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A-24

O ENIGMA DE KASPAR HAUSER (1812?-1833): UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL

por A-24, em 27.06.11
A partir de uma abordagem histórico-cultural em Psicologia, este trabalho analisa o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, um personagem real e enigmático que, quando encontrado em Nuremberg, em 1928, com supostamente 15 anos, não sabia falar, nem andar e não se comportava como humano. Até hoje o seu enigma persiste: apesar de muitas hipóteses e suspeitas, não se descobriu sua origem. Apoiando-se em estudos de Vygotsky e Luria, que indicam que a percepção depende, sobretudo, da práxis social, necessária para gestar o referencial cultural de apreensão da realidade, a autora analisa como se articulam linguagem e pensamento no desenvolvimento cognitivo de Kaspar Hauser e como ele concebe o mundo que o cerca, tendo sido privado dos filtros e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento.


Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?
(Prólogo do Filme O Enigma de Kaspar Hauser de Herzog, 1974)

1. Introdução
Trabalhando com a perspectiva histórico-cultural em Psicologia, que enfatiza que cada ser humano se constitui como uma pessoa totalmente única (por suas experiências e sua história de vida) e que ressalta a importância das práticas culturais na definição do desenvolvimento psicológico do sujeito, buscou-se selecionar um personagem humano (Kaspar Hauser) que não correspondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões de comportamento tidos ou esperados como “normais” dentro da cultura da época.
Pretende-se analisar neste trabalho o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, buscando a compreensão de fatores que concorreram para a construção de seu psiquismo.
Para efetuar esta análise, pretende-se utilizar as referências sobre a vida do rapaz encontradas em diversas fontes, inclusive jornais e, principalmente, no filme O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog (1974) e nos livros Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade, de Izidoro Blikstein (1983) e The Lost Prince: The Unsolved Mistery of Kaspar Hause, de Jeffrey Moussaieff Masson (1997).

2. A história de Kaspar Hauser

O menino Kaspar Hauser apareceu pela primeira vez numa praça de Nuremberg, em maio de 1828. Era um estranho: ninguém sabia quem era ou de onde vinha. Trazia uma carta de apresentação anônima para o capitão da cavalaria local, contando que fora criado sem nenhum contato humano, em um porão, desde o nascimento até aquela idade (provavelmente 15 ou 16 anos) e pedindo que fizessem dele um cavaleiro como fora seu pai.
Ficou-se sabendo mais tarde (quando K. Hauser aprendeu a falar) que uma pessoa, que ele não conheceu, tratava dele enquanto esteve isolado, deixando-lhe alimentos enquanto ele dormia.
Acolhido na casa de um professor que se ocupou de iniciar sua socialização, é assassinado em 1833 (o filme de Werner Herzog sugere que K. Hauser foi assassinado pelo próprio pai).
Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam; sabia falar apenas uma frase: “quero ser cavaleiro” e não sabia andar direito. Parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comportamento estranho para os padrões sócio-culturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como um “garoto selvagem,” apesar de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía algumas habilidades peculiares interessantes, descritas tanto no filme de Herzog, quanto na obra de Masson: conseguia enxergar muito longe, no escuro, e sabia tratar os animais, principalmente os pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas e fugia delas aterrorizado. Numa das cenas, atraído pela chama de uma vela, colocava seu dedo no fogo e, ao sentir dor, aprende que a chama queima.
Graças à sua curiosidade infantil e memória notável, aprendeu várias coisas muito depressa.
Kaspar Hauser tornou-se uma espécie de atração por sua história de vida diferente. Todas as pessoas da cidade queriam vê-lo. O filme de Herzog mostra, em uma das cenas, K. Hauser junto com outros indivíduos, tidos como anormais (um anão, um índio e uma criança autista), em exposição num circo.
Um ano depois de ter chegado a Nuremberg, foi ferido e recebeu um grande corte na fronte. Em dezembro de 1833, recebeu outro ferimento que lhe seria fatal. Herzog sugere, em seu filme, que os dois ferimentos sofridos por K. Hauser foram tentativas de assassiná-lo. Masson diz, em seu livro, que em dezembro de 1833, K. Hauser foi atraído para uma emboscada, com a promessa de receber informações sobre seu nascimento. No local, em vez disso, recebeu uma facada no peito, morrendo três dias depois.

3. O enigma de Kaspar Hauser

Muitas foram as hipóteses levantadas para explicar o fato de Kaspar Hauser ter sido criado no isolamento. Dentre essas hipóteses há duas explicações principais:
a primeira diz que Kaspar Hauser seria um mendigo espertalhão que fingia ser pobre de espírito para atrair a simpatia alheia. Dentro dessa visão, ele próprio teria se ferido para atrair mais atenção, ao perceber que o interesse dos outros por sua figura estava diminuindo.
a segunda explicação trabalha com a hipótese de que Kaspar Hauser seria neto de Napoleão Bonaparte.
O livro de Masson (1997) oferece documentação variada sobre esta segunda hipótese, argumentando que a filha adotiva de Napoleão, Stéphanie de Beauharnais, tinha-se casado com Karl, duque de Baden e, em 1812, ambos tiveram um filho a quem ela teria dado o nome de Gaspard. No entanto, Luise, a madrasta de Karl, segunda mulher de seu pai, querendo garantir para seu próprio filho a herança do trono de Baden, trocou o filho de Karl e Stéphanie por uma criança doente que morreu logo depois.
O herdeiro saudável foi posto a pão e água em um calabouço, atendido por um homem cujo rosto ele nunca via. Passava seu tempo dormindo ou brincando com um cavalinho de pau. Quando chegou perto da adolescência, o homem que cuidava dele levou-o para Nuremberg.
A fama que começou a granjear preocupou os conspiradores, a tal ponto, que recrutaram um inglês, o Conde de Stanhope, para aproximar-se do garoto, fingindo ser um amigo que queria protegê-lo. Segundo Masson, teria sido Stanhope o responsável pelas duas tentativas de assassinar Kaspar Hauser; na verdade, o crime nunca foi esclarecido.
Porém, a tese de Masson de que Kaspar Hauser seria um príncipe perdido foi refutada por um exame de DNA, cujo resultado, revelado em abril de 1997, na Alemanha, mostra que Kaspar Hauser não era herdeiro do trono de Baden, como se acreditava.2
Dois institutos forenses da Alemanha compararam restos de sangue achados na roupa de Kaspar Hauser com o sangue de duas mulheres da dinastia de Baden, ainda vivas. Ficou provado, então, que Kaspar Hauser não pertencia a essa linhagem – e o enigma foi retomado.

4. Análise do percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser

Criado no isolamento e privado de educação, condicionamento e repressão, é este processo de integração que Kaspar Hauser sofrerá em Nuremberg, e seu instrumento principal será a linguagem, pela qual a sociedade tentará fazê-lo conceber aquilo que sua natureza não concebe: a representação.
O século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens, como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao protótipo do homem “civilizado” eram classificados como primitivos, atrasados e deveriam ser “ajudados” a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado.
Ao chegar em Nuremberg Kaspar Hauser sabe apenas repetir, com dificuldade, a mesma frase (“quero ser cavaleiro como meu pai“). A sociedade o vê com estranheza. Ele próprio se vê, de repente, num mundo estranho. O filme de Werner Herzog mostra Kaspar Hauser na praça de Nuremberg com um olhar assustado. Na verdade tudo lhe é estranho: as dimensões, os movimentos, a perspectiva, o pensamento, a fala.
Com o tempo aprende a falar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. Numa das passagens do filme Kaspar Hauser olha, do campo, a torre em que fica seu quarto e observa que ela é muito menor do que ele próprio. “Como pode ser isto?” pergunta.
Kaspar Hauser se sente confuso pois não tem a mínima noção de que a distância de onde observava criara uma perspectiva que fazia com que a torre parecesse menor do que realmente era.
Quando seu tutor aproxima-se com ele da torre, vem a observação: “Como esta torre é grande! O homem que a construiu deve ser muito alto!”
A paisagem em que Kaspar Hauser foi colocado, apesar de explicada pela linguagem, pelas palavras, por signos lingüísticos, permanece, para ele, indecifrável. Muitas vezes, pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia verbalizar o conteúdo pensado.
Conhecer o mundo pela linguagem, por signos lingüísticos, parece não ser suficiente para Kaspar Hauser “talvez por que a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação lingüística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade” (Blikstein, 1983, p. 17). Nesse sentido, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originam independentemente, fundindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna que constitui a maior parte do pensamento maduro.
Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas impõem todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o insólito ambiente que o cerca. Como K. Hauser poderia compreender o significado das palavras e que elas representam coisas, se não passou por um processo de aprendizado e socialização necessários para que compreendesse a representatividade dos signos? Blikstein (1983) diz que a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade; ou seja, a educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É justamente esse processo que K. Hauser não vivenciou.
A forma diferente como ele percebia a realidade parecia suficiente para que fosse visto como “diferente,” estranho, o “outro” pela sociedade da época. Ele próprio se via como um estranho, deslocado, frágil e impotente diante de uma realidade que não conseguia compreender, pelo menos não da forma como esperavam que ele compreendesse.
Os objetos não eram percebidos por K. Hauser da forma como a prática social definia previamente, ou seja, K. Hauser estava despido dos “filtros” e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento. Tais “filtros” ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por uma contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem.
A forma como Kaspar Hauser compreende o mundo e se relaciona com ele indica que a percepção depende sobretudo da prática social. Sabemos que, do nascimento à adolescência, K. Hauser esteve isolado de qualquer contexto ou prática social. O que podemos verificar no seu percurso de desenvolvimento psicológico é que a despeito da ação da linguagem (adquirida na fase adulta) ou de um eventual “potencial” inato, K. Hauser não consegue captar o mundo como o faz a sociedade que o cerca, ou seja, decodifica à sua maneira, com uma lógica diferente da estabelecida, a significação do mundo. Fica evidente, então, que o seu sistema perceptual está desaparelhado de uma prática social3 necessária para gestar o referencial cultural de interpretação da realidade.
Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um processo de socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social, não consegue atribuir significado às coisas, mesmo tendo adquirido a linguagem. Assim, analisando o caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais “modelam” a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.
Em virtude de não ter sido exposto a essa “modelagem” cultural, Kaspar Hauser era visto como um ser “incompleto,” como se estivesse sempre em “déficit” em relação aos outros; teria Kaspar instrumental de reflexão internalizado para construir a compreensão da diferença? Aqui parece ser possível detectar uma inverossimilhança no filme de W. Herzog: numa das cenas, K. Hauser diz a uma das pessoas que o acolheu: “Ninguém aceita Kaspar.” Segundo o filme, ele tem consciência de sua situação. Porém, na realidade, parece não ser possível esse grau de consciência em alguém que não tem instrumental de reflexão internalizado.
Kaspar Hauser se sente perturbado pelo mundo: “o mundo é todo mau,” comenta com seu tutor após perceber que alguém pisou as flores que plantara no jardim.
Tanto Masson (1997), quanto Herzog (1974) e Blikstein (1983), apontam para o fato de que após algum tempo de convivência com a comunidade de Nuremberg, Kaspar Hauser passa a representar um incômodo, pois vê a realidade, que aos olhos dos outros estava tão bem ordenada, com outros olhos: os olhos “subversivos” que não aceitam os referenciais que a sociedade insiste em lhe impor, negando, de certa forma, a ordem social vigente. Ele olha as pessoas, os objetos e as situações com o espanto e a perplexidade de um olhar “puro,” sem “filtros” ou estereótipos perceptuais. A sua aproximação cognitiva da realidade é direta, ou seja, percebe o mundo de uma maneira ainda não programada pela estereotipia cultural.
Vygotsky, citado por Oliveira (1997, p. 24), diz que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os sistemas simbólicos são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo; porém, tendo vivido no isolamento, K. Hauser não aprendeu nem internalizou este sistema simbólico que, para ele, não fazia sentido.
Somente depois de muito tempo convivendo com a comunidade de Nuremberg é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica e a relação de representatividade entre os signos e as coisas concretas.
Em um dos diálogos no filme de Herzog, K. Hauser conta ao seu tutor que havia sonhado com uma caravana. O tutor fica animado e lhe diz: “que bom Kaspar! Você fez um grande progresso! Já sabe a diferença entre o sonho e a realidade! Até a semana passada você não fazia esta distinção, acreditava que as coisas sonhadas haviam acontecido realmente …”
A partir desse momento, Kaspar começa a se situar em relação ao mundo e às pessoas que o cercam. Parece tomar consciência de que era diferente dos outros e que, por isso, muitas vezes, era hostilizado.
Nesse sentido, Blikstein (1983) afirma que o que concebemos como realidade é apenas uma ilusão, pois a práxis opera em nosso sistema perceptual, ensinando-nos a “ver” o mundo com os “óculos sociais” e gerando conteúdos visuais, tácteis, olfativos e gustativos que aceitamos como naturais. Como Kaspar Hauser não passou por esta práxis, ou apenas começou a vivenciá-la quando adolescente, sua forma de comportamento abala os fundamentos da ilusão referencial, pois não “enxerga” a realidade da forma como os outros esperam. Essas expectativas das pessoas em relação a K. Hauser fazem com que sua identidade, já bastante comprometida devido à ausência de um passado familiar, torne-se ainda mais deteriorada.
K. Hauser não é reconhecido como parte da sociedade e ele próprio não se reconhece como parte dela. Em uma reunião da qual fora convidado a participar, em que estavam vários membros da alta sociedade, foi apresentado à esposa do prefeito de Nuremberg, que lhe perguntou como era sua prisão e ele respondeu: “melhor do que aqui fora.”4 Vai sofrendo, assim, um processo de estigmatização que o marca, não apenas como “diferente” ou “anormal,” mas também como alguém que não possui identidade.
Goffman (1988) define como estigmatizado o indivíduo que poderia ter sido recebido facilmente na relação social cotidiana, se não possuísse um traço que chama a atenção e afasta aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui uma característica diferente do padrão esperado. É exatamente o que ocorreu com K. Hauser. Embora ele tivesse muitos atributos e uma inteligência prodigiosa que lhe permitia aprender as coisas muito rapidamente é visto, por exemplo, como insensível porque não demonstra medo diante de um soldado que lhe mostra uma espada (que para os outros representa um sinal de perigo). Assim, não correspondia às expectativas de comportamento, ou seja, aos padrões de comportamento esperados de um jovem da sua idade.
Goffman afirma que acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente reduzimos sua chance de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua “inferioridade” e dar conta do “perigo” que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças como as de classe social. Vemos que isso ocorre, também, no filme de Herzog, quando é aventada a hipótese de que Kaspar Hauser seja filho de algum nobre (e que por disputas palacianas teria sido afastado e escondido), e o capitão da cavalaria diz que isso seria impossível, pois “K. Hauser tem traços muito grosseiros para ser um nobre”; e, quando, ao final do filme, os legistas acreditam finalmente ter encontrado as explicações para todos os “problemas” de Kaspar: uma pequena deformidade que ele possuía no cérebro. Dessa forma, o caso foi dado, na época, como solucionado: havia uma explicação racional, objetiva (porque visível e palpável – o cérebro), de caráter fisiológico e que concentrava no próprio indivíduo a “culpabilidade” de sua situação.

5. Conclusão

O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista.
Mostra-nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas conseqüência de um longo processo de aprendizado com o grupo social.
Através desse processo, o indivíduo se integra no grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e costumes, o indivíduo está se socializando, reprimindo suas características instintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, fazendo, assim, a “passagem da natureza para a cultura,” aprendendo a ver com os “óculos sociais,” tornando-se, como nos disse C. Dickens, “um animal de costumes.”
Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época.
Alguém como Kaspar Hauser que enxergava, mesmo na escuridão, e que ouvia os “gritos do silêncio” (coisas inconcebíveis para o homem “civilizado”), não poderia ser visto como “normal.”
Mesmo tendo aprendido a andar, falar e escrever e apesar de haver internalizado símbolos de comportamentos, Kaspar Hauser nunca seria considerado um “igual” pela comunidade de Nuremberg, pois sua história de vida estava inevitavelmente marcada pelo estigma da rejeição.
Na lápide de Kaspar Hauser, no cemitério de Ansbach, na Alemanha, há uma inscrição que diz: “Hic occultus occultu uccisus est.” Quer dizer: “Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido.” Nada resume melhor o misterioso percurso da vida e morte deste homem.

Saboya, M. C. L. (2001). The Mystery of Kaspar Hauser (1812?-1833): A Psychosocial Approach. Psicologia USP, 12 (2), 105-116.

Abstract: Starting from a historical-cultural approach in Psychology, this work analyzes the development of Kaspar Hauser, a real and enigmatic character that didn’t know how to speak, nor to walk and didn’t behave as a human being when he was found in Nuremberg, in 1928, at supposedly age 15. Still today, his enigma remains: in spite of a lot of hypotheses and suspicions we have not yet discovered its origins. Leaning on studies of Vygotsky and Luria, which indicate that the perception depends, above all, on the social practice which is necessary to produce the cultural reference for the apprehension of reality, the author analyzes how language and thought are articulated in Kaspar Hauser’s cognitive development and how he conceives the world that surrounds him, having been deprived from the filters and cultural stereotypes that stipulate the perception and knowledge.

Grécia encerrou 700 quilómetros de ferrovia

por A-24, em 26.06.11
Até há pouco tempo, Viseu era a maior cidade da Europa continental sem linha férrea, mas esta capital de distrito portuguesa perdeu esse estatuto negativo para a cidade grega de Patras, depois de o Governo grego ter pedido auxílio internacional para pôr as suas contas públicas em dia.
Isto porque as medidas da troika nos caminhos-de-ferro da Grécia levaram ao encerramento da totalidade da sua rede de via estreita no Sul do país. Ao todo, são 700 quilómetros de linhas que estão tecnicamente "suspensas" no Peloponeso. Patras, com 300.000 habitantes, no Sudoeste da Grécia e uma das maiores urbes daquele país, foi uma das que perderam acesso às ligações ferroviárias, destronando assim Viseu num lugar que, eventualmente, nenhuma cidade invejaria.

A redução de custos na Grécia ditou também o fim do serviço de passageiros em 170 quilómetros da linha internacional no Leste do país, de Alexandropouli às fronteiras da Bulgária e da Turquia, bem como de 70 quilómetros da linha de Plati (Salónica, a segunda maior cidade grega), electrificada, à fronteira com a Macedónia, e que é parte integrante do corredor europeu Veneza-Atenas. 

Em termos relativos, a Grécia fechou 44 por cento das suas linhas e desafectou 59 por cento do tráfego de passageiros.

Sobre a queda do muro de Berlim

por A-24, em 23.06.11
Público

Não sei quem tu és e tenho falado contigo. Mas não fales com a minha mulher sobre as coisas que te tenho dito sobre este país, porque ela é do partido.” Ainda hoje, passados mais de 20 anos, a frase causa estranheza ao encenador de teatro João Lourenço, que sorri e confessa: “Nunca mais soube dele, esta conversa tem-me acompanhado todos estes anos e só esta frase dava uma peça.” Trata-se de um cenógrafo com quem João Lourenço trabalhou e conviveu no Berliner Ensemble, companhia de teatro fundada em 1951 por Bertolt Brecht, em Berlim-Leste. As conversas entre os dois versavam a situação e o sistema da República Democrática Alemã (RDA), “sobre a liberdade, a educação, o que era a verdadeira esquerda”. Um dia, dando prova de confiança, o cenógrafo convidou-o para jantar com a sua família. Foi no carro, quando se dirigiam para casa do cenógrafo, que este disparou a frase que até hoje marca o encenador.

Daniel Rocha

O jornalista Martins Morim segurando dois Trabant em miniatura
João Lourenço viveu e estudou em Berlim-Leste cerca de um ano, entre o final de 1979 e 1980, mas muitos outros portugueses tiveram o privilégio e a experiência de viver num país dividido em dois por um muro, que simbolicamente separava dois regimes políticos e dois sistemas de organização social. Tal como ele, também o musicólogo Mário Vieira de Carvalho, o filósofo João Maria de Freitas Branco, o jornalista Martins Morim, a professora Ana Portela e o treinador de futebol Artur Jorge estudaram ou trabalharam na metade comunista da Alemanha: os quatro primeiros em Berlim-Leste e os dois últimos em Leipzig.

Um anseio de liberdade
O peso do regime ditatorial comunista e a ausência de liberdade, que a frase citada por João Lourenço ainda hoje ecoa, é algo que marcou estes seis antigos residentes na ex-RDA. E que lhes provoca uma dualidade de sentimentos, já que a lembrança da Alemanha de Leste que conheceram também revela admiração pelo que de positivo consideram que aquele sistema possuía.

“Tinha de se pôr fim à RDA e eu tornei-me muito rapidamente um opositor do regime, sendo um admirador do sistema, que, pela primeira vez, me permitiu uma vivência na ausência das desigualdades sociais”, explica João Maria de Freitas Branco, filósofo e investigador universitário que viveu em Berlim com a mulher e dois filhos entre 1984 e 1991 – “assisti mesmo ao fim” -, onde se doutorou na Universidade de Humboldt, tendo trabalhado ainda como correspondente do Jornal de Letras.


Quando o fim chegou e o Muro se desfez como se fosse de areia, a maioria dos entrevistados pela Pública viram-no à distância. Artur Jorge foi apanhado desprevenido. Mas reconhece que “a RDA nasceu de uma maneira estranha”, pelo que “muitas pessoas daquele país não ficaram tristes com o fim”.

Também João Lourenço não escamoteia que se percebia “historicamente a necessidade do Muro como nascera”, mas não esconde que, “no início dos anos 80, via-se que havia muita gente descontente com o país, via-se nas pessoas um anseio de liberdade”. E explica: “Depois de algum tempo na RDA, percebia-se que havia outra esquerda, que havia pessoas de esquerda que lutavam e eram contra o sistema.”

Martins Morim frisa que era visível entre os alemães a contestação, sobretudo entre “a juventude mobilizada pela Igreja” e “na geração do bem-estar que começa a dizer “não” – a geração que tem hoje 40 anos”.

Ana Portela apercebeu-se de que a situação “era absolutamente insustentável”. Segundo ela, o movimento do Solidariedade na Polónia causa um impacto grande nos meios intelectuais, embora “oficialmente não existisse”. E lembra: “Não sabíamos como ia terminar. Discutimos muito, com portugueses e alemães. Sobretudo os intelectuais eram muito críticos. Mas não havia sinais de que ia abrir.”

Dois mundos
O clima de ditadura e de opressão estava simbolizado no Muro de Berlim, começado a construir em 13 de Agosto de 1961 para materializar, na então antiga capital da Alemanha, a divisão do país feita entre os vencedores da II Guerra Mundial.

Freitas Branco conta que “tinha uma recomendação de fronteira”, o que lhe dava “um estatuto diplomático, que era importantíssimo numa cidade como Berlim”, pois permitia circular entre o lado oriental e o lado ocidental, sem que o carro fosse sequer revistado, já que “tinha matrícula diplomática”. “Terei sido dos portugueses que mais passaram o Checkpoint Charlie”, diz em tom de graça.


Uma forma de poder circular em liberdade que aprendeu, confessa, com Mário Vieira de Carvalho, que conhecia de Lisboa e com quem se cruzou em Berlim no mesmo edifício e na mesma faculdade durante alguns meses. O musicólogo e correspondente do Diário de Lisboa beneficiou deste estatuto para circular nos dois lados do Muro e usou-o “praticamente todos os dias”, sobretudo para ir à biblioteca no lado ocidental e à ópera. A liberdade que o estatuto de leitora na Universidade de Leipzig dava é ainda salientado por Ana Portela, que até decidiu ir a Berlim-Leste comprar um carro.

Era precisamente a noção do que era andar em liberdade e poder passar o Muro que dava a Freitas Branco a consciência exacta da situação vivida pela generalidade da população de Berlim: a separação absoluta. “A cortina de ferro existia, de facto. Para quem se deslocava a pé, o ponto de passagem de fronteira era a estação de comboios central, a Friedrichstrasse”, diz este professor da Faculdade de Letras de Lisboa. “Numa mesma estação de metro e comboios, havia dois mundos completamente distintos, o mundo do socialismo e o mundo do capitalismo. As pessoas passavam a um metro umas das outras sem se poderem ver nem falar. A divisória era uma cortina de ferro que cobria parte da estação. A cortina de ferro de que Churchill falava estava ali, materializada. É algo que só vivido.”

Mas não era só no muro que rasgava a cidade que o peso da ditadura se sentia. João Lourenço – “Eu não fui pelo PCP, nunca fui do PCP” -, que esteve em Berlim a estagiar um ano, a convite do director da Casa de Brecht, Werner Hesht, e do director do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth, afirma: “Senti uma segurança como nunca senti em cidade nenhuma do mundo. Os soldados nas esquinas, nas casas de vidro, davam segurança. Havia uma segurança dada pelo regime.” Mas não esconde que essa segurança tinha um lado assustador: “Um dia acordei com o barulho e com o chão a tremer. Fui à janela, eram os tanques com mísseis a passar. Durante uns segundos pensei: é a guerra. Eram os preparativos para o desfile do 1.º de Maio.”

O mundo à parte do teatro
Sobre o mundo em que se movia, João Lourenço garante que “não sentia o peso da censura”. “Os teatros tinham um director que era actor ou encenador, e depois tinham um membro do partido com formação em ciências teatrais”, explica.


Da mesma opinião é Mário Vieira de Carvalho, que viveu em Berlim entre Setembro de 1979 e Dezembro de 1984, doutorando-se com uma bolsa da Gulbenkian em Musicologia, na Universidade de Humboldt.

A tese foi sobre o São Carlos entre os séculos XVIII e XX, e a investigação teve como laboratório vivo as duas óperas na cidade dividida de Berlim, uma de cada lado.

Em Dresden assistiu a uma encenação da ópera de Beethoven, Fidélio, em que “o cenário era um muro e toda a gente percebia que era uma alusão ao Muro e esteve em cartaz nos anos 80″. O ex-secretário de Estado da Cultura afirma que o peso não era, pelo menos neste domínio da cultura, o da ditadura feroz. Havia, sim, o peso da burocracia que implodia o sistema.

“Todas as pessoas com quem contactei, fossem do partido ou não, tinham uma posição extremamente crítica em relação à burocracia e à incapacidade do sistema”, afirma Mário Vieira de Carvalho, explicando que “a falta de liberdade de expressão não deixava reflectir a realidade e o criticismo não passava”. Pormenoriza: “Nas reuniões debatiam e criticavam, mas não passava para cima. A corrente não era de baixo para cima, era de cima para baixo.” Uma atitude de comando que era “a expressão de uma falsa consciência sobre a realidade” e também, segundo Vieira de Carvalho, “profundamente antimarxista”.

Boas recordações
Os seis portugueses que viveram na ex-RDA são unânimes em elogiar os benefícios proporcionados pelo socialismo real. É desse bem-estar e dessa qualidade de vida que sentem nostalgia.

“Vivi lá, gostei de viver e vivi bem. Às vezes digo na brincadeira “os tempos em que fui rico”, no sentido de viver sem preocupações materiais”, diz o jornalista Martins Morim, o ex-residente na RDA ouvido pela Pública que mais anos aí permaneceu, de Outubro de 1975 a Outubro de 1984. A estudar administração de empresas e a trabalhar na rádio universitária em Lisboa, escolheu Berlim pela utilidade que a língua alemã poderia ter depois e foi trabalhar para a secção portuguesa da Rádio Berlim Internacional, tendo sido correspondente de O Diário. Em Berlim-Leste, estuda desporto, está ligado à organização de um festival internacional de música de intervenção. Toca numa banda, o que lhe permite viajar muito e conhecer Renata, com quem casou e com quem regressou a Lisboa, onde ainda hoje vivem.


“Apanhei a Alemanha na fase do welfare state [Estado-providência] nos países da social-democracia e o bem-estar da social-democracia fazia com que, do outro lado, se vivesse melhor”, explica Martins Morim. “Não renego nada do que escrevi e vivi, tinha 24 anos quando fui para lá, havia em mim um lado de sonho e aventura.”

Explicando o que era o bem-estar proporcionado pelo sistema, Martins Morim relata: “Não pagávamos renda quase, era um preço simbólico. A nossa filha fez a escola, ninguém comprava livros, ensinava-se a respeitar os livros e no fim entregavam-se de novo à escola. A escola era gratuita, os transportes eram baratos, ir ao teatro era barato. Não se ganhava muito, mas ir à ópera era acessível.” Lembra: “As pessoas viviam bem, tinham dinheiro, tinham é que esperar por comprar carro.” Salienta as peculiaridades do sistema socialista alemão de Leste em relação ao resto dos países socialistas: “Quando vim para Portugal, vivíamos numa zona de Berlim que tinha lojas privadas e no campo havia direito de propriedade. Por outro lado, a situação religiosa era respeitada.”

Este bem-estar que Martins Morim salienta em relação a Berlim-Leste é confirmado pelos portugueses que viveram em Leipzig. É o caso do treinador de futebol Artur Jorge, que aí esteve em 1978 e 1979, para estudar desporto. Embora Artur Jorge não fosse do PCP, Álvaro Cunhal fez diligências pessoais junto do presidente Honecker, conta Domingos Lopes, irmão de Martins Morim, que assumiu, no departamento internacional do PCP, a responsabilidade pela ligação do partido com os portugueses a estudar e a viver na RDA.

“Não fazia ideia de que Cunhal tinha interferido, eu não tinha ligação com o PCP”, diz Artur Jorge. “Sei que havia hipótese de ir para a Jugoslávia, mas fui para Leipzig por conselho de amigos, até porque lá era a melhor escola.” Experiência que proporcionou um relançamento da sua actividade como desportista profissional, pois “tinha acabado de jogar, tinha partido uma perna, estava na direcção-geral de desporto”.

O treinador destaca “o país tranquilo e sem muito barulho”. E afirma que “foi uma experiência positiva: o curso, as pessoas, os professores”. Conclui: “Foi uma coisa que passou rápido, a lembrança que tenho é de situações agradáveis. Havia muita gente do mundo inteiro a estudar em Leipzig. Era uma terra com as melhores universidades de todo o mundo.”

O problema das fotocópias
Positivo é também o balanço que a professora Ana Portela faz da sua experiência como primeira leitora de português na Universidade de Leipzig, entre 1976 e 1981. “Tinha uma filha no pré-escolar, tinha-me divorciado do Luís Sá [dirigente do PCP, falecido em 1999] e vi um anúncio na Faculdade de Letras a pedir um leitor de Português”, conta. Fez um contrato com direito a habitação e a educar a filha e com um ordenado em divisas estrangeiras. “Só depois percebi que eles filtravam os candidatos através do PCP. Eu não era [do partido], mas funcionava junto a pessoas que eram.”

Com uma visão crítica do regime da RDA, Ana Portela salienta que “Leipzig era a zona mais poluída da Europa”, mas, por outro lado, “era um centro estudantil mais importante que Berlim, tinham estudantes de todo o mundo enviados pelos partidos e pelas organizações comunistas”. Aí, voltou a casar com um estudante chileno e teve duas gémeas em Leipzig, o que lhe deu direito a um ano de licença com ordenado e assistência médica.

Mas o que esta professora destaca como melhor é o sistema de ensino: “A minha filha tinha natação duas vezes por semana. Um dia disse-lhe para não ir à escola e a professora veio a casa. Ela tinha muitas actividades. Tinha uma escola separada de música, fez quatro anos de piano. Além das aulas, os estudantes mais velhos vinham a casa ensinar os mais novos a praticar com os instrumentos.”

Falando com a experiência de uma vida dedicada ao ensino em Portugal, Ana Portela diz: “Conheço o ensino de cá e vi o de lá, não tem comparação. As minhas filhas ainda não tinham dois anos e já se vestiam e comiam sozinhas. Quando viemos estranharam, porque se deitavam cedo e os colegas viam todos televisão à noite.” Nota, ainda, que “havia uma educação ecológica e ambiental; os miúdos levavam as garrafas e os jornais para reciclar, o papel era reciclado”.

“A cultura era muito acessível”, diz Ana Portela, o que é igualmente defendido por João Lourenço. O encenador sublinha, contudo, as condições em que esteve em Berlim-Leste. “Eu era um convidado em condições óptimas, tinha um panorama cultural muito rico”, confessa.

“Os livros eram baratos, comprei muitos”, conta Mário Vieira de Carvalho. “Onde começavam os problemas? Onde era absurdo. Por exemplo, a dificuldade em tirar fotocópias. Na Biblioteca de Berlim oriental, que tinha uma colecção de música excelente, as fotocópias eram limitadas, fazia-se requisição e demorava dias. Em Berlim ocidental, as próprias pessoas tiravam as fotocópias no momento.”

Dinheiro a mais
Mário Vieira de Carvalho nega que houvesse falta de bens e atesta a qualidade dos supermercados: “Nunca senti falta de produtos nem dificuldades de abastecimento. Não era assim nos outros países de Leste. Na Alemanha de Leste, havia os produtos, mas não havia marcas, eram uma espécie de produtos genéricos.” Relata um episódio revelador dos problemas de funcionamento do mercado: “Uma vez cheguei a uma estação de metro e vi um vendedor de morangos. Quis comprar meio quilo, não consegui, só vendia uma caixa inteira. Os produtos que não estavam normalmente disponíveis só se vendiam em grandes quantidades e desapareciam rapidamente. O mesmo acontecia com discos e livros, tínhamos de estar atentos para não esgotar.”

Como o “sistema subsidiava todos os produtos de primeira necessidade” e os preços eram simbólicos – quando os bens não eram mesmo grátis -, “as pessoas acumulavam dinheiro que não podiam gastar, porque depois havia lista de espera para o carro, as férias eram só em países socialistas”, lembra o musicólogo. “Havia sede de consumo e excesso de meios de pagamento, porque não se pagava o que se consumia.”

Também João de Freitas Branco defende que o problema em Berlim era “a variedade da oferta” e reconhece que, mesmo assim, “a situação em Berlim não era a de toda a RDA, havia cidades em que era pior”. Mas defende o sistema então vigente. “Passados estes anos todos, continuo a ter a opinião que sempre tive, e que é muito mais positiva que a opinião dominante sobre o socialismo real”, afirma. “Ali já tinha sido dado um passo civilizacional absolutamente essencial e que se baseava no banimento das desigualdades materiais mais aberrantes, tendo desaparecido a pobreza, essa pobreza que eu conhecia aqui de Portugal.”

Este professor da Faculdade de Letras lembra que “quando se fala de direitos humanos verifica-se que as pessoas reduzem a uma única coisa a liberdade de expressão”, e questiona: “Mas o bife, o concerto, o livro, a escola – não é isto, também, direitos humanos?” Marcando a diferença dos dois sistemas, socialista e capitalista, sublinha: “Quando saí de Portugal havia milhares de crianças sem acesso à escola. Na RDA não havia um único cidadão que não tivesse acesso à escola.” A escolaridade era gratuita e universal e a redistribuição de riqueza era outra, e isso era possível “porque houve uma mudança do regime de propriedade”, o que, argumenta, “horroriza qualquer pessoa que considera o capitalismo o melhor dos mundos”.

Mas, ao elogiar o sistema, Freitas Branco não deixa de frisar o outro lado, o do regime. “Infelizmente, este passo civilizacional em frente coabitava com um outro, que era um passo civilizacional atrás: o Estado policial e a ausência efectiva da liberdade de expressão.” Este investigador, que estava em Berlim faz hoje precisamente 20 anos, conclui: “Na minha opinião, a RDA tinha de acabar, porque um regime onde não há liberdade de expressão tem de acabar. Mas alimentei a esperança de que essa mudança não representasse a anulação do passo civilizacional.”

Nos campos esquecidos

por A-24, em 23.06.11
Depois de Lampedusa, em Itália, o arquipélago de Malta é o destino preferido de centenas de africanos que fogem dos combates na Líbia. Mas aqui, a Europa parece um hangar insalubre onde eles são armazenados, na esperança de obterem um improvável asilo político. Reportagem.

Enclausurados, à chegada, em centro fechados, os exilados que são identificados como "vulneráveis" foram repartidos pelos centros de acolhimento abertos. Um deles está reservado para as famílias. Chama-se Hal Far e fica no terminal de uma linha de autocarros, ao lado de lojas e de casas normais, à beira das pistas e um aeroporto abandonado.É lá que vivem cerca de trinta famílias, à espera de proteção internacional. Quase sempre húmido, o ar, ali, é sufocante no verão e glaciar no inverno. Vindo de Tripoli com a mulher e o filho de dezasseis meses, Dawit, um etíope de 35 anos, faz parte dos moradores de infortúnio do hangar. "Agradeço às autoridades maltesas que salvaram o meu barco do naufrágio e que nos acolhem", diz ele, em jeito de preâmbulo. "Mas é preciso dizer que este lugar é terrível, verdadeiramente terrível. Somos somalis, etíopes, eritreus e alguns ganeses e argelinos. Aqui só há famílias com crianças. O mais novo tem um mês e meio. E também há uma mulher que deu à luz à chegada. Tiraram-na do centro de detenção e quando o bebé nasceu, voltaram a trazê-los para cá.""Estamos todos esgotados", continua ele, "E onde é que nos metem? Neste hangar, onde tudo é sujo e perigoso. Temos falta de luz, há apenas dois néones para isto tudo e nada que nos ilumine nas tendas. O pavimento está oleoso, a drenagem de água está avariada, os ratos correm por todo o lado. Tudo isto é tóxico. Os bebés metem os dedos na boca, nos olhos, têm infeções, estão doentes. Têm que ir constantemente ao hospital. Vimos um médico italiano chorar ao olhar para eles. Da última vez que tive de ir à farmácia comprar medicamentos para o meu filho, paguei 39 euros. Isto não pode continuar. O verão está a chegar. Com o calor, isto vai ser insuportável. Estamos reconhecidos, mas este lugar não foi feito para seres humanos."

Livro "3096 dias" - Sobre Natacha Kampush

por A-24, em 23.06.11
A austríaca mantida em cativeiro durante oito anos era obrigada a rapar o cabelo e a trabalhar seminua como escrava doméstica, era agredida pelo raptor 200 vezes por semana, presa à cama com algemas plásticas sempre que ele queria partilhar a cama com ela e era forçada a tratá-lo por "Mestre" ou "Meu senhor". Estas são algumas das revelações feitas por Natascha Kampusch, hoje com 22 anos, na sua primeira autobiografia - o livro "3096 dias" vai ser lançado na quarta-feira, mas esta segunda alguns excertos começaram a ser publicados no "The Daily Mail"
Kampusch  - que tinha 10 anos quando foi sequestrada por Wolfgang Priklopil - confessa pela primeira vez que tentou várias vezes o suicídio por ser mantida presa numa cela "hermeticamente fechada": não tinha janelas, apenas uma cama, uma sanita e um lavatório. Nessa mesma cela chegou, depois de alguns meses presa, a pedir ao sequestrador que a abraçasse. "Eu era apenas uma criança e precisava do consolo do toque humano." Na primeira noite do sequestro, recorda-se mesmo de lhe ter pedido para a deitar na cama e contar-lhe uma história para adormecer. "Tudo para conservar a noção de normalidade", conta a austríaca. Por outro lado, Kampusch lembra que Priklopil dizia que ela lhe pertencia e não se chamava mais Natascha, ao mesmo tempo que a obrigava a tratá-lo por "Mestre" ou "Meu Senhor". Da mesma forma que a ameaçava: " Se não te comportare, vou ter de te amarrar."O sequestrador terá feito pressão para que Natascha Kampusch acreditasse na sua história de sequestro: "Ele disse-me que os meus pais se recusaram a pagar o resgate. Dizia-me: os teus pais não te amam, não te querem de volta, estão contentes por se verem livres de ti."Natascha Kampusch conseguiu escapar em Agosto de 2006, quando tinha 18 anos, e hoje vive em Viena de Áustria. Priklopil, engenheiro de 44 anos, suicidou-se mal percebeu que a austríaca teria fugido. Não foi o único caso do género a chocar a Áustria. Em 2008 foi descoberta a história de Josef Fritzl, que manteve a filha Elisabeth, de quem teve sete filhos, em cativeiro durante 24 anos.

Sobre a queda do muro de Berlim

por A-24, em 23.06.11

Não sei quem tu és e tenho falado contigo. Mas não fales com a minha mulher sobre as coisas que te tenho dito sobre este país, porque ela é do partido." Ainda hoje, passados mais de 20 anos, a frase causa estranheza ao encenador de teatro João Lourenço, que sorri e confessa: "Nunca mais soube dele, esta conversa tem-me acompanhado todos estes anos e só esta frase dava uma peça." Trata-se de um cenógrafo com quem João Lourenço trabalhou e conviveu no Berliner Ensemble, companhia de teatro fundada em 1951 por Bertolt Brecht, em Berlim-Leste. As conversas entre os dois versavam a situação e o sistema da República Democrática Alemã (RDA), "sobre a liberdade, a educação, o que era a verdadeira esquerda". Um dia, dando prova de confiança, o cenógrafo convidou-o para jantar com a sua família. Foi no carro, quando se dirigiam para casa do cenógrafo, que este disparou a frase que até hoje marca o encenador.

Daniel Rocha

O jornalista Martins Morim segurando dois Trabant em miniatura
João Lourenço viveu e estudou em Berlim-Leste cerca de um ano, entre o final de 1979 e 1980, mas muitos outros portugueses tiveram o privilégio e a experiência de viver num país dividido em dois por um muro, que simbolicamente separava dois regimes políticos e dois sistemas de organização social. Tal como ele, também o musicólogo Mário Vieira de Carvalho, o filósofo João Maria de Freitas Branco, o jornalista Martins Morim, a professora Ana Portela e o treinador de futebol Artur Jorge estudaram ou trabalharam na metade comunista da Alemanha: os quatro primeiros em Berlim-Leste e os dois últimos em Leipzig.

Um anseio de liberdade
O peso do regime ditatorial comunista e a ausência de liberdade, que a frase citada por João Lourenço ainda hoje ecoa, é algo que marcou estes seis antigos residentes na ex-RDA. E que lhes provoca uma dualidade de sentimentos, já que a lembrança da Alemanha de Leste que conheceram também revela admiração pelo que de positivo consideram que aquele sistema possuía.
"Tinha de se pôr fim à RDA e eu tornei-me muito rapidamente um opositor do regime, sendo um admirador do sistema, que, pela primeira vez, me permitiu uma vivência na ausência das desigualdades sociais", explica João Maria de Freitas Branco, filósofo e investigador universitário que viveu em Berlim com a mulher e dois filhos entre 1984 e 1991 - "assisti mesmo ao fim" -, onde se doutorou na Universidade de Humboldt, tendo trabalhado ainda como correspondente do Jornal de Letras.
Quando o fim chegou e o Muro se desfez como se fosse de areia, a maioria dos entrevistados pela Pública viram-no à distância. Artur Jorge foi apanhado desprevenido. Mas reconhece que "a RDA nasceu de uma maneira estranha", pelo que "muitas pessoas daquele país não ficaram tristes com o fim".
Também João Lourenço não escamoteia que se percebia "historicamente a necessidade do Muro como nascera", mas não esconde que, "no início dos anos 80, via-se que havia muita gente descontente com o país, via-se nas pessoas um anseio de liberdade". E explica: "Depois de algum tempo na RDA, percebia-se que havia outra esquerda, que havia pessoas de esquerda que lutavam e eram contra o sistema."
Martins Morim frisa que era visível entre os alemães a contestação, sobretudo entre "a juventude mobilizada pela Igreja" e "na geração do bem-estar que começa a dizer "não" - a geração que tem hoje 40 anos".
Ana Portela apercebeu-se de que a situação "era absolutamente insustentável". Segundo ela, o movimento do Solidariedade na Polónia causa um impacto grande nos meios intelectuais, embora "oficialmente não existisse". E lembra: "Não sabíamos como ia terminar. Discutimos muito, com portugueses e alemães. Sobretudo os intelectuais eram muito críticos. Mas não havia sinais de que ia abrir."
Dois mundos
O clima de ditadura e de opressão estava simbolizado no Muro de Berlim, começado a construir em 13 de Agosto de 1961 para materializar, na então antiga capital da Alemanha, a divisão do país feita entre os vencedores da II Guerra Mundial.
Freitas Branco conta que "tinha uma recomendação de fronteira", o que lhe dava "um estatuto diplomático, que era importantíssimo numa cidade como Berlim", pois permitia circular entre o lado oriental e o lado ocidental, sem que o carro fosse sequer revistado, já que "tinha matrícula diplomática". "Terei sido dos portugueses que mais passaram o Checkpoint Charlie", diz em tom de graça.
Uma forma de poder circular em liberdade que aprendeu, confessa, com Mário Vieira de Carvalho, que conhecia de Lisboa e com quem se cruzou em Berlim no mesmo edifício e na mesma faculdade durante alguns meses. O musicólogo e correspondente do Diário de Lisboa beneficiou deste estatuto para circular nos dois lados do Muro e usou-o "praticamente todos os dias", sobretudo para ir à biblioteca no lado ocidental e à ópera. A liberdade que o estatuto de leitora na Universidade de Leipzig dava é ainda salientado por Ana Portela, que até decidiu ir a Berlim-Leste comprar um carro.
Era precisamente a noção do que era andar em liberdade e poder passar o Muro que dava a Freitas Branco a consciência exacta da situação vivida pela generalidade da população de Berlim: a separação absoluta. "A cortina de ferro existia, de facto. Para quem se deslocava a pé, o ponto de passagem de fronteira era a estação de comboios central, a Friedrichstrasse", diz este professor da Faculdade de Letras de Lisboa. "Numa mesma estação de metro e comboios, havia dois mundos completamente distintos, o mundo do socialismo e o mundo do capitalismo. As pessoas passavam a um metro umas das outras sem se poderem ver nem falar. A divisória era uma cortina de ferro que cobria parte da estação. A cortina de ferro de que Churchill falava estava ali, materializada. É algo que só vivido."
Mas não era só no muro que rasgava a cidade que o peso da ditadura se sentia. João Lourenço - "Eu não fui pelo PCP, nunca fui do PCP" -, que esteve em Berlim a estagiar um ano, a convite do director da Casa de Brecht, Werner Hesht, e do director do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth, afirma: "Senti uma segurança como nunca senti em cidade nenhuma do mundo. Os soldados nas esquinas, nas casas de vidro, davam segurança. Havia uma segurança dada pelo regime." Mas não esconde que essa segurança tinha um lado assustador: "Um dia acordei com o barulho e com o chão a tremer. Fui à janela, eram os tanques com mísseis a passar. Durante uns segundos pensei: é a guerra. Eram os preparativos para o desfile do 1.º de Maio."

O mundo à parte do teatro
Sobre o mundo em que se movia, João Lourenço garante que "não sentia o peso da censura". "Os teatros tinham um director que era actor ou encenador, e depois tinham um membro do partido com formação em ciências teatrais", explica.
Da mesma opinião é Mário Vieira de Carvalho, que viveu em Berlim entre Setembro de 1979 e Dezembro de 1984, doutorando-se com uma bolsa da Gulbenkian em Musicologia, na Universidade de Humboldt.
A tese foi sobre o São Carlos entre os séculos XVIII e XX, e a investigação teve como laboratório vivo as duas óperas na cidade dividida de Berlim, uma de cada lado.
Em Dresden assistiu a uma encenação da ópera de Beethoven, Fidélio, em que "o cenário era um muro e toda a gente percebia que era uma alusão ao Muro e esteve em cartaz nos anos 80". O ex-secretário de Estado da Cultura afirma que o peso não era, pelo menos neste domínio da cultura, o da ditadura feroz. Havia, sim, o peso da burocracia que implodia o sistema.
"Todas as pessoas com quem contactei, fossem do partido ou não, tinham uma posição extremamente crítica em relação à burocracia e à incapacidade do sistema", afirma Mário Vieira de Carvalho, explicando que "a falta de liberdade de expressão não deixava reflectir a realidade e o criticismo não passava". Pormenoriza: "Nas reuniões debatiam e criticavam, mas não passava para cima. A corrente não era de baixo para cima, era de cima para baixo." Uma atitude de comando que era "a expressão de uma falsa consciência sobre a realidade" e também, segundo Vieira de Carvalho, "profundamente antimarxista".
Boas recordações
Os seis portugueses que viveram na ex-RDA são unânimes em elogiar os benefícios proporcionados pelo socialismo real. É desse bem-estar e dessa qualidade de vida que sentem nostalgia.
"Vivi lá, gostei de viver e vivi bem. Às vezes digo na brincadeira "os tempos em que fui rico", no sentido de viver sem preocupações materiais", diz o jornalista Martins Morim, o ex-residente na RDA ouvido pela Pública que mais anos aí permaneceu, de Outubro de 1975 a Outubro de 1984. A estudar administração de empresas e a trabalhar na rádio universitária em Lisboa, escolheu Berlim pela utilidade que a língua alemã poderia ter depois e foi trabalhar para a secção portuguesa da Rádio Berlim Internacional, tendo sido correspondente de O Diário. Em Berlim-Leste, estuda desporto, está ligado à organização de um festival internacional de música de intervenção. Toca numa banda, o que lhe permite viajar muito e conhecer Renata, com quem casou e com quem regressou a Lisboa, onde ainda hoje vivem.
"Apanhei a Alemanha na fase do welfare state [Estado-providência] nos países da social-democracia e o bem-estar da social-democracia fazia com que, do outro lado, se vivesse melhor", explica Martins Morim. "Não renego nada do que escrevi e vivi, tinha 24 anos quando fui para lá, havia em mim um lado de sonho e aventura."
Explicando o que era o bem-estar proporcionado pelo sistema, Martins Morim relata: "Não pagávamos renda quase, era um preço simbólico. A nossa filha fez a escola, ninguém comprava livros, ensinava-se a respeitar os livros e no fim entregavam-se de novo à escola. A escola era gratuita, os transportes eram baratos, ir ao teatro era barato. Não se ganhava muito, mas ir à ópera era acessível." Lembra: "As pessoas viviam bem, tinham dinheiro, tinham é que esperar por comprar carro." Salienta as peculiaridades do sistema socialista alemão de Leste em relação ao resto dos países socialistas: "Quando vim para Portugal, vivíamos numa zona de Berlim que tinha lojas privadas e no campo havia direito de propriedade. Por outro lado, a situação religiosa era respeitada."

Este bem-estar que Martins Morim salienta em relação a Berlim-Leste é confirmado pelos portugueses que viveram em Leipzig. É o caso do treinador de futebol Artur Jorge, que aí esteve em 1978 e 1979, para estudar desporto. Embora Artur Jorge não fosse do PCP, Álvaro Cunhal fez diligências pessoais junto do presidente Honecker, conta Domingos Lopes, irmão de Martins Morim, que assumiu, no departamento internacional do PCP, a responsabilidade pela ligação do partido com os portugueses a estudar e a viver na RDA.
"Não fazia ideia de que Cunhal tinha interferido, eu não tinha ligação com o PCP", diz Artur Jorge. "Sei que havia hipótese de ir para a Jugoslávia, mas fui para Leipzig por conselho de amigos, até porque lá era a melhor escola." Experiência que proporcionou um relançamento da sua actividade como desportista profissional, pois "tinha acabado de jogar, tinha partido uma perna, estava na direcção-geral de desporto".
O treinador destaca "o país tranquilo e sem muito barulho". E afirma que "foi uma experiência positiva: o curso, as pessoas, os professores". Conclui: "Foi uma coisa que passou rápido, a lembrança que tenho é de situações agradáveis. Havia muita gente do mundo inteiro a estudar em Leipzig. Era uma terra com as melhores universidades de todo o mundo."

O problema das fotocópias
Positivo é também o balanço que a professora Ana Portela faz da sua experiência como primeira leitora de português na Universidade de Leipzig, entre 1976 e 1981. "Tinha uma filha no pré-escolar, tinha-me divorciado do Luís Sá [dirigente do PCP, falecido em 1999] e vi um anúncio na Faculdade de Letras a pedir um leitor de Português", conta. Fez um contrato com direito a habitação e a educar a filha e com um ordenado em divisas estrangeiras. "Só depois percebi que eles filtravam os candidatos através do PCP. Eu não era [do partido], mas funcionava junto a pessoas que eram."
Com uma visão crítica do regime da RDA, Ana Portela salienta que "Leipzig era a zona mais poluída da Europa", mas, por outro lado, "era um centro estudantil mais importante que Berlim, tinham estudantes de todo o mundo enviados pelos partidos e pelas organizações comunistas". Aí, voltou a casar com um estudante chileno e teve duas gémeas em Leipzig, o que lhe deu direito a um ano de licença com ordenado e assistência médica.
Mas o que esta professora destaca como melhor é o sistema de ensino: "A minha filha tinha natação duas vezes por semana. Um dia disse-lhe para não ir à escola e a professora veio a casa. Ela tinha muitas actividades. Tinha uma escola separada de música, fez quatro anos de piano. Além das aulas, os estudantes mais velhos vinham a casa ensinar os mais novos a praticar com os instrumentos."
Falando com a experiência de uma vida dedicada ao ensino em Portugal, Ana Portela diz: "Conheço o ensino de cá e vi o de lá, não tem comparação. As minhas filhas ainda não tinham dois anos e já se vestiam e comiam sozinhas. Quando viemos estranharam, porque se deitavam cedo e os colegas viam todos televisão à noite." Nota, ainda, que "havia uma educação ecológica e ambiental; os miúdos levavam as garrafas e os jornais para reciclar, o papel era reciclado".
"A cultura era muito acessível", diz Ana Portela, o que é igualmente defendido por João Lourenço. O encenador sublinha, contudo, as condições em que esteve em Berlim-Leste. "Eu era um convidado em condições óptimas, tinha um panorama cultural muito rico", confessa.
"Os livros eram baratos, comprei muitos", conta Mário Vieira de Carvalho. "Onde começavam os problemas? Onde era absurdo. Por exemplo, a dificuldade em tirar fotocópias. Na Biblioteca de Berlim oriental, que tinha uma colecção de música excelente, as fotocópias eram limitadas, fazia-se requisição e demorava dias. Em Berlim ocidental, as próprias pessoas tiravam as fotocópias no momento."

Dinheiro a mais
Mário Vieira de Carvalho nega que houvesse falta de bens e atesta a qualidade dos supermercados: "Nunca senti falta de produtos nem dificuldades de abastecimento. Não era assim nos outros países de Leste. Na Alemanha de Leste, havia os produtos, mas não havia marcas, eram uma espécie de produtos genéricos." Relata um episódio revelador dos problemas de funcionamento do mercado: "Uma vez cheguei a uma estação de metro e vi um vendedor de morangos. Quis comprar meio quilo, não consegui, só vendia uma caixa inteira. Os produtos que não estavam normalmente disponíveis só se vendiam em grandes quantidades e desapareciam rapidamente. O mesmo acontecia com discos e livros, tínhamos de estar atentos para não esgotar."
Como o "sistema subsidiava todos os produtos de primeira necessidade" e os preços eram simbólicos - quando os bens não eram mesmo grátis -, "as pessoas acumulavam dinheiro que não podiam gastar, porque depois havia lista de espera para o carro, as férias eram só em países socialistas", lembra o musicólogo. "Havia sede de consumo e excesso de meios de pagamento, porque não se pagava o que se consumia."
Também João de Freitas Branco defende que o problema em Berlim era "a variedade da oferta" e reconhece que, mesmo assim, "a situação em Berlim não era a de toda a RDA, havia cidades em que era pior". Mas defende o sistema então vigente. "Passados estes anos todos, continuo a ter a opinião que sempre tive, e que é muito mais positiva que a opinião dominante sobre o socialismo real", afirma. "Ali já tinha sido dado um passo civilizacional absolutamente essencial e que se baseava no banimento das desigualdades materiais mais aberrantes, tendo desaparecido a pobreza, essa pobreza que eu conhecia aqui de Portugal."
Este professor da Faculdade de Letras lembra que "quando se fala de direitos humanos verifica-se que as pessoas reduzem a uma única coisa a liberdade de expressão", e questiona: "Mas o bife, o concerto, o livro, a escola - não é isto, também, direitos humanos?" Marcando a diferença dos dois sistemas, socialista e capitalista, sublinha: "Quando saí de Portugal havia milhares de crianças sem acesso à escola. Na RDA não havia um único cidadão que não tivesse acesso à escola." A escolaridade era gratuita e universal e a redistribuição de riqueza era outra, e isso era possível "porque houve uma mudança do regime de propriedade", o que, argumenta, "horroriza qualquer pessoa que considera o capitalismo o melhor dos mundos".
Mas, ao elogiar o sistema, Freitas Branco não deixa de frisar o outro lado, o do regime. "Infelizmente, este passo civilizacional em frente coabitava com um outro, que era um passo civilizacional atrás: o Estado policial e a ausência efectiva da liberdade de expressão." Este investigador, que estava em Berlim faz hoje precisamente 20 anos, conclui: "Na minha opinião, a RDA tinha de acabar, porque um regime onde não há liberdade de expressão tem de acabar. Mas alimentei a esperança de que essa mudança não representasse a anulação do passo civilizacional."

A Grécia levou os "direitos adquiridos" até à demência

por A-24, em 23.06.11
Nas TVs portuguesas, a situação na Grécia é contada através da seguinte narrativa: eis um pobre povo periférico que está a sofrer as agruras de uma crise internacional, eis um povo do sul da Europa a sofrer às mãos da pérfida Merkel. Ora, já é tempo de sair desta superficialidade. Já é tempo de perceber que os gregos têm muitas culpas no cartório. Já é tempo de escavar a sério na situação grega. E, assim que começamos essa investigação, a conclusão é invariavelmente a mesma: os gregos não foram sérios, não estão a ser sérios. Os gregos levaram a lógica dos "direitos adquiridos" até à demência, até à falta de vergonha.
Os exemplos desta falta de seriedade são imensos. Em 1930, um lago na Grécia secou, mas, o Estado Social grego acha que tem de existir um Instituto para a Protecção do Lago Kopais - o nome do tal lago que secou em 1930, mas que em 2011 ainda tem dezenas de funcionários dedicados à sua conservação. Calculo que estes funcionários devem estar a rua a gritar "abaixo o fascismo". Mas há mais. Sabiam que na Grécia as filhas solteiras dos funcionários públicos têm direito a uma pensão vitalícia após a morte do mãe/pai-funcionário-público? Não é genial? Na Grécia, os direitos adquiridos adquirem-se por, vá, osmose familiar. Na Grécia, X e Y recebem 1000 euros mensais - para toda a vida - só pelo facto de serem filhas de funcionários públicos falecidos. Há 40 mil mulheres neste registo. E, depois de um ano de caos, o governo grego ainda não acabou com isto completamente. Calculo que estas meninas devem ir para a rua fazer manifs. Coitadinhas.
Querem mais? Num hospital público, existe um jardim com quatro (4) arbustos. Ora, para cuidar desses arbustos o hospital contratou quarenta e cinco (45) jardineiros. Num acto de gestão mui social (para com o fornecedor), os hospitais gregos compram pace-makers quatrocentas vezes (400) mais caros do que aqueles que são adquiridos no SNS britânico. E, depois, claro, existem seiscentas (600) profissões que podem pedir a reforma aos 50 (mulheres) e aos 55 (homens). Porquê? Porque são profissões de alto desgaste. Dentro deste rol de malta que trabalha como mineiros, encontramos cabeleireiras e apresentadores de TV. Sim, faz todo o sentido: cortar cabelo é o mesmo que estar nas minas da Panasqueira.

Henrique Raposo (www.expresso.pt)

Perseguições policiais fizeram 19 mortos desde 2004

por A-24, em 23.06.11
Desde 2004 até este mês houve 19 mortes causadas por perseguições policiais. Só este ano já houve três. Motivo suficiente para o inspector- -geral da Administração Interna quebrar o silêncio e alertar que estão a acontecer "demasiadas mortes" . Varges Gomes manifesta a sua "profunda preocupação" e sublinha que se "corre o risco" de se "tornar uma prática".

Desde 2004 morreram 19 pessoas em perseguições policiais. Segundo dados da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) a que o DN teve acesso, foram abertos 15 inquéritos relativos a 16 mortes (um dos processos tem duas) entre 2004 e 2008, das quais oito ainda não foram decididas pelos tribunais. Em quatro dos sete casos de mortes de suspeitos, a decisão do tribunal foi de condenação do elemento da força de segurança. Três foram absolvidos. A tendência judicial é pela punição dos polícias. O Inspector-Geral da Administração Interna quebrou o silêncio e disse, ao DN, que há "demasiadas mortes" em perseguições policiais, situação que considera "preocupante."
As decisões dos tribunais são diferentes nos casos de agressões ou ferimentos com armas de fogo. Na maioria das situações os juízes têm concordado com a actuação policial. Num total de 63 inquéritos abertos, dos 50 que já chegaram à barra do tribunal, houve 46 arquivamentos e apenas cinco punições (ver quadro).
Com a morte esta semana de um dos assaltantes do Hospital Privado do Algarve, em Alvor, que se despistou em fuga à GNR, elevam-se para três os mortos em perseguições só este ano. Ontem a PJ feriu a tiro um dos assaltantes de uma ourivesaria (ver pág.20).
O Inspector-Geral da Administração Interna, Varges Gomes, entende que a situação "é preocupante" e, pela primeira vez desde que tomou posse, há seis meses, quebra o silêncio: "Há demasiadas mortes. São sempre demais. Corre-se o risco destas actuações se tornarem uma prática e não se podem considerar normais estes casos. Têm que ser sempre excepcionalíssimos".
O juiz-desembargador vê "com apreensão" algumas perseguições. "Há casos que não se justificam", defende, lembrando as palavras do seu antecessor, Clemente Lima. "Ninguém pode ser condenado à pena de morte por não parar num sinal vermelho ou numa operação stop", dizia o anterior "polícia dos polícias", a propósito de situações dessa natureza que tinham acontecido na altura. Varges Gomes subscreve e acrescenta: "Diria mais, ninguém pode ser punido com pena de morte por razão nenhuma".
O inspector-geral compreende que "há situações inevitáveis: vivemos numa sociedade de risco e isto potencia estas reacções por parte das forças de segurança, mas a vida é um direito fundamental, e é preciso fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que as mortes, ou ferimentos, nestes casos, sejam apenas em legítima defesa, como mandam as regras de actuação policial".

200 anos dos Blandy da Madeira

por A-24, em 23.06.11
Entidades, empresários e amigos associaram-se à celebração

«"Os Blandy da Madeira sentem-se tão madeirenses como quaisquer outros". A frase, proferida ontem pelo presidente do Grupo Blandy, Michael Blandy, na cerimónia de comemoração dos 200 anos da presença na Madeira, realizada no Hotel Cliff Bay, alude ao título do livro que retrata a família e sintetiza, no fundo, o espírito que tem sido assumido nesta ligação com a Região e com as suas gentes.
Uma ligação que, como sublinhou em continuidade, tem sido marcada por um empreendedorismo que tem resultado em progresso e criação de riqueza, naturalmente também para a própria Madeira.
Num curto historial sobre aquilo que tem sido os 200 anos do Grupo Blandy na ilha, Michael Blandy fez questão de recordar "a visão" do seu antepassado John Blandy, que em 1811 se radicou definitivamente na Madeira, "acreditando nas potencialidades da ilha e das suas gentes para o desenvolvimento e a criação de riqueza e progresso".
O presidente do Grupo destacou, ainda, o papel assumido pelos sucessores de John Blandy, que ao longo destes dois séculos souberam manter "esse espírito empresarial e aumentaram os negócios em diversos ramos, aqui na ilha e também noutras regiões do mundo".
Falando para centenas de convidados, entre entidades regionais, gente de vários quadrantes políticos e figuras gradas do mundo empresarial madeirense, Michael Blandy lembrou, nesse contexto, um estudo recente que indicava que 98 por cento das empresas dos Estados Unidos são familiares, número que é de 75 por cento no Reino Unido. Deste total, acrescentou, apenas 30 por cento das empresas chegam a uma segunda geração e, destas, somente 13 por cento atingem a terceira geração. "Desconheço as estatísticas de Portugal, mas já temos a sétima geração a trabalhar no Grupo", sublinhou.
De resto, acrescentou o presidente do Grupo Blandy, esse espírito que tem sido transmitido de geração para geração explica grande parte do segredo do sucesso atingido nestes 200 anos, mesmo com todas as dificuldades que lhes vão sendo colocadas na Madeira. Neste particular, Michael Blandy deixou claro que a filosofia mantém-se igual, até porque, vinca, "o que nós sabemos é trabalhar".
O exemplo mais recente dessa confiança reforçada que o Grupo mantém na Madeira é, segundo Michael Blandy, a aquisição da maioria do capital da 'Madeira Wine'. "Porventura podíamos ter investido noutros locais do mundo, até com mais proveito, mas esta foi a nossa posição", sublinhou.
O empresário destacou ainda a importância que as parcerias, efectuadas com empresas associadas, têm assumido para o sucesso do Grupo, deixando uma palavra especial para "os amigos leais" que estiveram sempre ao lado da família.
As palavras finais, em forma de brinde, foram dirigidas à população madeirense e aos seus empresários, no sentido de que se viva "em paz social" , podendo deste modo se encarar "o futuro desta terra com confiança".
Michael blandy e a ausência do GR: "Demonstra que a independência do pensamento está a crescer na ilha"
A ausência de todos os membros do Governo Regional na comemoração dos 200 anos do Grupo Blandy na Madeira mereceu um comentário da parte do presidente do grupo, Michael Blandy.
"A única coisa que quero dizer sobre a ausência dos membros do Governo é que que foram todos convidados. E afortunadamente a vida é livre, não quiseram estar presentes, é uma decisão deles", vincou Michael Blandy.
O presidente do Grupo Blandy considera que tomada de posição é uma demonstração de que "cada vez mais, a independência do pensamento está a crescer na ilha". E acrescentou: "Nós temos imensos amigos cá, não faltam amigos, temos muita gente do PSD e, portanto, qual é o problema? Não há nenhum, são pessoas que decidiram por si próprias e desejo-lhes as maiores felicidades", sublinhou.
Michael Blandy deixou claro que não se sente magoado com esta ausência do presidente do Governo Regional e de todos os seus secretários. "Não me sinto minimamente magoado. Eu tenho a grande sorte de não encarar nada destas coisas com seriedade. Não vale a pena", finalizou o presidente do Grupo Blandy.» 


Depois de 48 anos, Santos volta a conquistar a Libertadores

por A-24, em 22.06.11
O Santos derrotou o Peñarol por 2 a 1, na noite desta quarta-feira, e conquistou o tricampeonato da Libertadores e acabou com um jejum de 48 anos sem ganhar o principal torneio intercontinental. O título foi ainda inédito para o técnico Muricy Ramalho.
No entanto, após o apito final, antes da festa santista, uma briga entre os jogadores aconteceu no campo, e os policiais tiveram muito trabalho para separá-los.
Com o resultado, o Santos se classifica para disputar o Mundial Interclubes no Japão juntamente com o Barcelona, atual campeão da Copa dos Campeões.



























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