente pq muitas autarquias estão sem dinheiro e não os podem contratar com a frequência de outrora. Dizem que se retiram pq estão desgostosos com o país. Mas Rui Veloso disse mais. Disse o que Mafoma não diz do toucinho sobre os concursos televisivos que estão cheios de pessoas que cantam e que naturalmente preenchem o tempo outrora reservado aos artistas. Dessa parte as televisões não falaram. Não parecia bem.

Porque é que os artistas não dizem simplesmente que se retiram pq não lhes pagam o que querem, pq não têm público ou pq lhes apetece ir de férias? Segundo se vê no portal dos contratos públicos em 2009 os contribuintes portugueses pagaram 290 mil euros a Rui Veloso. Esse valor tem vindo a descer e em 2013 aproximou-se dos 40 mil. Percebo perfeitamente que Rui Veloso esteja zangado. Como qualquer empresário estará quando vê diminuir a sua receita deste modo. Mas deixe de mandar vir com a democracia que por sinal até o tem tratado muito bem.