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A-24

Sobre a queda do muro de Berlim

por A-24, em 23.06.11
Público

Não sei quem tu és e tenho falado contigo. Mas não fales com a minha mulher sobre as coisas que te tenho dito sobre este país, porque ela é do partido.” Ainda hoje, passados mais de 20 anos, a frase causa estranheza ao encenador de teatro João Lourenço, que sorri e confessa: “Nunca mais soube dele, esta conversa tem-me acompanhado todos estes anos e só esta frase dava uma peça.” Trata-se de um cenógrafo com quem João Lourenço trabalhou e conviveu no Berliner Ensemble, companhia de teatro fundada em 1951 por Bertolt Brecht, em Berlim-Leste. As conversas entre os dois versavam a situação e o sistema da República Democrática Alemã (RDA), “sobre a liberdade, a educação, o que era a verdadeira esquerda”. Um dia, dando prova de confiança, o cenógrafo convidou-o para jantar com a sua família. Foi no carro, quando se dirigiam para casa do cenógrafo, que este disparou a frase que até hoje marca o encenador.

Daniel Rocha

O jornalista Martins Morim segurando dois Trabant em miniatura
João Lourenço viveu e estudou em Berlim-Leste cerca de um ano, entre o final de 1979 e 1980, mas muitos outros portugueses tiveram o privilégio e a experiência de viver num país dividido em dois por um muro, que simbolicamente separava dois regimes políticos e dois sistemas de organização social. Tal como ele, também o musicólogo Mário Vieira de Carvalho, o filósofo João Maria de Freitas Branco, o jornalista Martins Morim, a professora Ana Portela e o treinador de futebol Artur Jorge estudaram ou trabalharam na metade comunista da Alemanha: os quatro primeiros em Berlim-Leste e os dois últimos em Leipzig.

Um anseio de liberdade
O peso do regime ditatorial comunista e a ausência de liberdade, que a frase citada por João Lourenço ainda hoje ecoa, é algo que marcou estes seis antigos residentes na ex-RDA. E que lhes provoca uma dualidade de sentimentos, já que a lembrança da Alemanha de Leste que conheceram também revela admiração pelo que de positivo consideram que aquele sistema possuía.

“Tinha de se pôr fim à RDA e eu tornei-me muito rapidamente um opositor do regime, sendo um admirador do sistema, que, pela primeira vez, me permitiu uma vivência na ausência das desigualdades sociais”, explica João Maria de Freitas Branco, filósofo e investigador universitário que viveu em Berlim com a mulher e dois filhos entre 1984 e 1991 – “assisti mesmo ao fim” -, onde se doutorou na Universidade de Humboldt, tendo trabalhado ainda como correspondente do Jornal de Letras.


Quando o fim chegou e o Muro se desfez como se fosse de areia, a maioria dos entrevistados pela Pública viram-no à distância. Artur Jorge foi apanhado desprevenido. Mas reconhece que “a RDA nasceu de uma maneira estranha”, pelo que “muitas pessoas daquele país não ficaram tristes com o fim”.

Também João Lourenço não escamoteia que se percebia “historicamente a necessidade do Muro como nascera”, mas não esconde que, “no início dos anos 80, via-se que havia muita gente descontente com o país, via-se nas pessoas um anseio de liberdade”. E explica: “Depois de algum tempo na RDA, percebia-se que havia outra esquerda, que havia pessoas de esquerda que lutavam e eram contra o sistema.”

Martins Morim frisa que era visível entre os alemães a contestação, sobretudo entre “a juventude mobilizada pela Igreja” e “na geração do bem-estar que começa a dizer “não” – a geração que tem hoje 40 anos”.

Ana Portela apercebeu-se de que a situação “era absolutamente insustentável”. Segundo ela, o movimento do Solidariedade na Polónia causa um impacto grande nos meios intelectuais, embora “oficialmente não existisse”. E lembra: “Não sabíamos como ia terminar. Discutimos muito, com portugueses e alemães. Sobretudo os intelectuais eram muito críticos. Mas não havia sinais de que ia abrir.”

Dois mundos
O clima de ditadura e de opressão estava simbolizado no Muro de Berlim, começado a construir em 13 de Agosto de 1961 para materializar, na então antiga capital da Alemanha, a divisão do país feita entre os vencedores da II Guerra Mundial.

Freitas Branco conta que “tinha uma recomendação de fronteira”, o que lhe dava “um estatuto diplomático, que era importantíssimo numa cidade como Berlim”, pois permitia circular entre o lado oriental e o lado ocidental, sem que o carro fosse sequer revistado, já que “tinha matrícula diplomática”. “Terei sido dos portugueses que mais passaram o Checkpoint Charlie”, diz em tom de graça.


Uma forma de poder circular em liberdade que aprendeu, confessa, com Mário Vieira de Carvalho, que conhecia de Lisboa e com quem se cruzou em Berlim no mesmo edifício e na mesma faculdade durante alguns meses. O musicólogo e correspondente do Diário de Lisboa beneficiou deste estatuto para circular nos dois lados do Muro e usou-o “praticamente todos os dias”, sobretudo para ir à biblioteca no lado ocidental e à ópera. A liberdade que o estatuto de leitora na Universidade de Leipzig dava é ainda salientado por Ana Portela, que até decidiu ir a Berlim-Leste comprar um carro.

Era precisamente a noção do que era andar em liberdade e poder passar o Muro que dava a Freitas Branco a consciência exacta da situação vivida pela generalidade da população de Berlim: a separação absoluta. “A cortina de ferro existia, de facto. Para quem se deslocava a pé, o ponto de passagem de fronteira era a estação de comboios central, a Friedrichstrasse”, diz este professor da Faculdade de Letras de Lisboa. “Numa mesma estação de metro e comboios, havia dois mundos completamente distintos, o mundo do socialismo e o mundo do capitalismo. As pessoas passavam a um metro umas das outras sem se poderem ver nem falar. A divisória era uma cortina de ferro que cobria parte da estação. A cortina de ferro de que Churchill falava estava ali, materializada. É algo que só vivido.”

Mas não era só no muro que rasgava a cidade que o peso da ditadura se sentia. João Lourenço – “Eu não fui pelo PCP, nunca fui do PCP” -, que esteve em Berlim a estagiar um ano, a convite do director da Casa de Brecht, Werner Hesht, e do director do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth, afirma: “Senti uma segurança como nunca senti em cidade nenhuma do mundo. Os soldados nas esquinas, nas casas de vidro, davam segurança. Havia uma segurança dada pelo regime.” Mas não esconde que essa segurança tinha um lado assustador: “Um dia acordei com o barulho e com o chão a tremer. Fui à janela, eram os tanques com mísseis a passar. Durante uns segundos pensei: é a guerra. Eram os preparativos para o desfile do 1.º de Maio.”

O mundo à parte do teatro
Sobre o mundo em que se movia, João Lourenço garante que “não sentia o peso da censura”. “Os teatros tinham um director que era actor ou encenador, e depois tinham um membro do partido com formação em ciências teatrais”, explica.


Da mesma opinião é Mário Vieira de Carvalho, que viveu em Berlim entre Setembro de 1979 e Dezembro de 1984, doutorando-se com uma bolsa da Gulbenkian em Musicologia, na Universidade de Humboldt.

A tese foi sobre o São Carlos entre os séculos XVIII e XX, e a investigação teve como laboratório vivo as duas óperas na cidade dividida de Berlim, uma de cada lado.

Em Dresden assistiu a uma encenação da ópera de Beethoven, Fidélio, em que “o cenário era um muro e toda a gente percebia que era uma alusão ao Muro e esteve em cartaz nos anos 80″. O ex-secretário de Estado da Cultura afirma que o peso não era, pelo menos neste domínio da cultura, o da ditadura feroz. Havia, sim, o peso da burocracia que implodia o sistema.

“Todas as pessoas com quem contactei, fossem do partido ou não, tinham uma posição extremamente crítica em relação à burocracia e à incapacidade do sistema”, afirma Mário Vieira de Carvalho, explicando que “a falta de liberdade de expressão não deixava reflectir a realidade e o criticismo não passava”. Pormenoriza: “Nas reuniões debatiam e criticavam, mas não passava para cima. A corrente não era de baixo para cima, era de cima para baixo.” Uma atitude de comando que era “a expressão de uma falsa consciência sobre a realidade” e também, segundo Vieira de Carvalho, “profundamente antimarxista”.

Boas recordações
Os seis portugueses que viveram na ex-RDA são unânimes em elogiar os benefícios proporcionados pelo socialismo real. É desse bem-estar e dessa qualidade de vida que sentem nostalgia.

“Vivi lá, gostei de viver e vivi bem. Às vezes digo na brincadeira “os tempos em que fui rico”, no sentido de viver sem preocupações materiais”, diz o jornalista Martins Morim, o ex-residente na RDA ouvido pela Pública que mais anos aí permaneceu, de Outubro de 1975 a Outubro de 1984. A estudar administração de empresas e a trabalhar na rádio universitária em Lisboa, escolheu Berlim pela utilidade que a língua alemã poderia ter depois e foi trabalhar para a secção portuguesa da Rádio Berlim Internacional, tendo sido correspondente de O Diário. Em Berlim-Leste, estuda desporto, está ligado à organização de um festival internacional de música de intervenção. Toca numa banda, o que lhe permite viajar muito e conhecer Renata, com quem casou e com quem regressou a Lisboa, onde ainda hoje vivem.


“Apanhei a Alemanha na fase do welfare state [Estado-providência] nos países da social-democracia e o bem-estar da social-democracia fazia com que, do outro lado, se vivesse melhor”, explica Martins Morim. “Não renego nada do que escrevi e vivi, tinha 24 anos quando fui para lá, havia em mim um lado de sonho e aventura.”

Explicando o que era o bem-estar proporcionado pelo sistema, Martins Morim relata: “Não pagávamos renda quase, era um preço simbólico. A nossa filha fez a escola, ninguém comprava livros, ensinava-se a respeitar os livros e no fim entregavam-se de novo à escola. A escola era gratuita, os transportes eram baratos, ir ao teatro era barato. Não se ganhava muito, mas ir à ópera era acessível.” Lembra: “As pessoas viviam bem, tinham dinheiro, tinham é que esperar por comprar carro.” Salienta as peculiaridades do sistema socialista alemão de Leste em relação ao resto dos países socialistas: “Quando vim para Portugal, vivíamos numa zona de Berlim que tinha lojas privadas e no campo havia direito de propriedade. Por outro lado, a situação religiosa era respeitada.”

Este bem-estar que Martins Morim salienta em relação a Berlim-Leste é confirmado pelos portugueses que viveram em Leipzig. É o caso do treinador de futebol Artur Jorge, que aí esteve em 1978 e 1979, para estudar desporto. Embora Artur Jorge não fosse do PCP, Álvaro Cunhal fez diligências pessoais junto do presidente Honecker, conta Domingos Lopes, irmão de Martins Morim, que assumiu, no departamento internacional do PCP, a responsabilidade pela ligação do partido com os portugueses a estudar e a viver na RDA.

“Não fazia ideia de que Cunhal tinha interferido, eu não tinha ligação com o PCP”, diz Artur Jorge. “Sei que havia hipótese de ir para a Jugoslávia, mas fui para Leipzig por conselho de amigos, até porque lá era a melhor escola.” Experiência que proporcionou um relançamento da sua actividade como desportista profissional, pois “tinha acabado de jogar, tinha partido uma perna, estava na direcção-geral de desporto”.

O treinador destaca “o país tranquilo e sem muito barulho”. E afirma que “foi uma experiência positiva: o curso, as pessoas, os professores”. Conclui: “Foi uma coisa que passou rápido, a lembrança que tenho é de situações agradáveis. Havia muita gente do mundo inteiro a estudar em Leipzig. Era uma terra com as melhores universidades de todo o mundo.”

O problema das fotocópias
Positivo é também o balanço que a professora Ana Portela faz da sua experiência como primeira leitora de português na Universidade de Leipzig, entre 1976 e 1981. “Tinha uma filha no pré-escolar, tinha-me divorciado do Luís Sá [dirigente do PCP, falecido em 1999] e vi um anúncio na Faculdade de Letras a pedir um leitor de Português”, conta. Fez um contrato com direito a habitação e a educar a filha e com um ordenado em divisas estrangeiras. “Só depois percebi que eles filtravam os candidatos através do PCP. Eu não era [do partido], mas funcionava junto a pessoas que eram.”

Com uma visão crítica do regime da RDA, Ana Portela salienta que “Leipzig era a zona mais poluída da Europa”, mas, por outro lado, “era um centro estudantil mais importante que Berlim, tinham estudantes de todo o mundo enviados pelos partidos e pelas organizações comunistas”. Aí, voltou a casar com um estudante chileno e teve duas gémeas em Leipzig, o que lhe deu direito a um ano de licença com ordenado e assistência médica.

Mas o que esta professora destaca como melhor é o sistema de ensino: “A minha filha tinha natação duas vezes por semana. Um dia disse-lhe para não ir à escola e a professora veio a casa. Ela tinha muitas actividades. Tinha uma escola separada de música, fez quatro anos de piano. Além das aulas, os estudantes mais velhos vinham a casa ensinar os mais novos a praticar com os instrumentos.”

Falando com a experiência de uma vida dedicada ao ensino em Portugal, Ana Portela diz: “Conheço o ensino de cá e vi o de lá, não tem comparação. As minhas filhas ainda não tinham dois anos e já se vestiam e comiam sozinhas. Quando viemos estranharam, porque se deitavam cedo e os colegas viam todos televisão à noite.” Nota, ainda, que “havia uma educação ecológica e ambiental; os miúdos levavam as garrafas e os jornais para reciclar, o papel era reciclado”.

“A cultura era muito acessível”, diz Ana Portela, o que é igualmente defendido por João Lourenço. O encenador sublinha, contudo, as condições em que esteve em Berlim-Leste. “Eu era um convidado em condições óptimas, tinha um panorama cultural muito rico”, confessa.

“Os livros eram baratos, comprei muitos”, conta Mário Vieira de Carvalho. “Onde começavam os problemas? Onde era absurdo. Por exemplo, a dificuldade em tirar fotocópias. Na Biblioteca de Berlim oriental, que tinha uma colecção de música excelente, as fotocópias eram limitadas, fazia-se requisição e demorava dias. Em Berlim ocidental, as próprias pessoas tiravam as fotocópias no momento.”

Dinheiro a mais
Mário Vieira de Carvalho nega que houvesse falta de bens e atesta a qualidade dos supermercados: “Nunca senti falta de produtos nem dificuldades de abastecimento. Não era assim nos outros países de Leste. Na Alemanha de Leste, havia os produtos, mas não havia marcas, eram uma espécie de produtos genéricos.” Relata um episódio revelador dos problemas de funcionamento do mercado: “Uma vez cheguei a uma estação de metro e vi um vendedor de morangos. Quis comprar meio quilo, não consegui, só vendia uma caixa inteira. Os produtos que não estavam normalmente disponíveis só se vendiam em grandes quantidades e desapareciam rapidamente. O mesmo acontecia com discos e livros, tínhamos de estar atentos para não esgotar.”

Como o “sistema subsidiava todos os produtos de primeira necessidade” e os preços eram simbólicos – quando os bens não eram mesmo grátis -, “as pessoas acumulavam dinheiro que não podiam gastar, porque depois havia lista de espera para o carro, as férias eram só em países socialistas”, lembra o musicólogo. “Havia sede de consumo e excesso de meios de pagamento, porque não se pagava o que se consumia.”

Também João de Freitas Branco defende que o problema em Berlim era “a variedade da oferta” e reconhece que, mesmo assim, “a situação em Berlim não era a de toda a RDA, havia cidades em que era pior”. Mas defende o sistema então vigente. “Passados estes anos todos, continuo a ter a opinião que sempre tive, e que é muito mais positiva que a opinião dominante sobre o socialismo real”, afirma. “Ali já tinha sido dado um passo civilizacional absolutamente essencial e que se baseava no banimento das desigualdades materiais mais aberrantes, tendo desaparecido a pobreza, essa pobreza que eu conhecia aqui de Portugal.”

Este professor da Faculdade de Letras lembra que “quando se fala de direitos humanos verifica-se que as pessoas reduzem a uma única coisa a liberdade de expressão”, e questiona: “Mas o bife, o concerto, o livro, a escola – não é isto, também, direitos humanos?” Marcando a diferença dos dois sistemas, socialista e capitalista, sublinha: “Quando saí de Portugal havia milhares de crianças sem acesso à escola. Na RDA não havia um único cidadão que não tivesse acesso à escola.” A escolaridade era gratuita e universal e a redistribuição de riqueza era outra, e isso era possível “porque houve uma mudança do regime de propriedade”, o que, argumenta, “horroriza qualquer pessoa que considera o capitalismo o melhor dos mundos”.

Mas, ao elogiar o sistema, Freitas Branco não deixa de frisar o outro lado, o do regime. “Infelizmente, este passo civilizacional em frente coabitava com um outro, que era um passo civilizacional atrás: o Estado policial e a ausência efectiva da liberdade de expressão.” Este investigador, que estava em Berlim faz hoje precisamente 20 anos, conclui: “Na minha opinião, a RDA tinha de acabar, porque um regime onde não há liberdade de expressão tem de acabar. Mas alimentei a esperança de que essa mudança não representasse a anulação do passo civilizacional.”

Nos campos esquecidos

por A-24, em 23.06.11
Depois de Lampedusa, em Itália, o arquipélago de Malta é o destino preferido de centenas de africanos que fogem dos combates na Líbia. Mas aqui, a Europa parece um hangar insalubre onde eles são armazenados, na esperança de obterem um improvável asilo político. Reportagem.

Enclausurados, à chegada, em centro fechados, os exilados que são identificados como "vulneráveis" foram repartidos pelos centros de acolhimento abertos. Um deles está reservado para as famílias. Chama-se Hal Far e fica no terminal de uma linha de autocarros, ao lado de lojas e de casas normais, à beira das pistas e um aeroporto abandonado.É lá que vivem cerca de trinta famílias, à espera de proteção internacional. Quase sempre húmido, o ar, ali, é sufocante no verão e glaciar no inverno. Vindo de Tripoli com a mulher e o filho de dezasseis meses, Dawit, um etíope de 35 anos, faz parte dos moradores de infortúnio do hangar. "Agradeço às autoridades maltesas que salvaram o meu barco do naufrágio e que nos acolhem", diz ele, em jeito de preâmbulo. "Mas é preciso dizer que este lugar é terrível, verdadeiramente terrível. Somos somalis, etíopes, eritreus e alguns ganeses e argelinos. Aqui só há famílias com crianças. O mais novo tem um mês e meio. E também há uma mulher que deu à luz à chegada. Tiraram-na do centro de detenção e quando o bebé nasceu, voltaram a trazê-los para cá.""Estamos todos esgotados", continua ele, "E onde é que nos metem? Neste hangar, onde tudo é sujo e perigoso. Temos falta de luz, há apenas dois néones para isto tudo e nada que nos ilumine nas tendas. O pavimento está oleoso, a drenagem de água está avariada, os ratos correm por todo o lado. Tudo isto é tóxico. Os bebés metem os dedos na boca, nos olhos, têm infeções, estão doentes. Têm que ir constantemente ao hospital. Vimos um médico italiano chorar ao olhar para eles. Da última vez que tive de ir à farmácia comprar medicamentos para o meu filho, paguei 39 euros. Isto não pode continuar. O verão está a chegar. Com o calor, isto vai ser insuportável. Estamos reconhecidos, mas este lugar não foi feito para seres humanos."

Livro "3096 dias" - Sobre Natacha Kampush

por A-24, em 23.06.11
A austríaca mantida em cativeiro durante oito anos era obrigada a rapar o cabelo e a trabalhar seminua como escrava doméstica, era agredida pelo raptor 200 vezes por semana, presa à cama com algemas plásticas sempre que ele queria partilhar a cama com ela e era forçada a tratá-lo por "Mestre" ou "Meu senhor". Estas são algumas das revelações feitas por Natascha Kampusch, hoje com 22 anos, na sua primeira autobiografia - o livro "3096 dias" vai ser lançado na quarta-feira, mas esta segunda alguns excertos começaram a ser publicados no "The Daily Mail"
Kampusch  - que tinha 10 anos quando foi sequestrada por Wolfgang Priklopil - confessa pela primeira vez que tentou várias vezes o suicídio por ser mantida presa numa cela "hermeticamente fechada": não tinha janelas, apenas uma cama, uma sanita e um lavatório. Nessa mesma cela chegou, depois de alguns meses presa, a pedir ao sequestrador que a abraçasse. "Eu era apenas uma criança e precisava do consolo do toque humano." Na primeira noite do sequestro, recorda-se mesmo de lhe ter pedido para a deitar na cama e contar-lhe uma história para adormecer. "Tudo para conservar a noção de normalidade", conta a austríaca. Por outro lado, Kampusch lembra que Priklopil dizia que ela lhe pertencia e não se chamava mais Natascha, ao mesmo tempo que a obrigava a tratá-lo por "Mestre" ou "Meu Senhor". Da mesma forma que a ameaçava: " Se não te comportare, vou ter de te amarrar."O sequestrador terá feito pressão para que Natascha Kampusch acreditasse na sua história de sequestro: "Ele disse-me que os meus pais se recusaram a pagar o resgate. Dizia-me: os teus pais não te amam, não te querem de volta, estão contentes por se verem livres de ti."Natascha Kampusch conseguiu escapar em Agosto de 2006, quando tinha 18 anos, e hoje vive em Viena de Áustria. Priklopil, engenheiro de 44 anos, suicidou-se mal percebeu que a austríaca teria fugido. Não foi o único caso do género a chocar a Áustria. Em 2008 foi descoberta a história de Josef Fritzl, que manteve a filha Elisabeth, de quem teve sete filhos, em cativeiro durante 24 anos.

Sobre a queda do muro de Berlim

por A-24, em 23.06.11

Não sei quem tu és e tenho falado contigo. Mas não fales com a minha mulher sobre as coisas que te tenho dito sobre este país, porque ela é do partido." Ainda hoje, passados mais de 20 anos, a frase causa estranheza ao encenador de teatro João Lourenço, que sorri e confessa: "Nunca mais soube dele, esta conversa tem-me acompanhado todos estes anos e só esta frase dava uma peça." Trata-se de um cenógrafo com quem João Lourenço trabalhou e conviveu no Berliner Ensemble, companhia de teatro fundada em 1951 por Bertolt Brecht, em Berlim-Leste. As conversas entre os dois versavam a situação e o sistema da República Democrática Alemã (RDA), "sobre a liberdade, a educação, o que era a verdadeira esquerda". Um dia, dando prova de confiança, o cenógrafo convidou-o para jantar com a sua família. Foi no carro, quando se dirigiam para casa do cenógrafo, que este disparou a frase que até hoje marca o encenador.

Daniel Rocha

O jornalista Martins Morim segurando dois Trabant em miniatura
João Lourenço viveu e estudou em Berlim-Leste cerca de um ano, entre o final de 1979 e 1980, mas muitos outros portugueses tiveram o privilégio e a experiência de viver num país dividido em dois por um muro, que simbolicamente separava dois regimes políticos e dois sistemas de organização social. Tal como ele, também o musicólogo Mário Vieira de Carvalho, o filósofo João Maria de Freitas Branco, o jornalista Martins Morim, a professora Ana Portela e o treinador de futebol Artur Jorge estudaram ou trabalharam na metade comunista da Alemanha: os quatro primeiros em Berlim-Leste e os dois últimos em Leipzig.

Um anseio de liberdade
O peso do regime ditatorial comunista e a ausência de liberdade, que a frase citada por João Lourenço ainda hoje ecoa, é algo que marcou estes seis antigos residentes na ex-RDA. E que lhes provoca uma dualidade de sentimentos, já que a lembrança da Alemanha de Leste que conheceram também revela admiração pelo que de positivo consideram que aquele sistema possuía.
"Tinha de se pôr fim à RDA e eu tornei-me muito rapidamente um opositor do regime, sendo um admirador do sistema, que, pela primeira vez, me permitiu uma vivência na ausência das desigualdades sociais", explica João Maria de Freitas Branco, filósofo e investigador universitário que viveu em Berlim com a mulher e dois filhos entre 1984 e 1991 - "assisti mesmo ao fim" -, onde se doutorou na Universidade de Humboldt, tendo trabalhado ainda como correspondente do Jornal de Letras.
Quando o fim chegou e o Muro se desfez como se fosse de areia, a maioria dos entrevistados pela Pública viram-no à distância. Artur Jorge foi apanhado desprevenido. Mas reconhece que "a RDA nasceu de uma maneira estranha", pelo que "muitas pessoas daquele país não ficaram tristes com o fim".
Também João Lourenço não escamoteia que se percebia "historicamente a necessidade do Muro como nascera", mas não esconde que, "no início dos anos 80, via-se que havia muita gente descontente com o país, via-se nas pessoas um anseio de liberdade". E explica: "Depois de algum tempo na RDA, percebia-se que havia outra esquerda, que havia pessoas de esquerda que lutavam e eram contra o sistema."
Martins Morim frisa que era visível entre os alemães a contestação, sobretudo entre "a juventude mobilizada pela Igreja" e "na geração do bem-estar que começa a dizer "não" - a geração que tem hoje 40 anos".
Ana Portela apercebeu-se de que a situação "era absolutamente insustentável". Segundo ela, o movimento do Solidariedade na Polónia causa um impacto grande nos meios intelectuais, embora "oficialmente não existisse". E lembra: "Não sabíamos como ia terminar. Discutimos muito, com portugueses e alemães. Sobretudo os intelectuais eram muito críticos. Mas não havia sinais de que ia abrir."
Dois mundos
O clima de ditadura e de opressão estava simbolizado no Muro de Berlim, começado a construir em 13 de Agosto de 1961 para materializar, na então antiga capital da Alemanha, a divisão do país feita entre os vencedores da II Guerra Mundial.
Freitas Branco conta que "tinha uma recomendação de fronteira", o que lhe dava "um estatuto diplomático, que era importantíssimo numa cidade como Berlim", pois permitia circular entre o lado oriental e o lado ocidental, sem que o carro fosse sequer revistado, já que "tinha matrícula diplomática". "Terei sido dos portugueses que mais passaram o Checkpoint Charlie", diz em tom de graça.
Uma forma de poder circular em liberdade que aprendeu, confessa, com Mário Vieira de Carvalho, que conhecia de Lisboa e com quem se cruzou em Berlim no mesmo edifício e na mesma faculdade durante alguns meses. O musicólogo e correspondente do Diário de Lisboa beneficiou deste estatuto para circular nos dois lados do Muro e usou-o "praticamente todos os dias", sobretudo para ir à biblioteca no lado ocidental e à ópera. A liberdade que o estatuto de leitora na Universidade de Leipzig dava é ainda salientado por Ana Portela, que até decidiu ir a Berlim-Leste comprar um carro.
Era precisamente a noção do que era andar em liberdade e poder passar o Muro que dava a Freitas Branco a consciência exacta da situação vivida pela generalidade da população de Berlim: a separação absoluta. "A cortina de ferro existia, de facto. Para quem se deslocava a pé, o ponto de passagem de fronteira era a estação de comboios central, a Friedrichstrasse", diz este professor da Faculdade de Letras de Lisboa. "Numa mesma estação de metro e comboios, havia dois mundos completamente distintos, o mundo do socialismo e o mundo do capitalismo. As pessoas passavam a um metro umas das outras sem se poderem ver nem falar. A divisória era uma cortina de ferro que cobria parte da estação. A cortina de ferro de que Churchill falava estava ali, materializada. É algo que só vivido."
Mas não era só no muro que rasgava a cidade que o peso da ditadura se sentia. João Lourenço - "Eu não fui pelo PCP, nunca fui do PCP" -, que esteve em Berlim a estagiar um ano, a convite do director da Casa de Brecht, Werner Hesht, e do director do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth, afirma: "Senti uma segurança como nunca senti em cidade nenhuma do mundo. Os soldados nas esquinas, nas casas de vidro, davam segurança. Havia uma segurança dada pelo regime." Mas não esconde que essa segurança tinha um lado assustador: "Um dia acordei com o barulho e com o chão a tremer. Fui à janela, eram os tanques com mísseis a passar. Durante uns segundos pensei: é a guerra. Eram os preparativos para o desfile do 1.º de Maio."

O mundo à parte do teatro
Sobre o mundo em que se movia, João Lourenço garante que "não sentia o peso da censura". "Os teatros tinham um director que era actor ou encenador, e depois tinham um membro do partido com formação em ciências teatrais", explica.
Da mesma opinião é Mário Vieira de Carvalho, que viveu em Berlim entre Setembro de 1979 e Dezembro de 1984, doutorando-se com uma bolsa da Gulbenkian em Musicologia, na Universidade de Humboldt.
A tese foi sobre o São Carlos entre os séculos XVIII e XX, e a investigação teve como laboratório vivo as duas óperas na cidade dividida de Berlim, uma de cada lado.
Em Dresden assistiu a uma encenação da ópera de Beethoven, Fidélio, em que "o cenário era um muro e toda a gente percebia que era uma alusão ao Muro e esteve em cartaz nos anos 80". O ex-secretário de Estado da Cultura afirma que o peso não era, pelo menos neste domínio da cultura, o da ditadura feroz. Havia, sim, o peso da burocracia que implodia o sistema.
"Todas as pessoas com quem contactei, fossem do partido ou não, tinham uma posição extremamente crítica em relação à burocracia e à incapacidade do sistema", afirma Mário Vieira de Carvalho, explicando que "a falta de liberdade de expressão não deixava reflectir a realidade e o criticismo não passava". Pormenoriza: "Nas reuniões debatiam e criticavam, mas não passava para cima. A corrente não era de baixo para cima, era de cima para baixo." Uma atitude de comando que era "a expressão de uma falsa consciência sobre a realidade" e também, segundo Vieira de Carvalho, "profundamente antimarxista".
Boas recordações
Os seis portugueses que viveram na ex-RDA são unânimes em elogiar os benefícios proporcionados pelo socialismo real. É desse bem-estar e dessa qualidade de vida que sentem nostalgia.
"Vivi lá, gostei de viver e vivi bem. Às vezes digo na brincadeira "os tempos em que fui rico", no sentido de viver sem preocupações materiais", diz o jornalista Martins Morim, o ex-residente na RDA ouvido pela Pública que mais anos aí permaneceu, de Outubro de 1975 a Outubro de 1984. A estudar administração de empresas e a trabalhar na rádio universitária em Lisboa, escolheu Berlim pela utilidade que a língua alemã poderia ter depois e foi trabalhar para a secção portuguesa da Rádio Berlim Internacional, tendo sido correspondente de O Diário. Em Berlim-Leste, estuda desporto, está ligado à organização de um festival internacional de música de intervenção. Toca numa banda, o que lhe permite viajar muito e conhecer Renata, com quem casou e com quem regressou a Lisboa, onde ainda hoje vivem.
"Apanhei a Alemanha na fase do welfare state [Estado-providência] nos países da social-democracia e o bem-estar da social-democracia fazia com que, do outro lado, se vivesse melhor", explica Martins Morim. "Não renego nada do que escrevi e vivi, tinha 24 anos quando fui para lá, havia em mim um lado de sonho e aventura."
Explicando o que era o bem-estar proporcionado pelo sistema, Martins Morim relata: "Não pagávamos renda quase, era um preço simbólico. A nossa filha fez a escola, ninguém comprava livros, ensinava-se a respeitar os livros e no fim entregavam-se de novo à escola. A escola era gratuita, os transportes eram baratos, ir ao teatro era barato. Não se ganhava muito, mas ir à ópera era acessível." Lembra: "As pessoas viviam bem, tinham dinheiro, tinham é que esperar por comprar carro." Salienta as peculiaridades do sistema socialista alemão de Leste em relação ao resto dos países socialistas: "Quando vim para Portugal, vivíamos numa zona de Berlim que tinha lojas privadas e no campo havia direito de propriedade. Por outro lado, a situação religiosa era respeitada."

Este bem-estar que Martins Morim salienta em relação a Berlim-Leste é confirmado pelos portugueses que viveram em Leipzig. É o caso do treinador de futebol Artur Jorge, que aí esteve em 1978 e 1979, para estudar desporto. Embora Artur Jorge não fosse do PCP, Álvaro Cunhal fez diligências pessoais junto do presidente Honecker, conta Domingos Lopes, irmão de Martins Morim, que assumiu, no departamento internacional do PCP, a responsabilidade pela ligação do partido com os portugueses a estudar e a viver na RDA.
"Não fazia ideia de que Cunhal tinha interferido, eu não tinha ligação com o PCP", diz Artur Jorge. "Sei que havia hipótese de ir para a Jugoslávia, mas fui para Leipzig por conselho de amigos, até porque lá era a melhor escola." Experiência que proporcionou um relançamento da sua actividade como desportista profissional, pois "tinha acabado de jogar, tinha partido uma perna, estava na direcção-geral de desporto".
O treinador destaca "o país tranquilo e sem muito barulho". E afirma que "foi uma experiência positiva: o curso, as pessoas, os professores". Conclui: "Foi uma coisa que passou rápido, a lembrança que tenho é de situações agradáveis. Havia muita gente do mundo inteiro a estudar em Leipzig. Era uma terra com as melhores universidades de todo o mundo."

O problema das fotocópias
Positivo é também o balanço que a professora Ana Portela faz da sua experiência como primeira leitora de português na Universidade de Leipzig, entre 1976 e 1981. "Tinha uma filha no pré-escolar, tinha-me divorciado do Luís Sá [dirigente do PCP, falecido em 1999] e vi um anúncio na Faculdade de Letras a pedir um leitor de Português", conta. Fez um contrato com direito a habitação e a educar a filha e com um ordenado em divisas estrangeiras. "Só depois percebi que eles filtravam os candidatos através do PCP. Eu não era [do partido], mas funcionava junto a pessoas que eram."
Com uma visão crítica do regime da RDA, Ana Portela salienta que "Leipzig era a zona mais poluída da Europa", mas, por outro lado, "era um centro estudantil mais importante que Berlim, tinham estudantes de todo o mundo enviados pelos partidos e pelas organizações comunistas". Aí, voltou a casar com um estudante chileno e teve duas gémeas em Leipzig, o que lhe deu direito a um ano de licença com ordenado e assistência médica.
Mas o que esta professora destaca como melhor é o sistema de ensino: "A minha filha tinha natação duas vezes por semana. Um dia disse-lhe para não ir à escola e a professora veio a casa. Ela tinha muitas actividades. Tinha uma escola separada de música, fez quatro anos de piano. Além das aulas, os estudantes mais velhos vinham a casa ensinar os mais novos a praticar com os instrumentos."
Falando com a experiência de uma vida dedicada ao ensino em Portugal, Ana Portela diz: "Conheço o ensino de cá e vi o de lá, não tem comparação. As minhas filhas ainda não tinham dois anos e já se vestiam e comiam sozinhas. Quando viemos estranharam, porque se deitavam cedo e os colegas viam todos televisão à noite." Nota, ainda, que "havia uma educação ecológica e ambiental; os miúdos levavam as garrafas e os jornais para reciclar, o papel era reciclado".
"A cultura era muito acessível", diz Ana Portela, o que é igualmente defendido por João Lourenço. O encenador sublinha, contudo, as condições em que esteve em Berlim-Leste. "Eu era um convidado em condições óptimas, tinha um panorama cultural muito rico", confessa.
"Os livros eram baratos, comprei muitos", conta Mário Vieira de Carvalho. "Onde começavam os problemas? Onde era absurdo. Por exemplo, a dificuldade em tirar fotocópias. Na Biblioteca de Berlim oriental, que tinha uma colecção de música excelente, as fotocópias eram limitadas, fazia-se requisição e demorava dias. Em Berlim ocidental, as próprias pessoas tiravam as fotocópias no momento."

Dinheiro a mais
Mário Vieira de Carvalho nega que houvesse falta de bens e atesta a qualidade dos supermercados: "Nunca senti falta de produtos nem dificuldades de abastecimento. Não era assim nos outros países de Leste. Na Alemanha de Leste, havia os produtos, mas não havia marcas, eram uma espécie de produtos genéricos." Relata um episódio revelador dos problemas de funcionamento do mercado: "Uma vez cheguei a uma estação de metro e vi um vendedor de morangos. Quis comprar meio quilo, não consegui, só vendia uma caixa inteira. Os produtos que não estavam normalmente disponíveis só se vendiam em grandes quantidades e desapareciam rapidamente. O mesmo acontecia com discos e livros, tínhamos de estar atentos para não esgotar."
Como o "sistema subsidiava todos os produtos de primeira necessidade" e os preços eram simbólicos - quando os bens não eram mesmo grátis -, "as pessoas acumulavam dinheiro que não podiam gastar, porque depois havia lista de espera para o carro, as férias eram só em países socialistas", lembra o musicólogo. "Havia sede de consumo e excesso de meios de pagamento, porque não se pagava o que se consumia."
Também João de Freitas Branco defende que o problema em Berlim era "a variedade da oferta" e reconhece que, mesmo assim, "a situação em Berlim não era a de toda a RDA, havia cidades em que era pior". Mas defende o sistema então vigente. "Passados estes anos todos, continuo a ter a opinião que sempre tive, e que é muito mais positiva que a opinião dominante sobre o socialismo real", afirma. "Ali já tinha sido dado um passo civilizacional absolutamente essencial e que se baseava no banimento das desigualdades materiais mais aberrantes, tendo desaparecido a pobreza, essa pobreza que eu conhecia aqui de Portugal."
Este professor da Faculdade de Letras lembra que "quando se fala de direitos humanos verifica-se que as pessoas reduzem a uma única coisa a liberdade de expressão", e questiona: "Mas o bife, o concerto, o livro, a escola - não é isto, também, direitos humanos?" Marcando a diferença dos dois sistemas, socialista e capitalista, sublinha: "Quando saí de Portugal havia milhares de crianças sem acesso à escola. Na RDA não havia um único cidadão que não tivesse acesso à escola." A escolaridade era gratuita e universal e a redistribuição de riqueza era outra, e isso era possível "porque houve uma mudança do regime de propriedade", o que, argumenta, "horroriza qualquer pessoa que considera o capitalismo o melhor dos mundos".
Mas, ao elogiar o sistema, Freitas Branco não deixa de frisar o outro lado, o do regime. "Infelizmente, este passo civilizacional em frente coabitava com um outro, que era um passo civilizacional atrás: o Estado policial e a ausência efectiva da liberdade de expressão." Este investigador, que estava em Berlim faz hoje precisamente 20 anos, conclui: "Na minha opinião, a RDA tinha de acabar, porque um regime onde não há liberdade de expressão tem de acabar. Mas alimentei a esperança de que essa mudança não representasse a anulação do passo civilizacional."

A Grécia levou os "direitos adquiridos" até à demência

por A-24, em 23.06.11
Nas TVs portuguesas, a situação na Grécia é contada através da seguinte narrativa: eis um pobre povo periférico que está a sofrer as agruras de uma crise internacional, eis um povo do sul da Europa a sofrer às mãos da pérfida Merkel. Ora, já é tempo de sair desta superficialidade. Já é tempo de perceber que os gregos têm muitas culpas no cartório. Já é tempo de escavar a sério na situação grega. E, assim que começamos essa investigação, a conclusão é invariavelmente a mesma: os gregos não foram sérios, não estão a ser sérios. Os gregos levaram a lógica dos "direitos adquiridos" até à demência, até à falta de vergonha.
Os exemplos desta falta de seriedade são imensos. Em 1930, um lago na Grécia secou, mas, o Estado Social grego acha que tem de existir um Instituto para a Protecção do Lago Kopais - o nome do tal lago que secou em 1930, mas que em 2011 ainda tem dezenas de funcionários dedicados à sua conservação. Calculo que estes funcionários devem estar a rua a gritar "abaixo o fascismo". Mas há mais. Sabiam que na Grécia as filhas solteiras dos funcionários públicos têm direito a uma pensão vitalícia após a morte do mãe/pai-funcionário-público? Não é genial? Na Grécia, os direitos adquiridos adquirem-se por, vá, osmose familiar. Na Grécia, X e Y recebem 1000 euros mensais - para toda a vida - só pelo facto de serem filhas de funcionários públicos falecidos. Há 40 mil mulheres neste registo. E, depois de um ano de caos, o governo grego ainda não acabou com isto completamente. Calculo que estas meninas devem ir para a rua fazer manifs. Coitadinhas.
Querem mais? Num hospital público, existe um jardim com quatro (4) arbustos. Ora, para cuidar desses arbustos o hospital contratou quarenta e cinco (45) jardineiros. Num acto de gestão mui social (para com o fornecedor), os hospitais gregos compram pace-makers quatrocentas vezes (400) mais caros do que aqueles que são adquiridos no SNS britânico. E, depois, claro, existem seiscentas (600) profissões que podem pedir a reforma aos 50 (mulheres) e aos 55 (homens). Porquê? Porque são profissões de alto desgaste. Dentro deste rol de malta que trabalha como mineiros, encontramos cabeleireiras e apresentadores de TV. Sim, faz todo o sentido: cortar cabelo é o mesmo que estar nas minas da Panasqueira.

Henrique Raposo (www.expresso.pt)

Perseguições policiais fizeram 19 mortos desde 2004

por A-24, em 23.06.11
Desde 2004 até este mês houve 19 mortes causadas por perseguições policiais. Só este ano já houve três. Motivo suficiente para o inspector- -geral da Administração Interna quebrar o silêncio e alertar que estão a acontecer "demasiadas mortes" . Varges Gomes manifesta a sua "profunda preocupação" e sublinha que se "corre o risco" de se "tornar uma prática".

Desde 2004 morreram 19 pessoas em perseguições policiais. Segundo dados da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) a que o DN teve acesso, foram abertos 15 inquéritos relativos a 16 mortes (um dos processos tem duas) entre 2004 e 2008, das quais oito ainda não foram decididas pelos tribunais. Em quatro dos sete casos de mortes de suspeitos, a decisão do tribunal foi de condenação do elemento da força de segurança. Três foram absolvidos. A tendência judicial é pela punição dos polícias. O Inspector-Geral da Administração Interna quebrou o silêncio e disse, ao DN, que há "demasiadas mortes" em perseguições policiais, situação que considera "preocupante."
As decisões dos tribunais são diferentes nos casos de agressões ou ferimentos com armas de fogo. Na maioria das situações os juízes têm concordado com a actuação policial. Num total de 63 inquéritos abertos, dos 50 que já chegaram à barra do tribunal, houve 46 arquivamentos e apenas cinco punições (ver quadro).
Com a morte esta semana de um dos assaltantes do Hospital Privado do Algarve, em Alvor, que se despistou em fuga à GNR, elevam-se para três os mortos em perseguições só este ano. Ontem a PJ feriu a tiro um dos assaltantes de uma ourivesaria (ver pág.20).
O Inspector-Geral da Administração Interna, Varges Gomes, entende que a situação "é preocupante" e, pela primeira vez desde que tomou posse, há seis meses, quebra o silêncio: "Há demasiadas mortes. São sempre demais. Corre-se o risco destas actuações se tornarem uma prática e não se podem considerar normais estes casos. Têm que ser sempre excepcionalíssimos".
O juiz-desembargador vê "com apreensão" algumas perseguições. "Há casos que não se justificam", defende, lembrando as palavras do seu antecessor, Clemente Lima. "Ninguém pode ser condenado à pena de morte por não parar num sinal vermelho ou numa operação stop", dizia o anterior "polícia dos polícias", a propósito de situações dessa natureza que tinham acontecido na altura. Varges Gomes subscreve e acrescenta: "Diria mais, ninguém pode ser punido com pena de morte por razão nenhuma".
O inspector-geral compreende que "há situações inevitáveis: vivemos numa sociedade de risco e isto potencia estas reacções por parte das forças de segurança, mas a vida é um direito fundamental, e é preciso fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que as mortes, ou ferimentos, nestes casos, sejam apenas em legítima defesa, como mandam as regras de actuação policial".

200 anos dos Blandy da Madeira

por A-24, em 23.06.11
Entidades, empresários e amigos associaram-se à celebração

«"Os Blandy da Madeira sentem-se tão madeirenses como quaisquer outros". A frase, proferida ontem pelo presidente do Grupo Blandy, Michael Blandy, na cerimónia de comemoração dos 200 anos da presença na Madeira, realizada no Hotel Cliff Bay, alude ao título do livro que retrata a família e sintetiza, no fundo, o espírito que tem sido assumido nesta ligação com a Região e com as suas gentes.
Uma ligação que, como sublinhou em continuidade, tem sido marcada por um empreendedorismo que tem resultado em progresso e criação de riqueza, naturalmente também para a própria Madeira.
Num curto historial sobre aquilo que tem sido os 200 anos do Grupo Blandy na ilha, Michael Blandy fez questão de recordar "a visão" do seu antepassado John Blandy, que em 1811 se radicou definitivamente na Madeira, "acreditando nas potencialidades da ilha e das suas gentes para o desenvolvimento e a criação de riqueza e progresso".
O presidente do Grupo destacou, ainda, o papel assumido pelos sucessores de John Blandy, que ao longo destes dois séculos souberam manter "esse espírito empresarial e aumentaram os negócios em diversos ramos, aqui na ilha e também noutras regiões do mundo".
Falando para centenas de convidados, entre entidades regionais, gente de vários quadrantes políticos e figuras gradas do mundo empresarial madeirense, Michael Blandy lembrou, nesse contexto, um estudo recente que indicava que 98 por cento das empresas dos Estados Unidos são familiares, número que é de 75 por cento no Reino Unido. Deste total, acrescentou, apenas 30 por cento das empresas chegam a uma segunda geração e, destas, somente 13 por cento atingem a terceira geração. "Desconheço as estatísticas de Portugal, mas já temos a sétima geração a trabalhar no Grupo", sublinhou.
De resto, acrescentou o presidente do Grupo Blandy, esse espírito que tem sido transmitido de geração para geração explica grande parte do segredo do sucesso atingido nestes 200 anos, mesmo com todas as dificuldades que lhes vão sendo colocadas na Madeira. Neste particular, Michael Blandy deixou claro que a filosofia mantém-se igual, até porque, vinca, "o que nós sabemos é trabalhar".
O exemplo mais recente dessa confiança reforçada que o Grupo mantém na Madeira é, segundo Michael Blandy, a aquisição da maioria do capital da 'Madeira Wine'. "Porventura podíamos ter investido noutros locais do mundo, até com mais proveito, mas esta foi a nossa posição", sublinhou.
O empresário destacou ainda a importância que as parcerias, efectuadas com empresas associadas, têm assumido para o sucesso do Grupo, deixando uma palavra especial para "os amigos leais" que estiveram sempre ao lado da família.
As palavras finais, em forma de brinde, foram dirigidas à população madeirense e aos seus empresários, no sentido de que se viva "em paz social" , podendo deste modo se encarar "o futuro desta terra com confiança".
Michael blandy e a ausência do GR: "Demonstra que a independência do pensamento está a crescer na ilha"
A ausência de todos os membros do Governo Regional na comemoração dos 200 anos do Grupo Blandy na Madeira mereceu um comentário da parte do presidente do grupo, Michael Blandy.
"A única coisa que quero dizer sobre a ausência dos membros do Governo é que que foram todos convidados. E afortunadamente a vida é livre, não quiseram estar presentes, é uma decisão deles", vincou Michael Blandy.
O presidente do Grupo Blandy considera que tomada de posição é uma demonstração de que "cada vez mais, a independência do pensamento está a crescer na ilha". E acrescentou: "Nós temos imensos amigos cá, não faltam amigos, temos muita gente do PSD e, portanto, qual é o problema? Não há nenhum, são pessoas que decidiram por si próprias e desejo-lhes as maiores felicidades", sublinhou.
Michael Blandy deixou claro que não se sente magoado com esta ausência do presidente do Governo Regional e de todos os seus secretários. "Não me sinto minimamente magoado. Eu tenho a grande sorte de não encarar nada destas coisas com seriedade. Não vale a pena", finalizou o presidente do Grupo Blandy.»