100 anos da República
por A-24, em 05.10.10
A ingovernabilidade de Portugal na primeira década do século XXRetrato da EuropaPor Maria José Oliveira
Na primeira década do século XX o regime monárquico estava moribundo. A crise política e institucional agudizou-se com escândalos e com a bancarrota do Estado. O fim da monarquia afigurou-se inevitável. Mas a republicanização já começara há muitas décadas
"A mudança do regime em 1910 aconteceu, na verdade, em 1834", defende Rui Ramos
Pouco mais de um mês após um dos episódios mais trágicos da história nacional do século XX - os assassinatos de Dom Carlos e do príncipe Luís Filipe -, Ramalho Ortigão publicou na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro um texto que retratava, segundo o autor, a decadência política e social que se arrastava pelo país há muitos anos.
O diagnóstico de Ortigão, que situava o regicídio no rol de consequências de um Portugal moribundo, começava por caricaturizar o período do rotativismo liberal, para, de seguida, traduzir aquilo que denominava como "decomposição da sociedade". "Nenhum dos dois partidos [Progressista e Regenerador] a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos", escreveu em Dom Carlos - o Martirizado (Ática).
Sobre a sociedade portuguesa, "lentamente, surdamente, progressivamente contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política", o escritor foi impiedoso: "A indisciplina geral, o progressivo rebaixamento dos carácteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições, o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo."
A ilustração, desgostosa e, ao mesmo tempo, indignada, é feita por alguém insuspeito. Porque Ramalho Ortigão não prestou tributo à República, como sublinhou numa carta dirigida a Teófilo Braga poucos dias depois da revolução republicana (5 de Outubro de 1910). E, recusando engrossar "o abjecto número de percevejos" que estavam a "cobrir o leito da governação", pediu demissão de bibliotecário da Biblioteca Real (tinha sido nomeado por D. Carlos) e exilou-se em Paris.
A leitura de Ortigão sobre o estado do país era, porém, consensual. Recolhia o mesmo entendimento por parte do rei, dos políticos monárquicos e dos republicanos. Os sintomas da crise que se abateu sobre a monarquia constitucional agudizaram-se a partir de 1900 (e culminaram, como se sabe, com a revolta armada de 5 de Outubro de 1910, que pôs fim a um regime multissecular) e foi precisamente na primeira década do século XX que os republicanos, sobretudo aqueles que estavam afectos ao Partido Republicano Português (PRP), desferiram ataques constantes à monarquia - sobretudo através da imprensa, das intervenções na Câmara dos Deputados e das tentativas de "incendiar" as ruas das grandes cidades com fortes acções de contestação.
Debelar a crise política
À crise do constitucionalismo monárquico liberal somaram-se o descontentamento social, a sucessão de escândalos (casos de corrupção, evasão fiscal e clientelismos que não podiam ter sido mais propícios à propaganda republicana), as crises económicas e financeiras que entorpeceram a acção governativa dos governos, a bancarrota do Estado.
A palavra ingovernabilidade soou alto ao longo do decénio. Assim como se tornou cada vez mais audível o questionamento sobre a importância da monarquia. Em 1906, D. Carlos tentou insuflar algum oxigénio no regime: deu por findo o rotativismo liberal e convidou João Franco, dissidente do Partido Regenerador e fundador do Partido Regenerador Liberal, a formar Governo. "Foi uma tentativa de restaurar os partidos. Além disso, Franco tinha a reputação de ser um homem honesto, não recaíam sobre ele suspeitas de corrupção. E tinha boas relações com os republicanos", nota o historiador Rui Ramos.
Esta iniciativa de recuperar a credibilidade das instituições constituiu uma das três fases fundamentais dos anos 1900-1910. José Miguel Sardica, historiador e autor de A Dupla Face do Franquismo na Crise da Monarquia Portuguesa (Cosmos), caracteriza da seguinte forma os três períodos: de 1900 a 1906 imperou o rotativismo, com os partidos Regenerador e Progressista a revesarem-se no poder; o franquismo governou entre Maio de 1906 e Fevereiro de 1908 (marcado pela intentona republicana de 28 de Janeiro de 1908 e pelo regicídio); e de Fevereiro de 1908 a Outubro de 1910 o reinado de D. Manuel II deu continuidade à instabilidade política, com a subida ao poder de seis executivos.
O confronto entre a anunciada "República ordeira" e uma monarquia decadente e submersa em escândalos foi beneficiado pelo ambiente de crise política que, segundo Joaquim Romero Magalhães, não sofreu atenuantes com a nomeação de João Franco. "Num regime de monarquia constitucional o rei deve ter um papel moderador, não deve estar implicado em qualquer partido. Poder-se-á dizer que o regime constitucional monárquico não foi bem interpretado em Portugal", afirma o historiador e autor do recentíssimo Vem aí a República. 1906-1910 (Almedina).
A decomposição do sistema traduz também uma crise de cultura política, acrescenta Maria Alice Samara, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa e especialista na Primeira República. "Tal como julgavam os republicanos, assistiu-se a um abastardamento do regime liberal. Os homens que estavam no Governo não representavam o povo, eram criaturas do rei. O ambiente de crise permite aos republicanos a apresentação de uma resposta nova, de uma regeneração, que é também feita com outras sensibilidades políticas", explica.
"Uma República com rei"
As características oligárquicas do rotativismo parlamentar, como aponta Fernando Rosas em História da Primeira República (Tinta da China), e o "crescente impasse das instituições" contribuem para empolamento, operado pelos republicanos, do conjunto de escândalos que marcaram a década. "Estes casos são uma espécie de bitola da degenerescência da situação", diz Luís Farinha, historiador e investigador do IHC. "Há escândalos de finais do século XIX que são resgatados porque o momento é propício. E outros, como o caso dos adiantamentos [ver texto ao lado], que era comum no século anterior, são agora alvo da contestação dos deputados republicanos", acrescenta.
Mas a oposição republicana também ganhou terreno na divisão que se acentuava entre os monárquicos, traduzida nas cisões partidárias, nota Alice Samara.
O historiador Rui Ramos entende, porém, que o regime tinha características republicanas - "dentro e fora o país era visto como uma República com rei" -, justificando assim a ausência da questão da defesa da monarquia. "A classe política não era monárquica, era liberal. E acreditava que, perante uma eventual mudança de regime, continuaria a governar. Por isso, desprezavam os republicanos. E não os consideravam suficientemente fortes e organizados", explica.
A incapacidade de formar um Governo estável (notória entre 1900 e 1906) sofreu apenas um intervalo durante o Executivo de João Franco. Mas o regicídio, que, segundo Ramos, "dessacralizou a própria monarquia", prolongou a instabilidade governativa - D. Manuel II, muito influenciado pela mãe, a rainha D. Amélia, "chamou para o poder os inimigos de D. Carlos" - e precipitou o fim inevitável do regime.
Em Outubro de 1910 as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano eram as excepções.1910
Em Outubro de 1910, as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano? eram as excepções.
Na primeira década do século XX o regime monárquico estava moribundo. A crise política e institucional agudizou-se com escândalos e com a bancarrota do Estado. O fim da monarquia afigurou-se inevitável. Mas a republicanização já começara há muitas décadas
"A mudança do regime em 1910 aconteceu, na verdade, em 1834", defende Rui Ramos
Pouco mais de um mês após um dos episódios mais trágicos da história nacional do século XX - os assassinatos de Dom Carlos e do príncipe Luís Filipe -, Ramalho Ortigão publicou na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro um texto que retratava, segundo o autor, a decadência política e social que se arrastava pelo país há muitos anos.
O diagnóstico de Ortigão, que situava o regicídio no rol de consequências de um Portugal moribundo, começava por caricaturizar o período do rotativismo liberal, para, de seguida, traduzir aquilo que denominava como "decomposição da sociedade". "Nenhum dos dois partidos [Progressista e Regenerador] a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos", escreveu em Dom Carlos - o Martirizado (Ática).
Sobre a sociedade portuguesa, "lentamente, surdamente, progressivamente contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política", o escritor foi impiedoso: "A indisciplina geral, o progressivo rebaixamento dos carácteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições, o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo."
A ilustração, desgostosa e, ao mesmo tempo, indignada, é feita por alguém insuspeito. Porque Ramalho Ortigão não prestou tributo à República, como sublinhou numa carta dirigida a Teófilo Braga poucos dias depois da revolução republicana (5 de Outubro de 1910). E, recusando engrossar "o abjecto número de percevejos" que estavam a "cobrir o leito da governação", pediu demissão de bibliotecário da Biblioteca Real (tinha sido nomeado por D. Carlos) e exilou-se em Paris.
A leitura de Ortigão sobre o estado do país era, porém, consensual. Recolhia o mesmo entendimento por parte do rei, dos políticos monárquicos e dos republicanos. Os sintomas da crise que se abateu sobre a monarquia constitucional agudizaram-se a partir de 1900 (e culminaram, como se sabe, com a revolta armada de 5 de Outubro de 1910, que pôs fim a um regime multissecular) e foi precisamente na primeira década do século XX que os republicanos, sobretudo aqueles que estavam afectos ao Partido Republicano Português (PRP), desferiram ataques constantes à monarquia - sobretudo através da imprensa, das intervenções na Câmara dos Deputados e das tentativas de "incendiar" as ruas das grandes cidades com fortes acções de contestação.
Debelar a crise política
À crise do constitucionalismo monárquico liberal somaram-se o descontentamento social, a sucessão de escândalos (casos de corrupção, evasão fiscal e clientelismos que não podiam ter sido mais propícios à propaganda republicana), as crises económicas e financeiras que entorpeceram a acção governativa dos governos, a bancarrota do Estado.
A palavra ingovernabilidade soou alto ao longo do decénio. Assim como se tornou cada vez mais audível o questionamento sobre a importância da monarquia. Em 1906, D. Carlos tentou insuflar algum oxigénio no regime: deu por findo o rotativismo liberal e convidou João Franco, dissidente do Partido Regenerador e fundador do Partido Regenerador Liberal, a formar Governo. "Foi uma tentativa de restaurar os partidos. Além disso, Franco tinha a reputação de ser um homem honesto, não recaíam sobre ele suspeitas de corrupção. E tinha boas relações com os republicanos", nota o historiador Rui Ramos.
Esta iniciativa de recuperar a credibilidade das instituições constituiu uma das três fases fundamentais dos anos 1900-1910. José Miguel Sardica, historiador e autor de A Dupla Face do Franquismo na Crise da Monarquia Portuguesa (Cosmos), caracteriza da seguinte forma os três períodos: de 1900 a 1906 imperou o rotativismo, com os partidos Regenerador e Progressista a revesarem-se no poder; o franquismo governou entre Maio de 1906 e Fevereiro de 1908 (marcado pela intentona republicana de 28 de Janeiro de 1908 e pelo regicídio); e de Fevereiro de 1908 a Outubro de 1910 o reinado de D. Manuel II deu continuidade à instabilidade política, com a subida ao poder de seis executivos.
O confronto entre a anunciada "República ordeira" e uma monarquia decadente e submersa em escândalos foi beneficiado pelo ambiente de crise política que, segundo Joaquim Romero Magalhães, não sofreu atenuantes com a nomeação de João Franco. "Num regime de monarquia constitucional o rei deve ter um papel moderador, não deve estar implicado em qualquer partido. Poder-se-á dizer que o regime constitucional monárquico não foi bem interpretado em Portugal", afirma o historiador e autor do recentíssimo Vem aí a República. 1906-1910 (Almedina).
A decomposição do sistema traduz também uma crise de cultura política, acrescenta Maria Alice Samara, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa e especialista na Primeira República. "Tal como julgavam os republicanos, assistiu-se a um abastardamento do regime liberal. Os homens que estavam no Governo não representavam o povo, eram criaturas do rei. O ambiente de crise permite aos republicanos a apresentação de uma resposta nova, de uma regeneração, que é também feita com outras sensibilidades políticas", explica.
"Uma República com rei"
As características oligárquicas do rotativismo parlamentar, como aponta Fernando Rosas em História da Primeira República (Tinta da China), e o "crescente impasse das instituições" contribuem para empolamento, operado pelos republicanos, do conjunto de escândalos que marcaram a década. "Estes casos são uma espécie de bitola da degenerescência da situação", diz Luís Farinha, historiador e investigador do IHC. "Há escândalos de finais do século XIX que são resgatados porque o momento é propício. E outros, como o caso dos adiantamentos [ver texto ao lado], que era comum no século anterior, são agora alvo da contestação dos deputados republicanos", acrescenta.
Mas a oposição republicana também ganhou terreno na divisão que se acentuava entre os monárquicos, traduzida nas cisões partidárias, nota Alice Samara.
O historiador Rui Ramos entende, porém, que o regime tinha características republicanas - "dentro e fora o país era visto como uma República com rei" -, justificando assim a ausência da questão da defesa da monarquia. "A classe política não era monárquica, era liberal. E acreditava que, perante uma eventual mudança de regime, continuaria a governar. Por isso, desprezavam os republicanos. E não os consideravam suficientemente fortes e organizados", explica.
A incapacidade de formar um Governo estável (notória entre 1900 e 1906) sofreu apenas um intervalo durante o Executivo de João Franco. Mas o regicídio, que, segundo Ramos, "dessacralizou a própria monarquia", prolongou a instabilidade governativa - D. Manuel II, muito influenciado pela mãe, a rainha D. Amélia, "chamou para o poder os inimigos de D. Carlos" - e precipitou o fim inevitável do regime.
Em Outubro de 1910 as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano eram as excepções.1910
Em Outubro de 1910, as monarquias dominavam ainda a Europa (a hecatombe aconteceu apenas depois da Primeira Guerra Mundial). França, Suíça e o novo Portugal republicano? eram as excepções.