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A-24

Terceiro Mundo: O sistema de castas na Índia VI

por A-24, em 07.08.13
Seu busto está coroado por viçosos cravos-de-defunto alaranjados no dia em que visito a Colônia Ramabai, uma favela em Mumbai batizada com o nome da mulher de Ambedkar. Harish K. Ahire, um médico intocável, é meu guia. Caminhando pelas vielas movimentadas, vejo o rosto de Ambedkar na parede das casas, no interior de pequenos templos budistas, sobre portas de entrada, em placas de rua. Os habitantes contam, empolgados, que Ambedkar inspirou seus pais a se mudar para a cidade uma ou duas gerações anteriores para escapar ao sufocante jugo das castas. Mas ainda assim os esgotos de Ramabai são a céu aberto; as escolas, ruins; e seus habitantes, assolados por doenças. Ambedkar fez alguma diferença ali?
Ahire apresenta-me a Ambet Raghunath, magro, descalço, cerca de 30 anos. Deixara sua aldeia natal próxima de Varanasi e viera para Ramabai com 200 rúpias, ou 4 dólares. Hoje trabalha numa loja, preparando e vendendo o bétele, um masticatório feito com noz-de-areca. Ganha 40 dólares por mês, uma quantia régia para um intocável de aldeia, e remete a maior parte do dinheiro para a mulher, a quem visita uma vez por ano. “Nunca voltarei a viver lá”, declara. “Aqui tenho liberdade para fazer o trabalho que quiser e para morar onde quiser.”


Na favela de Ramabai, todas as castas vivem juntas, bebem água do mesmo poço e esperam na mesma fila, unidas pela pobreza. Como em algumas outras áreas urbanas, ali os intocáveis podem viver anonimamente e ter até mesmo alguma liberdade de escolha. A favela pode parecer uma derrota. Mas representa resoluta ruptura prática do sistema de castas, algo que causaria admiração a Ambedkar. Nenhum líder intocável emergiu desde a morte de Ambedkar. O movimento está fragmentado, estado por estado. A maior esperança de mudança hoje em dia reside em um pequeno mas crescente grupo de organizadores das massas disperso pela Índia. Esses ativistas atuam nas aldeias, o viveiro do sistema de castas, onde ensinam às pessoas habilidades e táticas para lutar contra o destino.
Encontrar e treinar líderes tornou-se vocação para Martin Macwan, um dos mais destacados intocáveis desde Ambedkar. Macwan é fundador e diretor do Navsarjan Trust, grupo com sede em Gujarat empenhado em fazer cumprir as leis antidiscriminação. Ele liderou o grupo que compareceu à Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, realizada em 2001 em Durban, na África do Sul. O grupo pleiteou que a discriminação de castas fizesse parte da pauta da conferência, mas o governo da Índia fez lobby feroz para impedir uma exposição da questão das castas. “O que faço tem relação com lembranças da infância”, declara Macwan do banco de trás de uma picape que sacoleja nos sulcos dos campos de Gujarat. Anos de viagens por estradas ruins deram a ele uma hérnia de disco e hoje, aos 41 anos, leva consigo uma almofada especial. Com rosto de menino, camisa alinhada e bigode, o agitador parece um professor de colégio.
Macwan, membro da casta de tecelões, não se esquece das humilhações passadas: despejarem água em suas mãos em vez de servi-la em copo, ser ridicularizado por usar sapatos impróprios para sua casta, ver a mãe trabalhar quase de graça em uma asfixiante fábrica de rapé. Ele ganhou uma bolsa de estudos em um seminário jesuíta, mas desiludiu-se com o que julgou ser o descaso da igreja pelos pobres. Após formar-se em direito em 1983, começou a trabalhar em comunidades intocáveis, tratando de questões de reforma agrária. E então Golana aconteceu. Em 1986, Macwan e outro ativista estavam ajudando uma cooperativa de intocáveis a reivindicar a posse do terreno que o governo estadual havia concedido a eles na aldeia de Golana. Proprietários de terras xátrias, uma casta superior, que usavam ilegalmente o local para debulha de cereais, avisaram aos intocáveis que seria bom desistirem da reivindicação.
As tensões aumentaram. Um dia, quando Macwan estava ausente devido a uma febre, os donos de terras atacaram a comunidade dos intocáveis. Mataram quatro pessoas, feriram 18 e queimaram casas. Um dos mortos era colega de Macwan. “Seu crânio foi fraturado. Atiraram nele pelo menos seis vezes”, declara o ativista. “Não passo um dia sem me lembrar.”
Macwan liderou um contra-ataque, armado com os direitos consagrados na Constituição. “Os xátrias supunham que pagariam uma pequena soma e tudo seria esquecido”, diz ele. Macwan reuniu 150 testemunhas e organizou um julgamento simulado para treinar os aldeões para a audiência formal. Resultado: dez sentenças de prisão perpétua por assassinato. “Os xátrias tiveram de vender suas terras e fábricas para pagar os advogados”, conclui ele. “Perderam seu poder econômico e moral.”
Essa espantosa vitória na Justiça motivou Macwan a fundar sua própria organização com financiamento vindo de Washington – um incentivo baseado no Programa Holdeen para a Índia. A Navsarjan (“novo começo” em gujarati), atua em cerca de 2,2 mil aldeias. Mais de 150 “advogados descalços” foram preparados para ajudar intocáveis. Mesmo aldeões de castas superiores podem solicitar ajuda legal ao grupo, mas Macwan cobra um preço: têm de aceitar um copo d’água das mãos de um intocável.

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