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A-24

O que ainda podemos aprender com as vitórias e derrotas dos romanos

por A-24, em 15.02.10
Adrian Goldsworthy é um apaixonado pela história clássica. Conversámos com o historiador a propósito dos dois livros que editou em Portugal e de como nos faz falta conhecer melhor a experiência da República e do Império romanos. Por José Manuel Fernandes
Júlio César? Vimo-lo, pelo menos, nos livros do Astérix. Porventura só aí. Não: com sorte talvez também saibamos citar uma das suas últimas frases, quando identifica entre os seus assassinos o filho adoptivo, Brutus: "Também tu, Brutus, meu filho?" Ou então que foi amante de Cleópatra, a belíssima rainha do Egipto.
Contudo poucas figuras como César influenciaram mais a história e a cultura ocidentais - e a poucas poderemos recorrer com facilidade à procura de paralelos que ajudem a resolver os nossos dilemas. Isso entristece enormemente Adrian Goldsworthy, o historiador militar que, depois de escrever Os Generais Romanos, lhe dedicou uma biografia monumental, César, a Vida de Um Colosso.
"Eu tive a sorte de aprender latim ainda no liceu, e ensinaram-me a dar importância à herança clássica", disse-nos o historiador. Porém, sabe que não é isso que acontece mesmo onde devia acontecer. Há umas décadas, nas academias militares ainda se liam os Comentários sobre a Guerra na Gália, o magnífico relato que o próprio Júlio César escreveu sobre os dez anos de campanhas de conquista, pacificação e ocupação, mas hoje a obra desapareceu dos currículos. O que é pena: "Era importante regressarmos à história clássica porque ela impregna toda a nossa cultura e instituições. As nossas grandes referências culturais, mesmo as mais recentes, ainda são figuras que conheciam a cultura clássica muito bem, mas isso está a acontecer cada vez menos. Em contrapartida, há muito para aprender, até porque há muitos paralelos com a vida política moderna", considera Goldsworthy.
Um deles, e que fascina o historiador, é perceber o tipo de qualidades que distinguem um líder, onde estão o talento que permite triunfar e as falhas que conduzem ao fracasso. Ora, como historiador militar, Goldsworthy nota que ao estudar a história das guerras e das grandes batalhas "é mais simples compreender porque é que um líder triunfa ou fracassa". Pelo menos é "mais fácil compreender as razões do sucesso e do insucesso do que quando estudamos o destino dos políticos".
Ora, na Roma antiga, a condição de figura pública implicava que se fosse ao mesmo tempo político e militar. Alguns, como o grande orador Cícero, poucas vezes se viram à frente das legiões, outros, como Pompeu, o Grande, passaram muito mais tempo em campanha do que no Senado romano, mas não era possível distinguir: "Os romanos não separavam a vida política da vida militar", precisa o historiador. O que nos permite tentar perceber mais facilmente "o que faz a diferença" dos que têm um talento natural para liderar.
Na verdade "há talentos que não são transmissíveis: mesmo os melhores comandantes, os que tiveram a melhor preparação, não podem julgar que têm talento só porque sabem estudar e copiar os grandes generais", considera Goldsworthy. Sendo que no tempo dos romanos não havia academias militares, pelo que nem a possibilidade de estudar existia. Os chefes militares aprendiam com a experiência.
Políticos e militares


César é, neste domínio, um caso exemplar. Ao contrário do que muitos poderão hoje imaginar, a figura mais determinante da história de Roma praticamente não pôs os pés num campo de batalha antes dos 40 anos. Originário de uma família da média aristocracia, sabia-se destinado a, um dia, integrar a elite de Roma, a pelo menos chegar ao Senado. Ambicioso, faz uma carreira como causídico, onde desenvolve os seus dotes de orador ao ponto de poder enfrentar, e bater, Cícero, e como político, não sem ter chegado a ser sacerdote de um dos muitos cultos da Roma antiga.
"A carreira de César rompe com todos os padrões", nota Adrian Goldsworthy. "Até à sua partida para a Gália, já com mais de 40 anos, tinha tido um percurso de certa forma normal. Militarmente, se o compararmos com Pompeu, o Grande, este é mais precoce e chega mesmo a chefe militar ainda antes de ser eleito para o Senado." Contudo, na guerra civil decisiva que permite a César tornar-se na figura dominante de Roma, depois da lendária travessia do Rubicão, as forças de Pompeu não resistiriam às de César.
Mas como é que conseguiu ser um comandante tão brilhante sem ter tido experiência anterior, pois antes só lidara com forças muito mais pequenas? Goldsworthy tem uma explicação: "O que é espantoso em Júlio César é a sua capacidade para lidar naturalmente com missões que a maior parte de nós teria antes de aprender a fazer e que ele intuitivamente desempenhava logo bem. Aprendia muito depressa com os erros, como sucedeu quando tentou um ataque de surpresa contra os helvéticos na campanha da Gália, e raramente cometia o mesmo erro duas vezes. Porventura o decisivo foi sempre a sua capacidade de, ao mesmo tempo que tomava decisões difíceis, ser capaz de criar uma enorme empatia com os seus homens: eles não tinham dúvidas de que César ficaria sempre a seu lado fosse o que fosse que acontecesse."
Personagem magnética, extremamente cuidadoso com a forma como se vestia e apresentava, era capaz de arrebatar com a mesma facilidade uma multidão em Roma e um corpo do exército, capaz também de fazer cair a seus pés as mulheres que lhe passavam por perto - e sem escrúpulos que o impedissem de trocar, com o intervalo de algumas semanas, o leito de Cleópatra pelo da rainha da Mauretania (área que corresponde ao Norte de Marrocos), se bem que preferisse seduzir as mulheres dos seus adversários políticos... - César era ainda, nas palavras deste seu biógrafo, "um maravilhoso oportunista". Como tribuno dirigia-se sempre ao povo de Roma tocando em pontos sensíveis que preocupavam as pessoas, por vezes num registo quase populista, mas mantendo-se fiel a causas que eram problemas reais, como a necessidade de uma distribuição das terras mais justa ou um melhor governo das províncias.
"Tinha a habilidade de criar a sensação de que estava sempre do lado do povo e dos seus homens, e fazia-o de forma consistente", sublinha Goldsworthy. "E o povo de Roma não via mais nenhum contemporâneo fazer o mesmo."
Mais: César sabia sempre onde estar no campo de batalha e, sobretudo, sabia transmitir confiança. O que, em última análise, é aquilo que faz um líder. Ou, como sintetiza este historiador, "há pessoas que fazem com que as coisas aconteçam". Como? Conseguindo fazer "com que os processos ocorram de forma natural, oleada e rápida, quase como se não estivessem lá: é aí que se consegue distinguir quem tem ou não capacidade de liderança, quem tem de impor as suas ordens ou orientações e quem é naturalmente seguido".
O talento de Sertório


Mas se César se destaca como a figura central, determinante, do final da República Romana, quando o sistema entra em colapso, se César, mesmo sem ter chegado a ser imperador - o primeiro imperador foi o seu filho adoptivo, Augusto - consegue que todos os imperadores passassem a chamar-se César, se deixou a sua marca em tudo o que depois seria o Império Romano, o seu exemplo está muito longe de ser o único exemplo de uma liderança forte. Ao estudar os grandes generais romanos, Adrian Goldsworthy encontrou personalidades muito distintas com histórias de sucessos e insucessos também muito variadas, pelo que vale a pena olhar para um outro exemplo de liderança: o de Sertório.
O general que comandou a revolta da província de Hispânia era "um grande comandante que conseguiu ganhar a maior parte das batalhas que travou", mas acabou por perder politicamente porque escolheu o lado errado numa das constantes guerras civis que sacudiam o Império. Isto apesar de ter conseguido trazer para o seu lado as tribos locais (incluindo os lusitanos) e organizar tropas que o viam como um "novo Aníbal", equiparando as suas proezas às do cartaginês que chegou a pôr em causa a hegemonia e o poder de Roma. Sertório morreria assassinado mas, antes, derrotou exércitos muito maiores, até os comandados por Pompeu, o Grande. Conseguiu resistir na Hispânia porque, além de militar, teve sempre a perspicácia política para ganhar as tribos para o seu lado. E teve-as, porque viam nele um homem justo.
"A diplomacia e a política marcham sempre a par com a força militar", conclui Goldsworthy. "Há que pensar no dia seguinte às batalhas." E, isso, tanto Sertório como Júlio César "sabiam fazer muito bem".
O historiador explica como este actuava: "Uma das coisas que César sempre percebeu foi que a vitória militar não era suficiente. Durante a campanha da Gália reunia todos os anos com os líderes tribais. O seu objectivo não variava: através das vitórias militares sempre quis criar uma situação em que os líderes locais se sentissem mais satisfeitos por estar dentro do mundo romano do que lutando contra ele."
Os romanos tinham perfeita consciência de que isso nunca aconteceria de geração espontânea, pelo que os territórios que ocupavam eram governados como províncias e os que lá viviam podiam aspirar a ser, também eles, romanos. De resto, Goldsworthy nota que o fim do Império romano não ocorreu - como sucedeu com os impérios europeus - porque tivesse havido movimentos de independência: "Ninguém queria ser outra vez lusitano ou gaulês, queriam ser romanos. Era melhor, viviam melhor, tão melhor que quando o Império se desmoronou devido aos ataques exteriores, o nível de vida baixou dramaticamente."
Guerras assimétricas


Falar destes temas está, contudo, muito longe do espírito dos tempos de hoje - "talvez seja por não estar na moda falar de impérios que haja alguma relutância em conhecer a história dos romanos" -, apesar de líderes políticos e militares como Júlio César ou os grandes da República e, depois, do Império nos poderem ensinar muito sobre um dos maiores dilemas dos conflitos contemporâneos: o de como ganhar uma "guerra assimétrica". É que muitas das guerras que os romanos travaram eram isso mesmo: "assimétricas", uma vez que o poder das suas legiões era muito superior ao das hordas que enfrentavam.
Ora, de acordo com Goldsworthy, em pelo menos dois domínios os romanos revelaram-se especialmente competentes - e ambos são mais políticos do que militares.
O primeiro foi terem a noção de que era necessário que o adversário acabasse por perceber que Roma iria sempre sair vencedora, mais tarde ou mais cedo, porque era imensamente mais poderosa. Para que essa percepção fosse clara não se permitia qualquer recuo, mesmo que pequeno, mesmo que justificado militarmente, pois este podia ser sempre visto pelo inimigo como uma vitória e dar-lhe mais força. O que é que isto nos ensina? Que "temos de perceber o que o adversário pensa, o que deseja, porque o mais provável é que pense de forma muito diferente da nossa. Se insistirmos em vê-lo como parecido connosco, a grande probabilidade é que falhemos os nossos objectivos. Depois, nunca podemos dar um sinal de fraqueza. Os romanos nunca davam, eram extraordinariamente persistentes, iam até ao fim, levavam o outro lado a desistir".
O que nos leva ao segundo domínio: como convencer as opiniões públicas de que as guerras que travamos são necessárias? "Os romanos eram muito bons a convencerem a opinião pública de que as guerras eram justas, pois tinham a preocupação de tornar claro o que era a guerra, o que ela implicava, o que ela custava", explica Goldsworthy. Que desabafa: "É pena que os nossos políticos saibam tão pouco de história e não compreendam sequer isto."
Não surpreende por isso que, ainda de acordo com este historiador militar, "hoje ninguém esteja disposto a lutar até ao fim. Na Europa, sem dúvida. Mas também começa a sentir-se isso nos Estados Unidos. E nas batalhas que hoje se travam, no Iraque ou no Afeganistão, se o adversário percebe que não se quer permanecer muito mais tempo, então o seu raciocínio é simples: basta-lhe esperar. É por isso que os Estados Unidos deviam provar que são capazes de lutar o tempo que for necessário, mas isso não está a acontecer".
Mas com isto não estaremos apenas a tentar copiar tempos irrepetíveis? Não, até porque muito mudou, e para melhor: basta lembrar que em Roma se apreciavam espectáculos que terminavam com a morte de seres humanos. Mas ao mesmo tempo sim, pois o ADN da nossa espécie não se alterou e o mesmo César que ia ao Coliseu escrevia cartas onde "encontramos a mesma humanidade que ilumina tantos escritos contemporâneos".
Escritos e experiências que, diz Adrian Goldsworthy, muitos começam a sentir que devem voltar a ser estudados. Ou que, de certa forma, já recomeçaram a suscitar curiosidade, pelo que o historiador tem sido frequentemente convidado para falar a líderes políticos e militares. Talvez tarde de mais.

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